No verbete “Michèle Le Doeuff”, Izilda Johanson escreve sobre essa filósofa feminista francesa que, mesmo sem o incentivo da família, ingressou na carreira de filosofia e se tornou professora. Ela chegou a escrever no famoso jornal feminista francês Questions Féministes (Questões Feministas) textos que expressavam já nos anos setenta sua concepção de um conhecimento que fosse comprometido com a libertação em relação às discriminações no âmbito acadêmico, discriminações essas que, na concepção de Le Doeuff, têm efeito no desenvolvimento do conhecimento.
Izilda Johanson mostra como a ligação entre os temas “mulher” e “filosofia” é a questão central da filosofia de Le Doeuff, para a qual a crítica ao sexismo é essencial quando o objetivo é impedir o fortalecimento de maneiras de pensar que reiterem e auxiliem na manutenção de estruturas de opressões.
Se a filosofia se constituiu majoritariamente por meio de um lógos do qual se apropriaram os homens, ela não pode, contudo, ser legitimada como unicamente masculina. É nesse sentido que Le Doeuff dedica grande parte de sua obra a mostrar que houveram sim mulheres filósofas, e a resgatar seus trabalhos. O intuito da autora é jogar por terra a falsa ideia de que a produção filosófica de mulheres é algo recente, e mostrar que sempre houveram mulheres filósofas, mesmo que suas existências — ocultadas por uma filosofia majoritariamente masculina — com frequência não apareçam.
Izilda Johanson é professora associada do curso e do programa de pós-graduação de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de coordenadora da área de igualdade de gênero e diversidade sexual do Escritório de Ações Afirmativas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Unifesp. É também vice-coordenadora do GT Filosofia e Gênero da ANPOF e membra da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Seu trabalho de pesquisa concentra-se na área de filosofia contemporânea, com ênfase nos temas relacionados ao vital, à criação, à subjetividade, e também às questões de gênero e os estudos feministas e decoloniais.
Ficou curiosa para saber mais sobre o pensamento de Michèle Le Doeuff? Então leia esse interessante verbete aqui e acesse a entrevista com a autora aqui.
Michèle Le Doeuff
(1948)
por Izilda Johanson
Professora Associada do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – Lattes
Michèle Le Doeuff nasceu na região francesa da Bretanha, em Motreff, Finistère, no dia16 de abril de 1948. Filha de família modesta, seus pais, embora professores na cidade, pouco investiram em seus estudos, uma vez que a reserva do orçamento familiar para educação e formação superior destinava-se unicamente ao filho mais velho. Em sentido contrário ao que a família lhe propunha, Michèle Le Doeuff ingressa, em 1966, na École Normale Supérieure (ENS) de Fontenay-aux-Roses, à época uma instituição não mista que oferecia bolsas de estudo às suas alunas. Em 1968 inicia o mestrado em filosofia sob a orientação de Vladimir Jankélévitch. Em 1971 é aprovada em concurso para carreira docente (agrégation) e leciona por curto período no ensino médio. Em 1972 ingressa na carreira universitária, torna-se professora assistente (maîtresse-assistente), em seguida, professora pesquisadora (maîtresse de conférence) na ENS de Fontenay. Ali organizou, entre os anos de 1976 e 1978, o que veio a ser, até onde se tem notícia, o primeiro seminário na França consagrado ao tema mulheres e filosofia, e também aquele no qual, pela primeira vez, a obra de Simone de Beauvoir torna-se objeto de ensino. Do núcleo temático desse seminário originou-se “Cabelos longos, ideias curtas” (Cheveux longs, idées courtes), ensaio publicado primeiramente em inglês, em 1977, na Revista Radical Philosophy e depois no corpo do volume L’Imaginaire Philosophique (O Imaginário Filosófico), seu primeiro livro (Payot), em 1980.
Coordenadamente ao trabalho acadêmico universitário na filosofia, seu engajamento político a levou aos movimentos feministas nos anos 1960-70. Participou das manifestações de rua do nascente Movimento de Liberação das Mulheres (Mouvement de Libération des Femmes – MLF) e, como militante ativa, integrou o Movimento pela Liberdade de Aborto e de Contracepção (MLAC). Em 1979 participa do Colóquio comemorativo dos trinta anos de publicação de O segundo sexo, em Nova York. Publica, a propósito deste, em Le Magazine Littéraire, o artigo “De l’existencialisme au deuxième sexe” (O existencialismo no Segundo Sexo), passando a desempenhar um papel pioneiro e de referência também nos estudos beauvoirianos: Michèle Le Doeuff foi a primeira pensadora a ler e a estudar criticamente a obra e o feminismo de Simone de Beauvoir de um ponto de vista conceitual, isto é, como um pensamento autônomo e autêntico na e da Filosofia, cuja originalidade se destaca, em meio a uma abordagem histórico filosófica e de perspectiva feminista.
