Na Patagónia – V (continua)

Não houve um único dia que não tivesse acordado gelado. A amplitude térmica varia entre os 28º-30º C durante o dia e os cerca de -8ºC à noite. Estas variações contribuem igualmente para o carácter inóspito da região e para aumentar o cansaço da expedição.
Rodolfo Coria incitava o grupo dizendo que hoje lhe parecia um dia prometedor – para nós portugueses esta campanha já havia superado as expectativas. O referencial é completamente distinto entre os dois lados do atlântico – deixarmos no campo alguns fósseis em Portugal seria um pecado paleontológico.
Não sei se foi o sexto sentido paleontológico ou uma informação de campanha anterior o certo é que neste dia Coria “trouxe” à luz do dia três dentes de terópode (dinossáurio carnívoro) e uma mandíbula de crocodilo.

Nesta área (a cerca de 100 km de Plaza Huincul) foram encontrados diversos ovos de saurópodes e os primeiros com embriões preservados, alguns deles com fragmentos de pele preservada. A primeira vez que os vi e estudei não pude deixar de me sentir arrepiado com o grau de preservação dos tecidos – pareciam que tinham acabado de ser postos e a qualquer momento iriam eclodir!
Com todas estas descobertas compreende-se o grau cada vez maior de exigência nas descobertas para que mantenham estes investigadores com ânimo.
Ao fim da tarde e animados com as descobertas do dia permitimo-nos parar no topo do Cerro e admirar a vista deslumbrante que tínhamos a nossos pés. Quilómetros e quilómetros de planície de vegetação rasteira, apenas sulcados com caminhos rectilíneos abertos pelos trabalhadores das companhias petrolíferas.
(Continua)

Na Patagónia – IV (continua)

Iniciámos hoje a prospecção na vertente norte. Íamos a caminho quando fomos chamados via rádio. ” Los portugueses están por allí?”, alguém do Museo de Zapala tinha encontrado aquilo que pareciam ser pegadas de dinossáurio e pediam ajuda à única especialista presente – Vanda Santos.
Dirigimo-nos para o local, a cerca de 30 minutos de caminho. Chegados ao ponto indicado pensámos: “Mas como é que eles lá foram parar?”. Cem metros abaixo, numa vertente com uma inclinação enorme víamos os nossos companheiros que nos acenavam. Iniciámos a longa descida, fazendo lentos e demorados ziguezagues para evitarmos a queda certa. Vanda só me lembrava que nem quando esteve suspensa por cabos a estudar as pegadas do Cabo Espichel teve tanto medo …
Fomos recebidos com mate – “Nem à beira do precipício deixam de beber mate?”, na verdade serviu para nos acalmar. Iniciámos a avaliação da laje em condições novas – ambos suspensos e preocupados mais com a necessidade básica de sobrevivência do que com a importância científica da laje.
Apesar de tudo a apreciação das marcas permitiu dizer que, apesar de promissora, não valia a pena procedermos à sua deslocação até ao acampamento, dado não apresentar marcas inequívocas de grandes sáurios.
Neste dia foram descobertos mais alguns fragmentos de ossos de membros de saurópodes.
(Continua)

Na Patagónia – III (continua)

