Auto da ocorrência*

Trânsito parado. Avançamos. Polícias. Medem algo na estrada. Mais à frente, carros batidos. Os peritos continuam a medir e a escrever. Finalmente conseguimos passar, apenas retendo na memória o resultado final do que aconteceu.

A familiar cena de cidade poderia ser um qualquer dia de um paleontólogo que estude pegadas de dinossáurio.
Tal como os polícias e os mirones, também os cientistas procuram saber o que se passou. Medem os vestígios do acontecimento ocorrido algures num passado mais ou menos remoto. Os elementos da autoridade medem o rasto da travagem para inferirem o tempo de duração da mesma e a velocidade provável a que se deslocava o carro. Os paleontólogos medem o espaço entre pegadas para deduzirem a velocidade do animal. Esta medição permitiu, por exemplo, constatar que, no Cabo Espichel, o trilho de um dinossáurio carnívoro apresentava um passo (série de duas pegadas) irregular; por outras palavras, o animal coxeava. As razões para este comportamento podem ser várias: ferimento numa das patas ou, motivo mais difícil de comprovar, poderia estar a transportar uma presa.

Os paleontólogos conseguem inferir uma série de informações biológicas a partir da “cena do crime”: p.e., com base no tamanho e forma da pegada, conseguem concluir a altura do animal até à anca e assim ter uma ideia geral do tamanho do animal.
No caso da maior jazida portuguesa de pegadas de dinossáurio – Pedreira do Galinha, na zona de Fátima – podem observar-se centenas de pegadas de saurópodes – dinossáurios herbívoros quadrúpedes. Este local apresenta os maiores rastos de dinossáurios do Jurássico médio (sensivelmente há 165 milhões de anos) a nível mundial, dois dos quais com mais de 140 metros de extensão.
Não só os rastos permitem deduzir informações sobre a velocidade e comportamento do animal.
A partir da forma das pegadas individuais, os paleontólogos obtêm informações sobre o seu autor: à semelhança de um CSI natural, deduzem, com maior ou menor rigor, o retrato-robô de quem andou (literalmente) num determinado local.

Mas pegadas de dinossáurio também exerceram fascínio na produção literária.
A descoberta em 1909 de pegadas de Iguanodon, em Inglaterra, originou uma enorme excitação em Sir Arthur Conan Doyle, o criador do detective Sherlock Holmes. Alguns autores apontam este motivo, bem como a publicação da “Origem das Espécies” de Darwin, como os principais factores de inspiração para que Conan Doyle escrevesse “O Mundo Perdido”, relato de aventuras num país da América do Sul povoado de criaturas perigosas e pretensamente extintas.

Ao contrário do que se passa nos acidentes de automóvel, em que os responsáveis materiais normalmente ficam junto do local da “ocorrência”, no caso das pegadas de dinossáurio estes nunca lá estão para soprar no balão. Uma das perguntas mais frequentes que me são feitas refere-se ao motivo pelo qual os ossos de dinossáurio nunca são encontrados perto das jazidas de pegadas. As razões são essencialmente duas: a maioria das pegadas é produzida em momentos de actividade biológica habitual, isto é, quando o animal se encontrava em movimento para pastar ou caçar, não sendo provável, assim, que tivesse deixado aí o seu esqueleto…
O segundo motivo diz respeito às condições de preservação dos vestígiostafonomia. Pegadas e ossos necessitam de condições geológicas diferentes para fossilizar, ou seja, os ingredientes para a fossilização são distintos para o registo icnológico (pegadas) e o registo osteológico (ossos).

Tal como os índios norte-americanos, que perseguiam os seus adversários ou as presas numa caçada, também os paleontólogos seguem os rastos, embora nunca consigam alcançar os seus autores… ao contrário daqueles, apenas ficam com pedaços duma ocorrência do tempo passado.

*Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 28/06/2007

Foto: Luís Azevedo Rodrigues – jazida de Vale de Meios

Fim ciclo VI


Réplica da pista de Paluxy River existente American Museum of Natural History, Nova Iorque, 2003
Notas:
1) não, não ultrapassei a barreira para me colocar para a foto. Estava no AMNH a trabalhar.
2) observar as pistas de terópode e saurópode. A de terópode são as tridáctilas, ou seja, com marcas de três. As de saurópode permitiram a atribuição a Brontopodus birdi, que não é um dinossáurio mas a designação científica para pegadas de saurópode com esta forma.


