O Chapeleiro Louco e as Aves Desafinadas
– Naquela direcção – disse o Gato, levantando a pata direita – vive um Chapeleiro, e naquela, agitando a outra pata, mora uma Lebre de Março. Visita o que quiseres, ambos são loucos.
– Mas eu não quero estar ao pé de gente louca – respondeu Alice.
– Oh, não podes evitá-lo – disse o Gato. – Aqui todos são loucos. Eu sou louco. Tu és louca.
Que têm em comum o Chapeleiro Louco e o canto das aves?
A resposta tortuosa pode ser…o mercúrio.
Não Mercúrio, o deus dos comerciantes, da eloquência e dos ladrões, mas antes o elemento químico.
Vamos ver se consigo resumir.
Há centenas de anos que tecidos de origem animal são utilizados na manufactura de chapéus. No século XIX, a pele mais apetecível para o fabrico de chapéus era a do castor, mas a caça a este animal implicou a sua escassez, o que levou à utilização de peles de coelho.
As peles necessitam de um amaciamento prévio, sendo utilizados produtos químicos, normalmente compostos de mercúrio, como o nitrato de mercúrio (2; p.52).
Não irei descrever os processos da manufactura de chapéus, apenas refiro que o carácter rudimentar da tecnologia química e das normas de segurança laboral envolvidas, colocava os chapeleiros em sérios riscos de contaminação por mercúrio, originando o hidrargirismo (nome da contaminação).Tremores físicos característicos, bem como várias patologias neurológicas designadas colectivamente de eretismo, são algumas das alterações provocadas pela intoxicação crónica por mercúrio. Timidez e irritabilidade extremas, alucinações e incapacidade de pensar correctamente, são também comportamentos típicos destas intoxicações.
Este quadro clínico, muito comum no século passado entre os chapeleiros, contribuiu para a génese da expressão “Mad as a hatter” (louco como um chapeleiro).
As alterações neurológicas por mercúrio poderão igualmente ter despertado o espírito criativo de Lewis Carroll na criação da personagem do Chapeleiro Louco, presente no intemporal “Alice No País das Maravilhas” (3).
A literatura, desta vez, não parece ter sido maior que a Vida, antes se tendo inspirado num quotidiano tão pouco poético.
O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Em que dia do mês estamos? – perguntou, voltando-se para Alice.
Tirara o relógio e olhava-o, inquieto, abanando-o de vez em quando e levando-o ao ouvido.
Alice pensou e depois respondeu:
– A quatro.
– Dois dias atrasado! – disse o Chapeleiro com um suspiro.
– Bem te disse que a manteiga não lhe faria bem! – acrescentou, lançando à Lebre de Março um olhar furibundo.
– Mas era manteiga da melhor qualidade! – respondeu a Lebre de Março com brandura.
– Sim, mas também devem ter entrado migalhas de pão lá para dentro – resmungou o Chapeleiro. – Não devias ter usado a faca do pão.
Aves DesafinadasAs contaminações ambientais podem influenciar directa ou indirectamente muitas funções biológicas dos seres vivos. Entre as consequências temos, por exemplo, alterações dos ciclos reprodutivos, desenvolvimento de tumores ou até o canto de algumas aves.
Investigadores americanos avaliaram o chilrear de três espécies de aves, a carriça da Carolina (Thryothorus ludovicianus), da curruíra (Troglodytes aedon) e do pardal-cantor (Melospiza melodia), numa área contaminada por mercúrio – South River, na Virgínia.
Esta área industrial foi contaminada durante mais de 30 anos, sendo os níveis de mercúrio no sangue e nas penas das aves desta região muito superiores ao das aves de áreas circundantes.
Este grupo de pássaros adquire as suas capacidades sonoras de “ouvido”, ou seja por intermédio da audição de outras aves. Este facto exclui que diferentes performances sonoras possam ser de origem genética, sendo antes um reflexo de aprendizagens distintas. Desta forma, podem ser avaliadas as implicações ambientais nas alterações dos trinados das aves.
Apesar dos resultados estarem condicionados pela diminuta amostra (veja-se, por exemplo a recta de regressão), este trabalho indicia que as aves em terrenos contaminados por mercúrio apresentam uma menor diversidade de sons emitidos do que as mesmas aves de terrenos não-contaminados.
O mercúrio parece ter assim um papel uniformizante de uma característica que tanto apreciamos nas aves: o canto.
Mas porquê? Estariam estes pássaros a enlouquecer, como os chapeleiros do século XIX?Os resultados apoiam outros autores que já anteriormente haviam demonstrado que aves vivendo próximo de siderurgias apresentavam transtornos semelhantes, isto é, os seus cantos eram menos diversificados do que aves vivendo em áreas não-contaminadas.