A rotina matinal, após o pequeno-almoço, consistia em efectuarmos o trajecto que nos separava da base do Serro Portezuelo no Unimog- os cerca de 5km moía-nos o corpo logo pela manhã.
Chegados, separávamo-nos em grupos de três ou quatro e procedíamos à selecção das áreas a serem “batidas”. Cada grupo ficava com um rádio walkie-talkie, que nos permitia comunicar achados importantes ou criar uma espécie de banda-da-amizade paleontológica.
Iniciávamos a caminhada diária (cerca de 10 kms) subindo e descendo imenso, sempre a olhar e a ver. Dirigíamo-nos aos afloramentos rochosos potencialmente fossilíferos e aí chegados apurávamos os “sentidos” paleontológicos.
Tal como a história das migalhas deixadas pelos meninos para não se perderem na floresta, assim foi a minha primeira descoberta. Seguindo fragmentos de osso por uma encosta acima “dei” com o meu primeiro vestígio de vida mesozóica na Patagónia – uma tíbia (osso da perna) de saurópode. Uma mescla de emoções à mistura com todo o peso de racionalidade científica invade-me.
Iniciei os trabalhos de limpeza, escavação e consolidação do material, sem “provocar” as hostes pelo rádio. Tinha encontrado o meu primeiro osso na Patagónia e logo de saurópode!
Para almoçar reuníamo-nos, normalmente, em depressões do terreno ou ribeiros secos, procurando abrigo do sol abrasador. Partilhávamos sanduíches, fruta e água e trocavam-se histórias de escavações passadas. Pude conhecer melhor Alberto Garrido, geólogo do Museo Carmen Funes. Conhecia-o de várias publicações, entre as quais algumas relativas a Auca Mahuida – jazida de ovos e embriões de saurópodes descobertas em meados dos anos 90. Tem a mesma idade que eu e já percorreu bastantes pontos do globo, fazendo cartografia geológica. Impressionou-me o relato da sua primeira saída como geólogo profissional. Em 1996 foi-lhe atribuído, e a mais dez geólogos, o trabalho de cartografar a geologia de parte da Serra de Aconcágua – a maior elevação da América do Sul. Durante a viagem para a base da serra, um dos veículos despistou-se tendo falecido metade dos geólogos. Contava-me Alberto que, de uma forma aparentemente natural, comunicaram aos familiares o sucedido, procederam às exéquias dos mortos e alguns dias depois retomaram o trabalho geológico (com metade dos especialistas). Aquela história pareceu-me absolutamente reveladora de um espírito duro e capaz de grandes sacrifícios. Trabalhar na Aconcágua é uma tarefa fisicamente desgastante (a mais de 5000 m de altitude) mas fazê-lo após a morte de vários companheiros parece-me quase humanamente insuportável. Fizeram-no, conta Alberto Garrido, como uma homenagem aos mortos e para espantar os seus medos e fantasmas. Tinha sido a primeira das suas três expedições a Aconcágua.
Pelas 17h30 chegávamos ao local onde tínhamos deixado o Unimog e enquanto esperávamos pelos mais atrasados dava-se início a “cerimónia” do Mate.
Neste dia o meu grupo encontrou mais fragmentos de ossos de dinossáurio e de tartarugas.

P.S. 3ª foto – Vista do Serro Portezuelo; 4ª foto – Xavier e Alberto Garrido tomando Mate.

(Continua)

Na Patagónia – II (continua)

Acordei pelas 6h30, tinha passado uma noite gelada e demorei a perceber que estava no meio da Patagónia. Saí da tenda mal os primeiros raios de luz iluminavam a paisagem, que ainda não havia visto. Dei por mim primeiro embasbacado, depois um pouco receoso – a enormidade do espaço poderia provocar agorafobia a qualquer um.
Dirigi-me ao local onde havíamos jantado. Rodolfo Coria chegou pouco tempo depois e começámos a aquecer água para o café e mate matinais. Este paleontólogo, com mais de 20 anos de experiência, contribuiu com importantes achados paleontológicos na região que estávamos prestes a explorar. Em meados dos anos 90 descobriu vértebras e alguns ossos das patas do que é considerado o maior dinossáurio alguma vez descoberto – o Argentinosaurus.
Este dinossáurio saurópode (herbívoro e quadrúpede), e com base nas proporções dos restos ósseos descobertos, mediria cerca de 40 metros de comprimento e pesaria mais de 100 toneladas.
Descobriu ainda restos fossilizados do maior dinossáurio carnívoro, Giganotosaurus (maior do que o famoso T-rex), em conjunto com Phillipe Currie do Tyrrel Museum do Canadá, e em parceria com Alberto Garrido e Luis Chiappe, revelou ao mundo as riquezas paleontológicas da jazida de Auca Mahuida. Pouco a pouco todos os elementos da expedição saíam das suas tendas.
Esta manhã parte da equipa tinha que ir desatascar o veículo que na noite anterior nos havia transportado. Para tal foi preciso recorrer aos “serviços” do Mercedes Unimog. Como iria perceber nos dias seguintes, sem esta verdadeira “mula” dos tempos modernos, a maioria das deslocações até à base do Serro teriam sido talvez impossíveis.