Concluiu o doutorado em 1980 com a tese Recherches sur l’Imaginaire philosophique (Investigações sobre o Imaginário Filosófico), sob a orientação de Hélène Védrine, na Universidade de Paris I – Sorbonne. Nesta, Michèle Le Doeuff apresenta algumas das principais diretrizes de sua filosofia e também as questões essenciais que a levarão ao seu segundo livro, L’Étude et le rouet – Des femmes, de la philosophie, etc (O Estudo e a Roca. Mulheres, filosofia etc), de 1989 (Seuil), no qual ela expande e aprofunda o tema mulher e filosofia, destacando e desenvolvendo reflexões pontuadas inicialmente em “Cheveux longs, ideés courtes”.
Em 1983 ingressa no CNRS (Centre National de Recherche Cientifique) como integrante de equipe de estudos do século XVII; em 1986, assume a posição de pesquisadora. Pouco depois ingressa no CRAL (Centre de Recherche en Arts et Langage) da EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales), onde é diretora de pesquisa desde 1998. Nesse mesmo ano de 1998 publica sua terceira grande obra, Le sexe du savoir (O sexo do saber). De 1994 até 1996 atua como professora na Universidade de Genebra, Suíça, onde também cria a cátedra de Estudos Femininos. Desde 1976 destaca-se como pioneira nos estudos beauvoirianos, e também como pensadora e tradutora de Francis Bacon, Thomas More e Shakespeare. Como professora convidada, leciona regularmente desde a década de 1980 na Universidade de Oxford.
Escreveu em Questions Féministes (Questões Feministas – revista criada por Simone de Beauvoir, dirigida inicialmente pelas intelectuais feministas que despontavam na década de 1970 na França e reeditada posteriormente como Nouvelles Questions Féministes (Novas Questões Feministas) – artigos de grande relevância e que são expressão de sua concepção de um conhecimento engajado na libertação em relação a preconceitos e discriminações também no mundo da pesquisa. Seu trabalho vem até hoje denunciando o sexismo, tanto no campo acadêmico quanto na produção de textos e discursos filosóficos e, ao mesmo tempo, revelando seus efeitos no desenvolvimento e transmissão do conhecimento.
Tema e conceitos principais
A ligação entre mulher e filosofia é o tema central, ou pedra de toque, da filosofia ledoeuffiana, e a perspectiva como ela constrói esse tema tem sido determinante e transformadora para a prática no campo filosófico.
Vale destacar, em primeiro lugar, que sua abordagem exclui qualquer coisa que possa se passar por justificativa para a associação da mulher com o conhecimento. Para Michèle Le Doeuff, está excluída a perspectiva que trata da questão mulher e filosofia tomando como ponto de partida o conhecimento pronto e estabelecido sobre o que seja a mulher, dada a profusão inequívoca de interesses e de pontos de vistas alheios, e mesmo contrários, à realidade das mulheres concretas, de carne, osso e história (em todos os tempos) entrelaçados nele em forma de tramas discursivas muito próprias e particulares. Ela é enfática quanto ao fato de que, se há um falso problema em filosofia, é esse de procurar justificar por que uma mulher pode ser filósofa [ver prefácio de Le sexe du savoir – O Sexo do saber]. Sua abordagem passa ao largo, portanto, de abordagens de tipo reativo, e tanto quanto de outras cujo investimento intelectual e teórico volta-se primordialmente à produção de modos de ser ou modalidades de pensamento sexuado. Michèle Le Doeuff faz a crítica do sexismo em filosofia e alhures – em relação à produção de conhecimento de modo geral –, pondo em xeque, precisamente, e não reiterando os binarismos que, do ponto de vista crítico, se revelarão, no mais, estratégicos para a manutenção das estruturas de poder e de opressões as quais, na verdade, se quer combater.
