Rénxiàowén
(1362- 1407)
Por María Elena Díaz,
Profa. Dra. de História da Filosofia Antiga na Universidade de Buenos Aires (UBA)

(國立故宮博物院 Guólì Gùgōng Bówùyuàn), Taipei, Taiwan
Vida
仁孝文 Rénxiàowén foi a imperatriz consorte do imperador 永樂 Yǒnglè (1360-1424), o terceiro imperador da dinastia 明 Míng (1368-1644) e um dos mais destacados por suas conquistas na expansão territorial e no poder econômico do reino, com os quais ele proporcionou alívio à população após a violenta guerra civil que o levou ao trono. Ela era a filha mais velha do general 徐达 Xú Dá, que lutou pelo estabelecimento da dinastia, por isso também é frequentemente chamada pelo nome de seu clã, 徐皇后 Xú huánghòu, “Imperatriz Xú” (ou com o sistema de transcrição fonética Wade-Giles, “Hsü”). No entanto, a imperatriz ganhou um nome para a posteridade por seu próprio esforço e sabedoria. 仁孝文 Rénxiàowén foi seu nome póstumo e implicou o reconhecimento tanto de suas virtudes quanto de sua erudição (Foust e Sor-hoon 2016:30): 仁 rén, “benevolente”, “humanitária”; 孝 xiào, “respeitosa dos ritos devidos aos pais” e 文 wén, “culta”, “erudita”. Os três representam valores típicos da tradição confucionista que continuaram vigentes na corrente neoconfucionista na qual se insere o pensamento de 仁孝文 Rénxiàowén (Foster 2008) e são tratados em suas obras como valores a que homens e mulheres igualmente devem buscar. A designação desse importante etapa da escola confucionista era originalmente 道學 dào xué, e atualmente é conhecida na China como 宋明理學 Sòng Míng lǐ xué. Os dois primeiros caracteres fazem alusão às dinastias nas quais ela floresceu, 理 lǐ é o nome do princípio racional que privilegia sua metafísica e 學 xué, “estudo” ou “escola”. A denominação “neoconfucionismo” é bastante difundida fora da China e, embora não se saiba quem forjou o termo, ele pode ser atribuído ao trabalho do grande tradutor do século XIX, James Legge (1815-1897). Essa corrente havia incorporado teses e práticas taoístas e budistas à tradição confucionista e, por isso, não é surpreendente descobrir que o pensamento de 仁孝文 Rénxiàowén era atravessado tanto pelo confucionismo quanto por um budismo reinterpretado em chave confucionista, sobretudo no que diz respeito à importância das relações familiares, crucial na ética confucionista, mas ausente no budismo nos primeiros tempos de sua introdução na China. Como um valor, 仁 rén, “benevolência”, “humanitarismo” foi recentemente associado à ética do cuidado de matriz confucionista (Li, 1994).
Quando 仁孝文 Rénxiàowén faleceu em 1407, o imperador 永樂 Yǒnglè não concedeu o título de imperatriz a nenhuma outra de suas consortes e honrou sua memória convertendo seu palácio, o 翊坤宫 Yìkūngōng, Palácio da Tranquilidade Terrestre, em uma biblioteca e local de encontro para as mulheres dos aposentos internos (Tsai 2001:17). Esse palácio foi, durante a dinastia 明 Míng, o local de residência da imperatriz. Até 1854, quando foi destruído pelos partidários da Rebelião de 太平 Tàipíng, um pagode de porcelana dedicado a ela por seus três filhos após sua morte ficava no 大報恩寺 Dà bào’ēn sì, Mosteiro da Gratidão, na cidade de 南京 Nànjīng (Tsai 2001:137). Uma réplica do tamanho original pode agora ser visitada lá, mantendo viva a memória da imperatriz, que foi considerada uma das principais defensoras do direito das mulheres à educação.