Nota: como quem já esteve na Argentina sabe o que é o Mate, convém explicar para quem não esteve. O mate é uma planta a partir da qual se faz a infusão de nome idêntico. Bebe-se a partir de um recipiente – calabaza – feito de uma pequeno abóbora, e sorvido por um tubo de metal chamado bombilla. Para além de funcionar como refescante e estimulante, é parte de um ritual de partilha e socialização. Os argentinos tomam-no a toda a hora, andando, por todo o lado, com um termo de água quente. Agradecer, indica que já não desejamos beber mais.
(Continua)

Na Patagónia – I (continua)

(Num momento de enorme trabalho na tese, e em que me encontro num vai-não-vai para suspender o Ciência Ao Natural, publico, em várias partes, um resumo do trabalho de campo efectuado na Patagónia argentina, em 2005. Recordei-me deste diário devido à estreia – nos EUA – do documentário Dinosaurs 3D: Giants of Patagonia. Este trabalho foi efectuado na província de Neuquén. em 2004 já havíamos estado na províncias de Chubut e Rio Negro)

Sur o no Sur” (Sul ou não Sul) Kevin Johansen

Chegámos a Plaza Huincul depois de mais de 24 horas de viagem. A cidade, num sábado à tarde de calor, parecia deserta. Lembrava as cidades de um México cinematográfico – paradas à espera de algo que nunca acontece.
A equipa tinha-se instalado na base do Serro Portezuelo havia dois dias e enquanto esperávamos que nos viessem buscar procurámos um sítio onde comer. As horas não eram as mais adequadas – estava calor e tudo fechado.
Quando a noite já tinha caído apareceu um dos membros da equipa num Chevrolet antigo. Era Sérgio Cocca, do Museo Carmen Funes.
Partímos e após vários quilómetros de asfalto entrámos numa picada de terra onde as últimas luzes deram lugar à enormidade do céu patagónico. Procurava uma referência familiar nalguma constelação, mas tinhamos cruzado o equador!
O caminho ia-se complicando até que, num acesso apertado e cortado num dos lados por uma escarpa com cerca de 3m de altura, o veículo inclinou de tal forma que nos encolhemos uns contra os outros. Não subia. Sérgio, circunspecto até à exaustão (uma maneira muito própria de ser patagónico, como viemos depois a perceber) permanecia silencioso. Vanda e eu igualmente – o medo dá-nos por vezes para o silêncio, para não perturbar. Tentámos de novo mas não avançávamos. Parecia que escorregava. Sérgio finalmente disse algo: “Se queda!“. Pensámos: “mas fica o quê?”. No dia seguinte viríamos resgatá-lo.
Descarregámos as mochilas e começámos a caminhar. Apareceram depois, no meio da escuridão, parte do resto da equipa que pensaram ter havido um problema. Entre eles estava Rodolfo Coria, que nos convidou para esta “aventura”.
Caminhámos alguns quilómetros até que vislumbrámos luzes e o resto da equipa. Estavam numa depressão do terreno à volta de uma fogueira ainda sem jantar, à nossa espera. Levaram-nos depois às nossas “carpas” (tendas). Iria partilhar a minha com um jovem investigador do Museo de Cinco Saltos (cerca de 150 km de Plaza Huincul), Ignacio Cerda ou Nacho.
Deitei-me sem ainda ter intuído verdadeiramente onde estava…
Cerca das três da manhã, por motivos fisiológicos tive que deixar a tenda. Mal saí fui de novo “assaltado” pela enormidade do céu. Senti-me de uma pequenez extrema… Só pela vista deste céu a terrível viagem já havia valido a pena.
Agora havia que trabalhar…

(continua)

 

Cidades sem pessoas – II

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 03/08/2007 – segunda e última parte)

Os derrotados

Os perdedores biológicos do nosso abandono serão vários.
Sem a presença humana, as cidades e zonas próximas serão mais um ambiente a explorar. Manadas de vacas à solta serão um manancial meigo para lobos e raposas.

Estas serão uma fonte de alimento fácil para todo o tipo de predadores, que se aproximarão cada vez mais dos ambientes urbanos.
Cadáveres de porcos, por alimentar, serão fonte de alimento para todo o tipo de necrófagos.
Algumas das aves, como os corvos, habituais em ambientes urbanos mais a norte, invadirão inicialmente as urbes, alimentando-se das carcaças. Este ciclo será apenas momentâneo, uma vez que sem o factor humano presente a fonte de alimento em putrefacção condicionará aqueles vencedores fugazes.
As galinhas com sua capacidade de se geo-orientarem, recentemente descoberta, não encontrarão caminho para uma salvação evolutiva. Voadoras débeis, serão para o futuro sem humanos o que o Dodó foi para o séc. XXI humanos – uma recordação…
Mas e os odiados ratos e ratazanas? Dependentes dos desperdícios alimentares humanos, estas espécies de mamíferos declinarão, servindo de refeição a vários predadores.
As baratas, de quem se diz serem capazes de sobreviver a um ataque nuclear, terão igualmente a vida difícil, pois os ambientes humanos aquecidos e com comida disponível terão desaparecido.
Em especial no hemisfério norte, como atesta Alan Weisman no seu recente livro “World without us”, as fontes de calor permitem que aqueles insectos rastejantes vivam em cidades com Invernos rigorosos.
Outros insectos, como gorgulhos e traças, anteriormente muito abundantes em quase todos os continentes, entrarão em declínio; as fontes de alimentos que as sustentavam (essencialmente cereais) acabarão pouco a pouco.