American Museum of Natural History, Nova Iorque, 2002


Guanacos na província de Santa Cruz, Patagónia argentina, 2004

FIM DE CICLOV

Em relação às três últimas imagens, gostaria de informar que, durante a estadia no Museu de Zigong, tinha que interromper o trabalho frequentemente porque os jovens chineses me pediam para tirar fotografias junto a eles…

Carnegie Museum of Natural History, Pittsburgh, EUA, 2005

Carnegie Museum of Natural History, Pittsburgh, EUA, 2005

Zigong Dinosaur Museum, Zigong, China, 2006

Zigong Dinosaur Museum, Zigong, China, 2006

No fun

“Paleontology can then be done without ever having to go in the field, without ever having to touch those nasty, dirty old fossils, without having to hold them in your hand to measure them. So much cleaner and…. well – just plain scientific!
Just a computer – one would never have to leave one’s nice neat office – no field work, no books, no fossils….no fun.

And when science stops being fun, I will stop doing it.”

Richard S. White, Jr.
Director
International Wildlife Museum
(adaptado de mailing list Vertpaleo)

Imagens – Luís Azevedo Rodrigues, província de Santa Cruz, Patagónia argentina, 2004

O Balão

Quem nunca lamentou ter perdido esta capacidade?
Eu lamento.
Por vezes vem, mas o mundo real afugenta-a.
Voltará.
A melhor qualidade de quem trabalha em Ciência.
Ou simplesmente de quem quer ser Pessoa.
Levem tudo mas deixem-me isto.

Paleo Thesaurus

Imagem – daqui

Grand Canyon e a Arte

É socialmente reprovável cometer um deslize na História ou Literatura; mas é desculpável se se afirmar que no Marão existem pegadas de dinossáurio. Ou que o Jurássico é um título de um filme.

É lugar comum em conversas de café discutir-se pintura, música, literatura ou história.

Emitem-se opiniões e confrontam-se gostos. Não se confundem tendências artísticas nem épocas históricas; arrumam-se os vários artistas nos movimentos e séculos respectivos. Beethoven foi influenciado na sua obra pelo papel histórico e social de Napoleão Bonaparte e não por Átila, o Huno. Picasso, apesar de o poder ter feito (como seria?), não pintou o tecto da Capela Sistina. Os Medici não patrocinaram a obra literária de Samuel Beckett.

São exemplos, que roçando o absurdo, ilustram que a literacia artística e a histórica tem um papel nos actos sociais.

Mas e a literacia científica?

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Dino Lisa

Imagem – daqui

Darwin 2.0*

Quando um paleontólogo escreve um excelente artigo de divulgação no NY Times só me restam duas coisas:
admiração e…inveja!!!

Douglas Erwin – “Darwin Still Rules, but Some Biologists Dream of a Paradigm Shift”

Imagem – do site do NY Times

*título “roubado” aqui.

Dinossáurios de Portugal…pegadas

É com enorme alegria que vejo que o primeiro paleontólogo de vertebrados português (neste caso uma paleontóloga) a adaptar a sua tese e a publicá-la sob a forma de obra de divulgação científica.
É um livro sobre o registo de pegadas de dinossáurio em Portugal, onde é abordado o seu valor científico e patrimonial.
Para além de todas as jazidas portuguesas, individualizadas, é feita introdução sobre os diversos tipos de dinossáurios e os processos geológicos que proporcionaram a sua fossilização.
Acima de tudo, um livro muito pedagógico, com excelentes ilustrações de Mário Estevens, também ele doutorado em Paleontologia.

“Em Portugal existem pegadas e pistas de dinossáurios em zonas
litorais e em antigas pedreiras. O estudo destes icnofósseis permite
conhecer a anatomia dos pés e das mãos dos dinossáurios
que os produziram, o seu modo de locomoção, o seu comportamento
individual e social, os ambientes que frequentaram,
entre outros aspectos. As jazidas com pegadas de dinossáurios
são, assim, uma importante fonte de informação sobre este
grupo de animais já extintos há 65 milhões de anos e constituem,
igualmente, locais privilegiados para o ensino de temas
relacionados com a Geologia e a Paleontologia.
O presente trabalho pretende divulgar o conhecimento científico
adquirido com o estudo destas jazidas, realçando o seu
valor científico, cultural, pedagógico e patrimonial, e contribuir
para a sua preservação.”
Páginas do livro