Por essa mesma razão, estará também fora de questão o empreendimento de outro tipo de discurso que, sob o propósito de construir a diferença pressuposta entre a mulher e o homem –consequentemente, entre um pretendido pensar “como mulher” (ou um pensamento essencialmente feminino) do pensamento essencialmente masculino, notadamente dominante e hegemônico –, acabe desse modo por legitimar justamente o discurso e toda a produção que edifica e acompanha esse mesmo sexo masculino do qual pretende se diferenciar. Le Doeuff sustenta com firmeza que a racionalidade não é exclusividade dos homens (e nem de ninguém em particular, de nenhum gênero, nenhuma raça, nenhum tempo histórico, nem localização planetária, nem cultura, nem classe social etc.) e que a própria teoria que estabelece que o lógos seja apanágio do sexo masculino, como a de certos feminismos da diferença, constituem-se, afinal, por meio de uma racionalidade que, por si, atesta justamente o contrário daquilo que quer fazer valer.
Dito de um modo afirmativo, para Michèle Le Doeuff, cabe às mulheres que escolheram ser filósofas – e é necessário que todas possam, de fato, escolher –, tomar a palavra. Tomar a palavra na filosofia e por meio dela, entendendo que essa filosofia que tem nos formado (muitas vezes nos conformado), faz-se predominantemente por meio de um lógos que, embora se tenham apropriado dele os indivíduos homens, não pode, no entanto, ser legitimado como exclusividade masculina.
Cabe a nós, mulheres, tomarmos a palavra, irrestritamente e incondicionalmente O que significa também, e em filosofia mais especificamente, recusarmos ser protegidas, isto é, submetidas a tutelas de todo tipo: seja da tradição (a qual filosofia estabelecida deveríamos nos consagrar?), seja de autoridades filosóficas do presente ou do passado (os mestres e especialistas que nos mostram, geralmente com interesse e prazer, os caminhos que podem e que não podem ser seguidos), seja da própria história da filosofia que nos é ensinada nas escolas e universidades, tão parcial e incompleta (que, por exemplo, apaga e exclui as mulheres pensadoras e suas filosofias; e não apenas elas…).
O feminismo, para Michèle Le Doeuff, constitui-se fundamentalmente nesse projeto e nessa prática de criar um lugar: não exatamente para “a” mulher, para “o feminino” ou aquilo que difere do masculino – este ponto, em Michèle Le Doeuff, é essencial –, mas um lugar na filosofia em que ser mulher e ser sujeito do conhecimento não sejam coisas incompatíveis.
Ser feminista é também uma maneira de integrar o fato de ser filósofa. Pois, há séculos, uma feminista é uma mulher que não confia a ninguém o cuidado de pensar em seu lugar; de pensar de modo geral e, mais particularmente, de pensar o que é a condição feminina, ou o que ela deveria ser [Le Doeuff, 1989, p. 41].
Logo no início da primeira parte desse livro, Le Doeuff retoma a passagem bastante conhecida da abertura de O segundo sexo, na qual Simone de Beauvoir diz ter hesitado durante muito tempo em escrever um livro sobre mulheres; esse tema, afirma, era irritante para ela. De fato, assim como Beauvoir e Michèle Le Doeuff, muitas de nós, mulheres e filósofas preferiríamos não ter de tratar desse assunto que, até hoje, para muitas e muitos dentro e fora da filosofia, sequer existe! Nós existimos, certamente, mas a “questão da mulher” (ou “de gênero”) – dizem tantos por aí – isso não existe. No entanto, continua Beauvoir, sabemos bastante bem que desde muito tempo e até hoje muito se tem dito sobre nós, mulheres, sobre o que somos, o que desejamos, a respeito do que somos ou não capazes: tudo isso em nossa ausência e, principalmente, a despeito do que se passa em nossa existência real concreta. Por isso, as dificuldades de uma mulher enfrentar esse tema, como sugere Simone de Beauvoir, não são poucas, nem superficiais, nem leves, já que esses discursos são instituídos por quem tem o poder de prover o mundo de verdades. Em contrapartida, nos mostra de modo particular Michèle Le Doeuff, é também principalmente por nos vermos e nos reconhecermos nessa situação, algo como que estrangeiras no próprio país e tão frequentemente pouco à vontade num mundo – o filosófico – em que não há como nos sentirmos em casa, que a necessidade de tomar a palavra se instala, mesmo que isso implique entrar em confronto com a ordem vigente. É neste sentido principalmente que ser feminista é uma maneira de integrar o fato de ser filósofa, pois dizer, a partir de nós, o que somos, pode nos levar muito além, isto é, para o ponto em que nos encontramos verdadeiramente com a filosofia. A investigação e a produção de conhecimentos sobre a mulher real concreta abre caminho – e isto é precisamente o que se passa na filosofia ledoeuffiana – para uma crítica por meio da qual se revelam certa estrutura e certa urdidura também dessa filosofia que tem constituído a mulher como seu objeto.