Uma incógnita evolutiva serão as formigas. Connosco partilhavam os ambientes citadinos, apossando-se de alguns dos nossos domínios. Carreiros de obreiras invadiam as casas, procurando todo alimentos para transportarem para as suas colónias. Contudo, devido ao seu carácter social, terão maior facilidade em se adaptar a ambientes desprovidos de sobras humanas.
No cômputo geral, verificar-se-á um acréscimo na biodiversidade bem como o lento restabelecimento das dinâmicas estruturais dos ecossistemas, dos ciclos biogeoquímicos e das alterações climáticas.

Marcas não vivas

As zonas florestadas das cidades, até agora remetidas a parques ou passeios, alastrarão por áreas cada vez maiores, contribuindo com galhos e folhas para que a matéria orgânica depositada no solo (ou no cada vez menor alcatrão disponível) seja abundante.
Todo este combustível orgânico será um potencial alimentador de incêndios, originados por relâmpagos ou por curto-circuitos dos sistemas eléctricos sem manutenção. Ao fim de alguns anos, os incêndios terão alterado o aspecto das cidades, destruindo construções e mobiliário urbano.
A estatuária, distintiva de qualquer ambiente citadino, será, pouco a pouco, tragada pelo correr do tempo. As estátuas, em especial as de calcário ou mármore, serão lentamente meteorizadas por chuvas carregadas de dióxido de carbono, que dissolverão o carbonato de cálcio de que são feitas. Faces, membros e corpos serão arrastados pelas águas que caem do céu, levando as memórias de monarcas e poetas para os rios e o mar. Este fenómeno será geologicamente rápido, ou seja, escassas centenas de anos.
O mesmo fenómeno ocorrerá nos revestimentos dos edifícios. O outrora imponente e belo granito polido dará lugar a uma estrutura que se desagrega – fenómeno originado pela alteração dos feldspatos em argilas.
A ponte sobre o Tejo, sem manutenções regulares, entrará num processo de desagregação. Mesmo a sua estrutura reforçada, que outrora permitia a circulação de comboios, não evitará o seu colapso.
Segundo William Rathje, da Universidade de Stanford, arqueólogo especializado em desperdícios humanos, ao fim de 10000 anos ainda será possível ler os jornais do último dia dos seres humanos na Terra. Em ambientes anóxicos (sem oxigénio), como aqueles em que os jornais são cobertos por sedimentos, os constituintes do papel permanecem inalteráveis, à semelhança do que ocorreu com os papiros com mais de 3000 anos.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=5NvDhNZNSBk]
Ao fim de 15000 anos, os últimos de vestígios de edifícios serão tragados pelo avanço de glaciares que uma nova Idade do gelo originará.
Os níveis de dióxido de carbono só ao fim de cem mil anos atingirão níveis idênticos ao do período pré-industrial.
Apenas ao fim de 35000 anos terão desaparecido os últimos vestígios de chumbo, acumulados ao longo de dezenas de anos de utilização automóvel.
Passados dez milhões de anos, as únicas marcas da nossa fugaz passagem pelo planeta serão, por
exemplo, estátuas de bronze, como a do Rei Dom José I, no Terreiro do Paço.
Apenas a sua forma contemplará o Tejo (ou o local onde este estaria) num planeta sem seres humanos…

Referências
Marchante, E. Comun. pess.
Weisman, A. 2007. The World without Us. St. Martin’s Press.
Western, D. 2001. Human-modified ecosystems and future evolution. PNAS vol. 98 n.10 5458-5465.