Obra
A obra mais importante da imperatriz foi《內訓》Nèixùn, Lições para os Aposentos Internos, que é o mais longo e rico dos los《女四書》Nǚ sì shū, Quatro Livros para Mulheres, que foram escritos por diferentes autoras em diferentes séculos e se consolidaram como leitura para a educação das mulheres durante a dinastia 明 Míng. Além da obra da imperatriz, os outros três livros da tetralogia são: 女誡 Nǚ jiè, Lições para as Mulheres, escrito por 班昭 Bān Zhāo (c. 49-c.120 );《女論語》Nǚ lúnyǔ, Analectos para as Mulheres, escrito por 宋若莘 Sòng Ruòshēn (768-820) e 宋若昭 Sòng Ruòzhāo (761-828) e《女範捷錄》Nǚ fàn jié lù, Breve Notícia sobre Mulheres Modelo, escrito por 劉氏 Liú shì (século XVI, dados de nascimento e morte desconhecidos). A coleção de quatro obras tem como modelo o Sìshū Quatro Livros Confucionistas, que o neoconfucionista 朱熹 Zhū Xī (1130-1200) identificou como a base dos Exames Imperiais: 《大學》Dà Xué, O Grande Ensinamento;《中庸》Zhōng Yōng, A Doutrina do Justo Meio; 《論語》 Lún Yǔ, Analectos e《孟子》 Mèngzǐ, Mêncio. Embora a tetralogia feminina seja influenciada em seu propósito como base educacional, há uma diferença muito importante em relação à tetralogia confucionista. Os livros da tetralogia tradicional são obras mais teóricas, com um conteúdo político bastante marcado, enquanto os de sua contraparte feminina têm mais o gênero de manuais de conduta. Isso não impediu a inclusão dos primeiros no programa educacional de 仁孝文 Rénxiàowén, que, portanto, reúne tanto os aspectos mais tradicionais e teóricos quanto os aspectos mais práticos, característicos de sua obra. Os《女四書》Nǚ sì shū, Quatro Livros para as Mulheres, foram compilados pela primeira vez como tal por 王相 Wáng Xiāng (1789-1852) durante a dinastia 清 Qīng, mas essa datação tardia não deve nos enganar, pois foi feita quando as obras já gozavam de amplo reconhecimento e constituíam já a vários séculos, o a base educacional para as mulheres (Rosenlee 2006:103). Em geral, as obras escritas por mulheres eram poemas ou, como no caso desses quatro livros, admoestações sobre a moralidade feminina. Antes da tradição chinesa contar com obras escritas por mulheres, elas eram as protagonistas de poemas ou até mesmo de uma coleção de biografias. Nessas obras, a tendência era exaltar figuras excepcionais ou lendárias. Um exemplo disso seria 列女傳 Liè nǚ zhuàn, Biografias de Mulheres Destacadas, a primeira obra dedicada inteiramente às mulheres, escrita pelo bibliotecário imperial da dinastia 漢 Hàn 劉向 Liú Xiàng (77-6 a.e.c.). Figuras femininas mitológicas e lendárias são abundantes em várias obras, como demonstraram diversos estudos de Anne Birrell, especialmente o Clássico das Montanhas e dos Mares (Birrell 2002). Frente a isso, como veremos, destaca-se o caráter mais pragmático do texto de 仁孝文 Rénxiàowén, que não carece de erudição, mas, acima de tudo, é o resultado da experiência de sua sogra e de sua própria experiência.