A obra de Michèle Le Doeuff não se detém, mas se destaca, na tarefa de resgatar da história a produção filosófica de mulheres, tendo estado continuamente engajada na tarefa de desfazer o velho mito de que a entrada delas na filosofia seria coisa recente em termos históricos (algo que teria acontecido, como é comum ouvirmos, apenas por volta do século XX). Nela é dada importante ênfase a uma história que mostra que, há séculos, mulheres filosofam, e se suas existências não costumam vicejar nessas histórias da filosofia mais consagradas, ensinadas e difundidas, por exemplo, nas escolas e universidades de modo geral (no Brasil e mundo afora), é porque foram no mais das vezes inviabilizadas pelos agentes de uma filosofia hegemonicamente falocrática e masculinista [este último termo, cunhado por Michèle Le Doeuff, assume o sentido desse “particularismo que não considera apenas a história ou a vida social dos homens, mas também duplica essa limitação com uma afirmação (só eles e seus pontos de vista contam)” – L’Étude et le rouet, (O estudo e a roca), p. 55]. O ponto central aqui deverá nos dirigir, portanto, à questão de quem efetivamente vai contar essa história, mas não só isso: o modo como ela é contada, os meios como constituem seus discursos de exclusão, seus recursos, seus pontos de referência, tudo isso será, precisamente, decisivo. Le Doeuff mostrará que o modo como se inviabilizam as mulheres, o modo como estas foram excluídas do campo da ação e da produção de conhecimento (atrelado a um tipo de lógos infalível) não é algo nem um pouco irrelevante, nem necessariamente simples, muito menos óbvio. Há estratégias que estabelecem modos mais ou menos variáveis desse masculinismo filosófico se constituir: por meio de estratégias complexas produtoras de discursos de exclusão às vezes diretos e explícitos, outras vezes dissimulados e insidiosos, cujos efeitos podem ser mais subliminares e sutis. De todo modo, será principalmente essa questão da relação das mulheres com o que é propriamente filosófico que nos colocará no caminho do principal conceito da filosofia ledoeuffiana de imaginário filosófico.
“… jamais me embaracei com a racionalidade filosófica. Com sua irracionalidade, é outra coisa. Mais precisamente, parece-me que a filosofia não emana de uma ‘racionalidade’ propriamente ‘masculina’, mas que frequentemente induz um imaginário misógino, tentando ser mais do que é. Ao tentar fazer funcionar a racionalização para além de suas possibilidades” [Le Doeuff, 1980, p. 134].
A filosofia não se faz de racionalidade pura, lembra-nos Michèle Le Doeuff, ela está povoada de imagens: cavernas, árvores, ilhas, terras e… mulheres! No que diz respeito a essas imagens, ou melhor, à relação desse imaginário com o lógos filosófico, não será difícil notar que, mesmo guardadas as especificidades e singularidades de cada filosofia, as mulheres, quando nelas aparecem, costumam estar do lado desse imaginário, não do lado da racionalidade. Mais precisamente, como Michèle Le Doeuff faz notar, a mulher costuma surgir no lugar desse Outro do lógos filosófico, o qual, por sua vez, remonta a uma racionalidade consagrada ao Mesmo e, por isso, deve permanecer estranho às mulheres.
A filosofia profissional, afirma Le Doeuff, nos faculta lidar e elaborar as questões de maneira propriamente filosófica. É assim que ela própria procede e, ao fazê-lo, mostra, em primeiro lugar, que o sexismo e a misoginia não são apenas problemas de ordem social: para uma filosofia que incorpora a crítica, este e esta se apresentam como falhas teóricas também. Aqui pode estar o ponto de partida – e, no caso de Michèle Le Doeuff, o é –, para a constituição de um problema propriamente filosófico. A misoginia como falha teórica estará, pois, na base do conceito ledoeuffiano de imaginário filosófico.