Imagens
(dos dois posts “Cidades sem pessoas” – links nas imagens)

Cidades sem pessoas – I

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 02/08/2007 – continua amanhã)

Cidade sem Sono

Ninguém dorme no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
As criaturas da lua cheiram e rondam as choupanas.

Virão iguanas vivas morder os homens que não sonham
e o que foge com o coração partido encontrará pelas esquinas
o incrível crocodilo imóvel sob o frouxo protestos dos astros.
(…)
Um dia
os cavalos viverão nas tabernas
e as formigas furiosas
atacarão os céus amarelos que se refugiam nos olhos das vacas.
Outro dia
veremos a ressurreição de mariposas dissecadas

e ainda, ao andar por uma paisagem de esponjas pardas e barcos mudos
veremos brilhar nosso anel e brotar rosas de nossa língua.

Alerta! Alerta! Alerta!
Aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro,
àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com um violento calafrio azul.
(…)
Não dorme ninguém pelo mundo. Ninguém, ninguém.
Já o disse.
Não dorme ninguém.

Mas se alguém tem de noite demasiado musgo nas têmporas,
abri os alçapões para ver sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.

Federico García Lorca

Este poema e um artigo no último número da Scientific American fizeram-me imaginar as cidades portuguesas sem os representantes da espécie humana.
De um momento para o outro e por qualquer motivo desconhecido, todas as pessoas desaparecem das cidades; surgirão vencedores e vencidos biológicos, no contexto citadino definitivamente abandonado pelos seus criadores.

No momento em que pela primeira vez a população urbana portuguesa ultrapassou a população rural, a especulação sobre o que aconteceria num ambiente urbano sem portugueses é curiosa, apresentando-se como uma realidade que deveremos tomar em atenção.
No I Congresso Europeu de Conservação Biológica, em 2006, foi discutido que “com metade da população mundial a viver actualmente em cidades e a previsão de 60% em 2030, o ambiente urbano é um dos pontos principais da agenda global de ambiente e de conservação.”

Mas o que se passaria nas nossas cidades, após o desaparecimento de todos os portugueses?

Os vencedores

Entre os vencedores biológicos deste omnicídio estão os mosquitos, que sem campanhas de extermínio, e aproveitando-se de zonas húmidas, aumentarão exponencialmente o seu número. Esses insectos alimentar-se-ão de animais como as aves. Estas, sem cabos de alta-tensão e arranha-céus (entretanto destruídos, por falta de manutenção), poderão voar livremente.

Todos os anos os arranha-céus são responsáveis pela morte de 1000 milhões de aves, só nos EUA. Para Daniel Klem Jr., ornitólogo do Muhlenberg College, o revestimento em vidro dos edifícios das cidades constitui um fenómeno “indiscriminado, eliminando aptos e não-aptos”. As aves colidem com aquelas estruturas, pois não as conseguem identificar, por serem espelhadas, vendo apenas o céu ou árvores reflectidas. Segundo este investigador, só a destruição de habitats tem um impacto mais negativo sobre as aves.

E os nossos animais de estimação?

Os gatos contam-se entre os prováveis vencedores do período pós-humano, caçando pequenos mamíferos, insectos e aves, à semelhança do que fazem actualmente. Gradualmente aumentarão de tamanho, competindo directamente com outros predadores.

Os cães poderão ter dois destinos. As raças de comportamento dominante agrupar-se-ão em matilhas, à semelhança do que ocorre hoje em dia, em matilhas de cães assilvestrados. Desta forma poderão sobreviver, readquirindo alguns comportamentos ancestrais dos lobos, percorrendo ruas e avenidas em busca de presas. Presentemente, os cães abandonados são responsáveis por ataques a rebanhos que ocorrem no nosso país, embora os proprietários prefiram responsabilizar o lobo-ibérico…
Na minha opinião, os cães mais dóceis ou pequenos serão remetidos para nichos ecológicos reduzidos, ou terão como destino a extinção. O meu Labrador provavelmente não se safaria…

Flora exótica como espanta-lobos (Ailanthus altíssima), robínia (Robinia pseudoacacia), acácia-de-espigas (Acacia longifolia) e árvore-do-incenso (Pittosporum ondulatum) existem nas nossas cidades, tendo sido aí introduzidas para ornamentação de jardins, arborização de espaços urbanos e sebes.

A espanta-lobos é proveniente da China, produzindo até 350 000 sementes anualmente. Além de extremamente agressiva para as plantas autóctones, liberta toxinas que impedem o desenvolvimento de vegetação em seu redor.