Poderemos pensar que se vivêssemos perto de uma siderurgia também teríamos pouca vontade de cantar….é verdade.
Mas o click para este problema musical está no facto de que as contaminações por metais, como por exemplo o mercúrio, alteram a capacidade auditiva das aves juvenis, impedindo-as de escutar na plenitude as “lições” musicais do seus pais.
Dito de outra forma: a cantoria das aves de South River tornou-se minimalista, menos diversificada, tanto no nível de intensidade, como na variedade de tons emitidos, devido às aves juvenis ouvirem mal os seus pais – os pais de adolescentes sabem do que estou a falar…
Referências:
1 – Hallinger, K., Zabransky, D., Kazmer, K., & Cristol, D. (2010). Birdsong Differs between Mercury-polluted and Reference Sites The Auk, 127 (1), 156-161 DOI: 10.1525/auk.2009.09058
2 – Jacob, V. (2005). The Elements of Murder. A History of Poison. Von John Emsley. Angewandte Chemie International Edition, 44 (45), 7332-7332 DOI: 10.1002/anie.200585343
3 – Waldron HA (1983). Did the Mad Hatter have mercury poisoning? British medical journal (Clinical research ed.), 287 (6409) PMID: 6418283
4 – excertos de “Alice no País das Maravilhas”
Imagens:
Peter Blake `For instance now, now there’s the King’s messenger’ , 1970
Francisco de Goya Y Lucientes, The Yard of a Madhouse, 1794 – daqui
Thryothorus ludovicianus: daqui
Gráfico – de 1.
A Cobra e o Bebé
Casos em que um vertebrado é fossilizado durante a sua actividade biológica são raros.
Mas existem alguns – veja-se “O Falso Culpado” ou “O Mamífero Que Comia Dinossáurios”, por exemplo.
Hoje é publicado na PLoS Biology um caso surpreendente.
Os intervenientes procedem são não só de dois grupos de vertebrados distintos, em associação próxima e com idades distintas, mas sobretudo porque tanto o predador como a presa ficaram impressos na rocha.
Os restos preservados são de uma nova espécie de cobra – Sanajeh indicus ( gen. et sp. nov.), descoberta junto a ovos e crias de dinossauros saurópodes, mais concretamente de um grupo titanosauros – saurópodes muito diversificado no final do Cretácico.
A cobra, que podia atingir 3.5 metros, encontrava-se enrolada entre os ovos, e a uma distância muito curta dos recém-nascidos, que não apresentavam mais de 50 centímetros.
Quer a cobra como os jovens dinossauros e ovos foram fossilizadas devido à sua cobertura muito rápida por sedimentos, revelando assim que a cobra se encontraria em pleno processo de caça, alimentando-se de ovos e, provavelmente, também de crias de dinossauro.
A análise da Sanajeh indicus revelou que era um membro primitivo dos Macrostomata, embora ainda não apresentasse as características morfológicas típicas daquele grupo, como a capacidade de deslocarem a mandíbula de forma a poderem ingerir presas de grande porte.
As rochas de que provêm estes fósseis foram descobertas em 1984, junto à povoação de Dholi Dungri, na parte ocidental da Índia. O paleontólogo Jeffrey Wilson, da Universidade do Michigan, procedeu à reanálise em 2001 dos blocos de sedimentos, tendo chegado à conclusão de que as vértebras seriam da nova espécie de serpente agora descrita. Os blocos foram posteriormente levados para o Michigan, onde tratamento e análise posteriores permitiram revelar o que é hoje publicado.
Referências:
Wilson J, Mohabey D, Peters S, Head J (2010) Predation upon hatchling
dinosaurs by a new snake from the Late Cretaceous of India. PLoS Biology 8(3):
e1000322. doi:10.1371/journal.pbio.1000322.
Wilson J, Mohabey D, Peters S, & Head J (2010). Predation upon hatchling dinosaurs by a new snake from the Late Cretaceous of India.
PLoS Biology, 8(3) : 10.1371/journal.pbio.1000322.
Nota:
Por motivos de comodidade de escrita e de compreensão utilizei os termos “cobra” e “serpente” como sinónimos. Esta opção pode induzir em erro os leitores menos familiarizados com a classificação do grupo Serpentes, grupo que apresenta, mesmo para especialistas, inúmeras incertezas ao nível das suas relações basais.
Imagens:
Sculpture by Tyler Keillor and original photography by Ximena Erickson; image modified by Bonnie Miljour. doi:10.1371/journal.pbio.1000321.g001
As outras duas imagens, artigo.
Sinfonia de Ciência
Um sortido de opiniões sobre o que é a Ciência, por vários brilhantes profissionais.