Esse imaginário, tal como nossa autora o descreve, é, antes de tudo, um lugar onde a filosofia com pretensões universalistas deposita, aloca, a figura de mulher que quer – e necessita – construir: precisamente, em oposição ao que pretende colocar no lugar do que é, do ser, ou seja, o humano ativo, racional, livre (não por coincidência, todos sinônimos de “ser homem”). O discurso filosófico tem lá seus pontos vulneráveis, suas brechas, suas aberturas para regiões para além de seu domínio, contudo, cioso de garantir sua completude e com pretensões de autofundação, esse discurso cria o seu “fora”, seu exterior, fazendo deste um lugar de negações. Nele lançará as mulheres (e não só as mulheres, mas também negros e negras, os ditos primitivos e colonizados, as crianças); melhor dizendo, nele lançará certas imagens de mulher, uma vez que estas carregam pouco ou nenhum vínculo com as mulheres reais de carne, osso, história. Esta será a constatação que lançará Michèle Le Doeuff na direção de o que ela chamou de “a descoberta do segredo de polichinelo: a liberdade do imaginário face ao real” (Le Doeuff, 1980, p. 134). São esse imaginário e, principalmente, suas implicações para o campo filosófico, que a autora vai explorar.
Entre elas está o entendimento que apresenta a imagem como o retalho de um imaginário que não é inteiramente estranho ao saber que o discurso visa empreender, nem também, por outro lado, um recurso, espécie de aliado deste no trabalho de atingir algo de mais concreto ou sensível em seu leitor a fim de auxiliá-lo na travessia de um programa cuja natureza seja teórica, isto é, predominantemente abstrata.
“que a imagem seja radicalmente heterogênea ou completamente isomórfica aos corpos de conceitos que ela traduziria na linguagem do Outro, o estatuto de elemento do trabalho filosófico lhe é recusado – ela não é uma parte da empreitada; nos dois casos, ela é reveladora daquilo que Foucault chama de teratologia de um saber – e daquilo que o bom leitor, aquele que passou pela disciplina filosófica, deve saber passar ao largo” [Le Deouff, 1980, p. 16-17].
Em relação a essas duas alternativas, excludentes entre si e frequentemente identificadas nos discursos filosóficos, a via que Michèle Le Doeuff propõe é uma terceira, como ela própria esclarece (ver Le Doeuff, p. 11), na qual as imagens participam no discurso não como elemento exógeno ao texto mas, ao contrário, imbuídas de certo “status filosófico”. Dessas imagens a obra não pode prescindir, uma vez que elas são solidárias do conceito empreendido pelo edifício teórico (sistema ou construto conceitual de modo geral) e interno a ele. Nem uma psicanálise do conhecimento, como propõe Gaston Bachelard (pois não se trata de denunciar um imaginário inconscientemente presente na edificação do conhecimento); nem também, por outro lado, um imaginário mítico, arcaico, disposto a fazer a ligação entre o conhecimento erudito e letrado do filósofo e a sensibilidade vulgar, o senso comum, um imaginário mitológico, ou arquetípico, de tipo junguiano, por exemplo.
Trata-se, enfim, para Le Doeuff, de encontrar algumas vias por meio das quais certo imaginário (notadamente sobre o ser mulher) se constitui internamente, por contraste ao conhecimento que se pretende racional, discursivo, objetivo; e que não vem apenas preencher uma lacuna do empreendimento teórico, mas estruturar também a subjetividade do filósofo, aquela mesma que ele revela por si na medida em que é instruído por imagens, pode-se dizer, legitimadas pela tradição.
De fato, esse imaginário filosófico é de natureza ambivalente: torna-se referência tanto de uma contradição interna do pensamento produzido, já que o aparato conceitual que visa produzir não deve ser, por princípio, da ordem do imagético, quanto do seu oposto, isto é, uma cumplicidade secreta com ele: torna-se, enfim, o lugar em que esse sistema, ou construto de pensamento, vem depositar seus inevitáveis impossíveis, e também seus fantasmas, seus limites, numa palavra, o seu Outro.