Sem campanhas de erradicação, algumas plantas exóticas substituirão definitivamente as plantas originais, colonizando cada vez maiores áreas e modificando a paisagem natural.
Segundo Elizabete Marchante, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, “desde há pouco tempo, começou a surgir em espaços urbanos outra espécie (Sesbania punicea) que, apesar de ainda não ser invasora em Portugal, é uma invasora perigosa em ecossistemas com clima idêntico.”
As árvores vencedoras do abandono humano ocuparão a maioria das ruas ao fim de dois a quatro anos. As suas raízes irão destruir progressivamente asfalto e passeios, bem como a rede de água e esgotos, contribuindo para o cada vez maior esquecimen
to dos vestígios humanos.
Nada do aspecto actual das cidades será mantido. Se houvesse alguém para o descrever, veria um ambiente caótico em que as marcas de construção humana seriam, pouco a pouco, engolidas pela vegetação.
(continua amanhã)

“Monstros Marinhos” e rigor científico

“Não perca esta oportunidade de conhecer répteis marinhos ancestrais e as mais recentes teorias sobre as causas que terão provocado a sua extinção!
A exposição está dividida em quatro cenários distintos que apresentam a Terra, em
termos geológicos, enquanto planeta em constante mudança e os seus mecanismos de evolução.”

Decidi efectuar esta análise a esta exposição após uma visita informal durante a qual constatei variados erros/omissões/incorrecções científicas.
A análise e revisão feitas estão sistematizadas em seguida.
A exposição é constituída por diversos painéis com breve descrição de criaturas marinhas – a maioria extinta – de grande tamanho: o principal critério unificador.
Não existem fósseis ou réplicas dos exemplares apresentados, apesar de estes serem, na sua maioria, unicamente conhecidos pelo registo fóssil.
Uma das ideias mais promissoras e com “valor de mercado” é a intitulada Cultura Pop – Percepções Culturais e a sua relação com conceitos científicos, neste caso num contexto de criaturas marinhas.
Este conceito, apesar de promissor, não foi suficientemente aproveitado, sendo a sua abordagem limitada a um painel em que é referida, introdutoriamente, a influência daquelas criaturas no imaginário colectivo.
De realçar a excelente qualidade gráfica das ilustrações, sempre com escala humana, que muito contribuem para o aspecto geral, agradável e apelativo.

Revisão/Análise científica

Descrevo seguidamente, de forma que não pretende ser exaustiva, algumas das várias incorrecções/omissões/falhas científicas detectadas, documentadas por fotos.
Critérios pouco uniformes na designação científica dos exemplares, por exemplo: nomes de grupos genéricos (“Notossauro”, “Ictiossauro”) misturados com espécies, uma vezes identificadas (Thalassomedon haningtoni) outras vezes não, apenas pelo género (Dakosaurus, Henodus, Platypterigius).
– Na parte final (em termos do movimento do público) é apresentada num painel representativo, de forma resumida e cronológica, a história, quer geológica, quer biológica, da Terra. Este painel poderia explorar os intervalos temporais relativos de cada uma das fases da História da Terra, ou seja, cada um dos sub-painéis poderia ter um tamanho proporcional à sua amplitude temporal.
– Estando os períodos temporalmente mais próximos do presente antropomorficamente sobreavaliados, poderia ter-se feito um destaque, com painel isolado, revelando pormenores biológicos/geológicos destes períodos.
“primeiros tetrapódios” – deveria ser primeiros tetrápodes ou Tetrapoda
“Pangea” e “Pangeia” – utilizados de forma não coerente: deveria ter-se utilizado Pangeia.
– Thalassomedon haningtoni, assim designada em inglês, surge como Thalassomedon hanington em português, o que dá a sensação de que o nome da espécie se altera do português para inglês.
“Plioceno” em vez de Pliocénico – todas as referências deveriam ser Pliocénico (período geológico entre os 5.3 e 1.8 milhões de anos).
“Paleoceno” em vez de Paleocénico – todas as referências deveriam ser Paleocénico (período geológico entre os 65 e 55 milhões de anos).
“Triássico” em vez de Triásico – todas as referências deveriam ser Triásico (período geológico entre os 251 e 200 milhões de anos).
“Carbonífero” em vez de Carbónico – todas as referências deveriam ser Carbónico (período geológico entre os 359 e 299 milhões de anos).
Dunkleosteus, mencionado como primeiro animal com reprodução sexuada e com comportamento canibal.
Em relação ao facto de ser canibal, faltaria acrescentar a informação de que este comportamento foi inferido a partir de marcas de mandíbulas encontradas num crâneo de Dunkleosteus. Uma vez que este animal seria o maior predador da época, os paleontólogos deduziram que só outro elemento daquela espécie poderia ter infligido tal marca – faltaria adicionar, de forma breve, esta inferência paleontológica.
No que diz respeito à afirmação de que seria o primeiro animal com reprodução sexuada, qualquer pessoa com um mínimo de formação biológica sabe que esta afirmação carece de qualquer sentido. Quereriam os autores referir-se a primeiros animais com dimorfismo sexual?
Uma das ilustrações Dunkleosteus tem como texto de suporte “…comia tudo o que via.” Esta afirmação, apesar de talvez apelativa, parece-me exagerada do ponto de vista biológico, podendo cair facilmente na especulação não-científica.
Eric leptocleidus– esta espécie não existe, tendo sido confundido o nome informal “Eric” dado a um exemplar do género Leptocleidus, descoberto na Austrália.