Olhando também para a forma, uma vez que o conteúdo é excelente, digo apenas:
não deixem os vossos empregos
A Debandada do Intelecto
Tenho assistido, com perplexidade e por vezes com deleite assustado, a inúmeras manifestações de irracionalidade, originadas nas recentes catástrofes – Haiti, Madeira, Chile e o mau tempo de sábado.
Alguns dos que lia no Twitter associavam fenómenos como o aquecimento global com sismos; o relativo mau tempo com o recrudescimento de vulcanismo; e as derrocadas madeirenses a uma qualquer reacção vingativa da Natureza.
De quase tudo li no Twitter.
Esta confusão generalizada de conceitos e fenómenos, imbuídos de um neo-animismo vingativo, confirma que a irracionalidade grassa em situações de crise, ainda que não directamente vivenciadas, relatadas quase em directo pelos novos meios de comunicação.
O absurdo quase generalizado atesta ainda que, por muita informação de que se disponha, e esta jorra de todo o lado em maior quantidade e de forma quase instantânea, esta parece ter apenas como resultado o ampliar do efeito manada embrutecida.
A informação, que deveria filtrar os medos e temores mais irracionais, parece apenas gerar novas confusões e a debandada do intelecto.
Imagem:
Agostino Carracci – The Flood – 1616-1618.
Famelab – concurso falar de Ciência
Informação recebida:
“FameLab.
O que é?
O FameLab é uma iniciativa do Cheltenham Science Festival, sob a forma de um concurso de comunicação científica. É apoiado desde 2006 pelo British Council, que o expandiu a outros países. Em 2010 decorre pela primeira vez em Portugal, em parceria com a Ciência Viva.
Em comunicações de 3 minutos, os participantes apresentam um tema científico para um público não especializado.
Quem pode participar?
O concurso destina-se a todos os interessados, a partir dos 18 anos de idade, que trabalhem ou estudem em ciência e tecnologia.
O concurso não se destina a profissionais da comunicação ou das artes.
Como decorre?
Fase de Pré-selecção (a partir de vídeo). Concorrentes enviam o registo em vídeo da sua comunicação (máx. 3 minutos). As apresentações devem ser dinâmicas, cientificamente correctas e muito claras. As melhores serão seleccionadas para a fase seguinte do Concurso – fase presencial. A data limite de submissão dos vídeos é 31 de Março de 2010.
Fase de selecção presencial (semi-final). Concorrentes apresentam a sua comunicação, ao vivo, perante um júri. Decorre a 17 de Abril de 2010.
Masterclass. Os participantes seleccionados para a Final Nacional frequentam uma MasterClass sobre comunicação de ciência, conduzida por um profissional do Cheltenham Science Festival e um profissional português. Decorre no fim-de-semana de 1 e 2 de Maio de 2010.
Final Nacional. Apresentação final perante um júri, a 8 de Maio de 2010. O vencedor nacional irá participar na final internacional do FameLab.
Data limite para submissão do registo vídeo: 31 de Março de 2010.
A final do FameLab Internacional
Os vencedores dos países participantes competem na final internacional, no Cheltenham Science Festival, no Reino Unido.
Calendário: de 9 a 13 de Junho de 2010
Site do FameLab Internacional.
Regulamento (PDF) ”
Tragédia na Madeira: um desastre já anunciado há dois anos
Depois da tragédia, pensar no que poderá ser (poderia ter sido) feito.
Um excerto do programa Bioesfera (RTP2) de Abril de 2008.
P.S: link sugerido por José Carlos Ferreira, no mailing list GEOPOR.
Tento na Língua
Nenhum dos casos é muito agradável, muito menos para mentes eticamente bem formadas ou estômagos sensíveis.
Ainda assim, encontro-lhes pontos de contacto.
O parasita Cymothoa exigua é um crustáceo isópode que actua de maneira singular.
Explico, enquanto se torcem.
Já na boca do peixe, o C. exigua fixa-se na boca do peixe por intermédio de patas semelhantes a ganchos (pereópodes), começando por sugar o sangue dos tecidos da língua, até que esta acaba por atrofiar.
Após o repasto, que pode durar algum tempo, o parasita de até quatro centímetros, passa a alimentar-se do que o peixe ingere, substituindo-lhe a língua por completo.
Curiosa é a semelhança de forma entre a desaparecida língua do peixe e o recém instalado. Para além de função análoga, já que o parasita desempenha a usurpação lingual com enorme competência, também o aspecto da cavidade bucal do peixe parece quase inalterada. Brusca e Gilligan avançam com a hipótese de que peixes parasitados poderão ter melhor desempenho alimentar que peixes sem língua.