A opinião da imperatriz sobre as obras anteriores escritas sobre a educação das mulheres é que elas mostravam modelos históricos que não se comparam, no que diz respeito à sua utilidade, com os ensinamentos que ela recebeu de sua sogra, cujo nome póstumo era 孝慈高 Xiàocígāo (1332-1382). Lembre-se de que os últimos livros famosos usados para a educação de mulheres foram escritos no início do século IX. Ao contrário de 仁孝文 Rénxiàowén, sua sogra é menos conhecida por esse nome, mas é frequentemente chamada de 馬皇后 Mă Huánghòu, “Imperatriz Mă”. Ela desempenhou um papel político muito importante, tanto antes quanto depois de se tornar imperatriz. Ela foi não apenas uma conselheira, mas também responsável pelos documentos imperiais (Lee e Wiles, 2014:282). Podemos inferir que 仁孝文 Rénxiàowén valorizava as lições práticas fruto da experiência adquirida por mulheres que haviam enfrentado pessoalmente as dificuldades da vida nos recintos imperiais para mulheres, sem negligenciar, como mencionado acima, o conhecimento tradicional próprio a qualquer acadêmico da época. O caráter mais pragmático do trabalho da imperatriz pode ser visto até nos menores detalhes. Ela dedica um capítulo inteiro para tratar das concubinas do imperador, por exemplo, já que essa era uma das esferas mais conflituosas dos aposentos internos do palácio e onde o exercício da virtude era mais desafiador. No capítulo 9, ela afirma que um vício perigoso das mulheres é o ciúme e que o ciúme leva à crueldade. Com essas afirmações, a imperatriz demonstra uma profunda consideração pelas outras mulheres e as incentiva a se respeitarem e a se associarem para benefício mútuo. Ela aconselha que nenhuma das consortes deve tentar monopolizar a atenção de seu marido (cap. 13) e, em sua liderança, ela assume a responsabilidade de ser um exemplo entre elas, além de sua posição de privilégio.
O uso do《內訓》Nèixùn, Lições para os Aposentos Internos, além de se tornar uma obra de referência indispensável para as mulheres do palácio imperial, estendeu-se também às pessoas comuns, por decreto do imperador 永樂 Yǒnglè, embora tenhamos poucas informações sobre as condições de circulação fora do palácio. Possivelmente, essa era uma extensão às mulheres das grandes famílias e não às camponesas pobres. O texto pretende teorizar tanto sobre as consortes imperiais, quanto sobre as esposas dos oficiais e as mulheres comuns, mas o peso das funções de sua autora torna-o muito mais específico às primeiras. Ela inclusive transcendeu as fronteiras da China, atingindo reinos como a Coreia e o Japão. Lembre-se da grande influência do confucionismo nessas duas nações, a ponto de pensadores originais dessa escola terem florescido em ambos os lugares (Yao 2001:151-176).
O objetivo imediato de《內訓》Nèixùn, Lições para os Aposentos Internos, declarado pela própria autora no prefácio, era promover a educação das mulheres que, como o título indica, habitavam os aposentos internos da residência imperial. O termo 內 nèi, “interior”, estava associado não apenas ao espaço físico, mas também ao espaço simbólico das mulheres: seu lugar era o espaço doméstico e não o espaço público da corte. Isso não significa que a imperatriz não defendesse que as mulheres fossem privadas conhecimento político ou que se abstivessem totalmente de intervir indiretamente no governo; pelo contrário, a partir do exemplo de sua própria sogra como conselheira do imperador até sua afirmação geral, no Capítulo 8, de que as mulheres, de dentro, cuidam de sua família e de seu reino, manifestam o papel ativo que ela defende. Assim, ela afirma no Capítulo 17: 。由是推之,內和而外和,一家和而一國和,一國和而天下和矣。Yóu shì tuī zhī, nèi hé ér wài hé, yī jiā hé ér yī guó hé, yī guó hé ér tiānxià hé yǐ. (Assim, infere-se que a harmonia do interior leva à harmonia do exterior, a harmonia da família leva à harmonia do reino, a harmonia do reino leva à harmonia do mundo). Charlene Tan, em um estudo sobre o empoderamento feminino de um ponto de vista confucionista, vai além dessa leitura do espaço interno e argumenta que ele também se refere à interioridade (“o intelecto, os desejos, as emoções, as aspirações e as disposições de uma mulher”, Tan 2020:2).
Os vinte capítulos de《內訓》Nèixùn, Lições para os Aposentos Internos, podem ser organizados da seguinte forma:
Capítulo 1. Introdução às virtudes femininas.