“Período Câmbrico”
“…maioritariamente organismos marinhos” – toda a vida existente neste período da Terra era exclusivamente marinha, uma vez que a “invasão” terrestre só aconteceu muito mais tarde.
– A frase, geradora de confusão, é contradita pelo cartaz “Ordovícico”, onde se afirma “vida apenas nos mares…” (ver comentários a esta afirmação em “Período Ordovícico”)
“Trilobites – fósseis indicadores” – é verdade, mas falta referir de que é que são indicadores – de idade geológica, de ambiente ou de que outro tipo de informação.
“Myllokunmingia” – faltaria acrescentar o nome completo (Myllokunmingia fengjiaoa, a sua idade (530 milhões de anos) e a proveniência (China, província de Kunming)

“Período Ordovícico”
“…começa com clima não muito intenso e alta humidade” – a aparente falta de sentido desta frase somente pode ser justificada pela má tradução de “milder” para “não muito intenso”.
“vida apenas nos mares com, inicialmente, níveis muito altos” – níveis muito altos de quê?
– É representada uma trilobite designada por “Trilobite Gigante”, enquanto um escorpião-marinho já é apresentado como Megalograptus – faltaria a designação científica desta espécie.

“Período Triásico”
“…anfíbios labirintóides” – os anfíbios pertencentes ao grupo Labyrinthodontia têm como designação em português Labirintodontes. Para além disto, é referido que este grupo de anfíbios se extingue no final do Triásico: esta afirmação é incorrecta, uma vez que se conhece pelo menos uma espécie deste grupo – o Koolasuchus cleelandi, do Cretácico inferior da Austrália, prolongando-se, assim, o registo paleontológico dos Labirintodontes (cerca de 55 milhões de anos mais tarde do que referido).
“dinossauros dominam depois da extinção” – até ao final do Triásico, as faunas dominantes eram outros grupos, que não os dinossauros – por exemplo, os grupos Rhynchosauria, répteis herbívoros, os Aetosauria, também herbívoros, e os carnívoros Phytosauria, entre outra fauna.
– traduziu-se “ferns” por abetos, quando deveria ser fetos.
– é referido, no painel deste período, que teria surgido o primeiro tubarão, quando o primeiro representante conhecido do grupo dos tubarões, Doliodus problematicus, data do Devónico inferior (cerca de 200 milhões de anos mais cedo do que referido).

Conclusão
Esta exposição tem como ponto mais positivo apresentar o tema (raramente abordado no contexto de exposições em Portugal) do registo de vertebrados marinhos mesozóicos – leia-se fauna contemporânea dos dinossáurios mas mas não pertencendo a este grupo.
O ponto mais negativo é a deficiente revisão científica e tradução dos texto dos painéis.
Se se tivesse tido o mesmo cuidado na apresentação e descrição das espécies passadas como o que o Oceanário tem nas espécies presentes, esta exposição poderia constituir um marco idêntico aos das exposições que esta instituição tem levado a cabo no passado.
Faltou-lhe mais formação paleontológica…

P.S.- o Oceanário de Lisboa inaugurou, no passado dia 15 de Junho de 2007, a exposição “Monstros Marinhos”; este texto foi enviado ao Oceanário de Lisboa, a 10 de Julho de 2007, não tendo tido eu, até ao momento, qualquer resposta.