Ou seja, em termos de eficiência, esta relação parasítica parece conceder alguma vantagem sobre patologia ou doenças que afectem a língua de peixes.
Pois…melhor uma língua substituta que nenhuma, parece ser a conclusão.
Quanto ao segundo caso, apenas deixo um vídeo.
Deixo aos leitores o estabelecimento de paralelismos.
A existirem.
Referências:
Brusca, R.C. and Gilligan, M.R. (1983): Tongue replacement in a marine fish (Lutjanus guttatus) by a parasitic isopod (Crustacea: Isopoda). Copeia 813-816.
Brusca, R., & Gilligan, M. (1983). Tongue Replacement in a Marine Fish (Lutjanus guttatus) by a Parasitic Isopod (Crustacea: Isopoda) Copeia, 1983 (3) DOI: 10.2307/1444352
Mark Carwardine. 2005.Natureza radical. Ediouro Publicações Ltda. Rio de Janeiro.
Zimmer, C. 2000. Parasite Rex. Arrow Books. London.
Imagens:
Matthew Gilligan – primeira, adaptada do livro de Mark Carwardine; segunda daqui
Umami e Engenheiros
Dois artigos de enorme importância, embora em contextos muitos diferentes.
Abrem-nos os olhos sobre o que pensávamos saber, de realidades sobre que discutimos inúmeras vezes mas que, pelos vistos, desconhecemos os verdadeiros significados e contornos.
Ambos no El País de hoje.
O primeiro revela-nos um quinto sabor, para além dos clássicos doce, salgado, amargo e ácido.
O neo sabor dá pelo nome de umami (saboroso em japonês).
Mais sobre o umami no artigo digitalizado aqui
A segunda notícia desfaz-nos os arreigados estereótipos sobre o terrorismo islâmico.
Resumindo um artigo do European Journal of Sociology, intitulado “Why are there so many Engineers among Islamic Radicals?”, o jornalista do El País abre-nos os olhos para uma realidade que provavelmente é mais assustadora do que pensaríamos.
Entre outras conclusões, as de que os terroristas islâmicos têm formação superior, na sua maioria engenheiros, e que apenas um pequena minoria tem uma vida religiosa activa.
O artigo do El País digitalizado aqui.
O artigo do European Journal of Sociology aqui (PDF)
Gambetta, D., & Hertog, S. (2009). Why are there so many Engineers among Islamic Radicals? European Journal of Sociology, 50 (02) DOI: 10.1017/S0003975609990129
Imagens:
daqui e daqui
Água Que Queima
A natureza de algo nunca é parece o que ser.
É mais. Ou menos. Mas exactamente aquilo que parece ser, é raro.
Uma gota de água. Cristalina. Fresca.
Ainda assim, e apoiando o senso comum de um qualquer agricultor ou mero jardineiro de fim-de-semana, o refrescante efeito da rega durante as horas de maior calor pode não ser o desejado.
Mais.
As gotas de água que caem sobre a folhagem poderão provocar queimaduras nos tecidos vegetais.
Cada gota irá funcionar como uma lente ampliando o efeito energético sobre as folhas da vegetação conduzindo assim ao efeito contrário do que se pretenderia.
Referência:
Ádám Egri, Ákos Horváth, György Kriska and Gábor Horváth. Optics of sunlit water drops on leaves: conditions under which sunburn is possible. New Phytologist. (2009) doi: 10.1111/j.1469-8137.2009.03150.x
Abstract
“It is a widespread belief that plants must not be watered in the midday sunshine, because water drops adhering to leaves can cause leaf burn as a result of the intense focused sunlight. The problem of light focusing by water drops on plants has never been thoroughly investigated.
Here, we conducted both computational and experimental studies of this phyto-optical phenomenon in order to clarify the specific environmental conditions under which sunlit water drops can cause leaf burn.
We found that a spheroid drop at solar elevation angle θ ≈ 23°, corresponding to early morning or late afternoon, produces a maximum intensity of focused sunlight on the leaf outside the drop’s imprint. Our experiments demonstrated that sunlit glass spheres placed on horizontal smooth Acer platanoides (maple) leaves can cause serious leaf burn on sunny summer days.
By contrast, sunlit water drops, ranging from spheroid to flat lens-shaped, on horizontal hairless leaves of Ginkgo biloba and Acer platanoides did not cause burn damage. However, we showed that highly refractive spheroid water drops held ‘in focus’ by hydrophobic wax hairs on leaves of Salvinia natans (floating fern) can indeed cause sunburn because of the extremely high light intensity in the focal regions, and the loss of water cooling as a result of the lack of intimate contact between drops and the leaf tissue.”
Imagens:
Luís Azevedo Rodrigues
(com Nokia N73)
e do artigo