Mas e quanto às mulheres que somos nós, de carne e osso, que têm vida, história e, assim como Hipárquia de Maroneia (c. 325 a.C.), escolheram filosofar? Qual poderia ser nosso lugar, afinal? (o título do segundo livro de Michèle Le Doeuff, L’Étude et le rouet, faz referência direta ao objeto de escolha de Hipárquia, filósofa cínica mencionada no compêndio de Diógenes de Laércio, no qual é narrada uma disputa com Teodoro, vencida por ela; diante deste fato, Teodoro reage mal, arrancando-lhe as vestes, expondo o seu corpo (de mulher) e interpelando-a a respeito da pertinência da sua presença entre pensadores (homens); Hipárquia demonstra não se abalar com o ataque e rebate com a célebre indagação: “acreditas, Teodoro, que tomei uma decisão errada se dediquei à minha educação o tempo que teria dedicado ao tear?” – Laércio Diógenes, 1987, Livro VI, capítulo 7, p. 177) .
Vimos que nessa filosofia da tradição não há um lugar legítimo no qual podemos nos colocar; no entanto, isto não significa, não pode significar, que a mulher esteja para sempre alijada do filosofar. Pois, para Le Doeuff, essa filosofia que se constrói sobre a falta e recalca uma incompletude que lhe é, pode-se dizer, estrutural, não é a única nem a melhor filosofia possível. Assim, a presença da mulher real na filosofia estará sempre relacionada à própria possibilidade de se pensar e se produzir uma filosofia mais próxima e receptiva à realidade da própria natureza do filosofar.
O lugar de onde filosofamos e filosofaremos não será, portanto, esse “lugar-outro” reservado à alteridade absoluta e puramente negativa: não é na condição de outro, de não filosófico ou mesmo de anti-filosófico que construiremos um lugar para nós. Por outro lado, entende-se também que não seja possível filosofar pelo lado de fora: é preciso dizer por dentro da filosofia, e por meio da filosofia, o que se tem a dizer, inclusive e principalmente, a respeito dela mesma. Mas de qual filosofia? De saída, sabemos que a metafísica, que nos fecha numa vertigem de absoluto, o qual por sua vez se apodera da filosofia com pretensões totalizantes, não é uma alternativa, uma vez que é sobretudo ela que sustenta a relação do binarismo de gênero com o binarismo racionalidade-desordem. Como fazer e promover, afinal, a abertura sobre a história, ao invés de se constituir sobre uma falta?
… eu diria que o futuro de uma filosofia que não mais fosse antifeminista joga-se em algum lugar do lado da dramaturgia brechtiana, que (não sou a primeira a dizê-lo) produz peças inacabadas às quais falta sempre um ato e que estão por isso escancaradas para a história. Insistir sobre a falta própria à filosofia, fazendo dessa falta não um defeito, mas a condição de sua inserção no real histórico, permite deslocar a filosofia para um lugar onde a alternativa entre uma razão hegemônica e uma revolta da desrazão toma a figura de uma oposição mítica, isto é, de conivência ou de cumplicidade entre formas que se dizem contrárias [Le Doeuff, 1980, p. 154).
A perspectiva crítica e reflexiva de Michèle Le Doeuff não se faz em torno de nenhum centro privilegiado e incide de modo crítico sobre as hierarquias de saberes e de poderes. Deste modo, os binarismos, o androcentrismo e o discurso falocrático da filosofia dão lugar ao discurso sem centro, sem topo, sem hierarquia ontológica, epistemológica, social, intelectual, material, cultural. A partir de filosofias constituídas historicamente, Le Doeuff instaura seu ponto de vista – feminista – de leitura e, a partir dele, produz novos conceitos: a partir dos quais uma mulher, pensadora, constitui-se não mais como objeto e, sim, como sujeito do conhecimento. De todo modo,
“Enquanto se espera que tal posição a respeito do saber tenha conquistado um lugar que não seja marginal na prática filosófica, resta o discurso ainda hoje dominante de uma ciência filosófica acima de qualquer suspeita. […] As mulheres resistem talvez melhor aos gestos de anexação de que são objeto. Se é assim, é à difusão da luta das mulheres que é preciso atribuí-lo. Mas para que essas relações transferenciais em forma de beco sem saída ou de entrada de garagem desapareçam, é a própria concepção de filosofia que nós precisaremos mudar — esse “nós” não remete mais aqui somente às mulheres, mas a todos que estejam prontos a assumir até o fim (inclusive na perda de satisfações narcísicas) o que modernidade quer dizer” [Le Doeuff, 1980, p. 155].
REFERÊNCIAS
Da Autora
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Sobre a Autora
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