Imagens – links nas imagens

Não foi falta de comparência…foi KO!

Ao contrário do que se pensava os dinossauros não dominaram todo o Mesozóico (251-65 milhões de anos).
Os vertebrados terrestres dominantes eram outros.
Até ao final do Triásico, algumas das faunas dominantes eram, por exemplo, os grupos Rhynchosauria, répteis herbívoros, os Aetosauria (1, 2), também herbívoros, e os carnívoros Phytosauria.

Entre os representes mais antigos do clado Dinosauria contam-se o Herrerasaurus ischigualastensis e o Eoraptor lunensis, ambos procedentes de jazidas da Formação Ischigualasto do Triásico superior Argentina.
Para além das análises filogenéticas que proporcionaram formular, permitindo perceber o enquadramento dos vários elementos basais de Dinosauria, aquelas duas espécies revelaram igualmente pormenores anatómicos que permitem compreender a evolução locomotora do grupo*.

A transição entre as faunas de não-dinossáurios para um domínio faunístco de dinossáurios, ao nível de diversidade e ocupação de ecossistemas, deu-se, segundo a revista Science, de forma diferente e menos rápida do que se supunha**.

O grupo de paleontólogos que apresentou estes resultados propôs que essa substituição faunística, ao nível de vertebrados terrestres, ter-se-à dado não só mais lentamente mas também de forma distinta em vários locais do planeta.
Os vertebrados terrestres dominantes, pensava-se, teriam entrado em declínio, permitindo assim que os secundários dinossauros ocupassem os nichos ecológicos abandonados.
Mas o que propõem os paleontólogos é que ambas as faunas – dominantes e dinossauros – coexistiram durante um período grande de tempo – 15 a 20 milhões de anos.
O que se verificou , por outras palavras, foi uma vitória por KO (adaptativamente os dinossauros foram melhores) e não uma vitória por falta de comparência (as faunas até aí dominantes coexistiram com os dinossauros e não se extinguiram previamente ao aparecimento daqueles).

* – Ao contrário do que sucedeu com os mamíferos, cujos elementos conhecidos (alguns exemplos 1, 2 , 3) mais primitivos eram todos quadrúpedes, a locomoção original nos dinossauros era a locomoção bípede.
**- A associação faunístca estudada e que permitiu estes resultados foi a da Formação Chinle do Triásico superior do Novo México, nos EUA.

Referências:

Langer, M.C., Benton, M.J. 2006. Early dinosaurs: a phylogenetic study.Journal of Systematic Palaeontology 4 (4): 309–358

Sereno, P. 2007. The phylogenetic relationships of early dinosaurs: a comparative report. Historical Biology, 2007; 19(1): 145–155

Randall B. Irmis, Sterling J. Nesbitt, Kevin Padian, Nathan D. Smith, Alan H. Turner, Daniel Woody, Alex Downs. A Late Triassic Dinosauromorph Assemblage from New Mexico and the Rise of Dinosaurs. Science 20 July 2007: Vol. 317. no. 5836, pp. 358 – 361
DOI: 10.1126/science.1143325

Imagens – capa da revista Science de 20 de Julho de 2007; ©Carlos Papolio 2006

Da Tanzânia para Berlim – nova exposição de dinossáurios

O Museu de História Natural de Berlim reabriu a sua exposição de dinossáurios.
Para bem dos meus pecados, no mês que lá passei em 2006, grande parte do material de saurópodes estava desmontado, facilitando-me a digitalização e estudo de Brachiosaurus, Barosaurus, Plateosaurus e Dicraeosaurus.
A equipa canadiana que os remontou, trabalhava num enorme armazém (mesmo ao lado do arquivos da cinemateca alemã!!!) o que me obrigava a passar o tempo entre as caves do Museu e o dito armazém.

Agora já pode ser vista a fauna proveniente, sobretudo, das jazidas de Tendaguru, Tanzânia.
Foram os alemães nos anos 20 do séc. XX, em especial expedições lideradas por Janensch, os principais exploradores das jazidas da Tanzânia.”

a). – úmero de Brachiosaurus com Homo sapiens a servir de escala.

b) aspecto do armazém de remontagem; Brachiosaurus remontado (foto Der Spiegel)
Imagens – Luís Azevedo Rodrigues (duas primeiras)