Capítulos 2 a 5. Papéis e responsabilidades na família
Capítulos 6-9. Moralidade pessoal
Capítulos. 10-12. Trabalho doméstico
Capítulos 13-15. Relacionamento com os outros
Capítulos 16-18. Educação
Capítulo 19. Advertências sobre mau comportamento
Capítulo 20. Reflexão final
O primeiro dos vinte capítulos começa com uma reflexão sobre 性 xìng, as disposições inatas dos seres humanos, que estavam no centro de uma polêmica entre Mêncio (382-379 a.e.c.) e Xunzi (313-238 a.e.c.), os dois grandes mestres confucionistas antigos (De Bary & Bloom, 1999; Tan, 2019b). Podemos pensar que ela está tomando partido de Mêncio, retomado pelo neoconfucionista 朱熹 Zhū Xī (1130-1200), na medida em que ela entende que essas disposições são boas, mas que requerem cultivo por meio da educação para se tornarem propriamente virtudes (Mêncio 2A:6; 6A:1- 6). A busca para alcançar esse estágio superior é chamada na tradição confucionista de 修身 xiū shēn, geralmente traduzida como “cultivo de si”. Os outros dezenove capítulos revelam a maneira como os seres humanos em geral, e as mulheres em particular, podem realizar esse cultivo de si e o impacto que isso representa não apenas na vida da mulher, mas em toda a sua família e seu reino. Para isso, os dois principais recursos aos quais ela recorre são a leitura de textos históricos em busca de modelos de mulheres virtuosas e os ensinamentos da ex-imperatriz, sua sogra. Embora ela não inove na identificação das virtudes, mas retome a tradição confucionista, é sua abordagem pragmática que lhe confere originalidade. Embora em ambos os casos se trate de modelos, eles podem ser entendidos como teoria e prática, já que os primeiros são um reservatório de tradição, ao passo que sua sogra lhe transmitiu as reflexões sobre sua experiência pessoal em seu próprio contexto histórico. Prova disso é que em《內訓》Nèixùn, Lições para os Aposentos Internos, há uma abundância de citações e referências aos clássicos da poesia e da história, nas quais ela demonstra a solidez de uma erudita confucionista, bem como muitos conselhos práticos resultantes da experiência de ambas as imperatrizes.
No Prefácio da obra, 仁孝文 Rénxiàowén afirma que obras como a “女誡” Nǚ jiè, Instruções para Mulheres, escritas por 班昭 Bān Zhāo (49-120) eram simples demais, o que faz sentido se levarmos em conta a complexidade do desempenho de uma mulher com a sua posição dentro do palácio, que implicava responsabilidades para com outras mulheres no âmbito de várias relações políticas e de parentesco. Somam-se a isso algumas tarefas que, embora na tradição chinesa tenham sido realizadas por algumas mulheres excepcionais, para a imperatriz deveriam ser as de todas as mulheres. No capítulo 10, ela argumenta sobre o papel determinante das consortes do soberano para a própria existência do reino: 自古國家肇基,皆有內助之德,垂範後世。Zìgǔ guójiā zhào jī, jiē yǒu nèizhù zhī dé, chuífàn hòushì. (Desde os tempos antigos, a fundação dos reinos dependeu da ajuda dos aposentos internos que dependiam do modelo das imperatrizes). Como veremos, para realizar essas tarefas, a imperatriz entende que as esposas dos vários nobres e oficiais do governo devem praticar as virtudes próprias às mulheres, mas também precisam de um sólido treinamento cultural por meio do conhecimento dos clássicos.
Dado o tom confucionista da obra, não é surpreendente que as relações familiares sejam a base da reflexão de 仁孝文 Rénxiàowén. Ela assume, de fato, a perspectiva da mulher como parte de uma rede familiar, que deve ser considerada como estendida ao clã, especialmente para as mulheres que, como ela, estão no ápice do poder imperial. Nessa rede de relacionamentos, destaca-se a importância que ela atribui ao papel da mãe na educação de seus filhos (capítulo 16). Esse é um tópico da tradição confucionista. No livro mencionado acima, 列女傳 Liè nǚ Zhuàn, Biografias de Mulheres Destacadas, não apenas o primeiro livro é dedicado às mães, 母儀傳 Mǔ yí zhuàn, “Biografias de Modelos de Maternidade”, como a importância desse papel emerge também em vários outros, mesmo acima da influência do pai. O paradigma de uma mãe que dedicou toda a sua vida à educação de seu filho foi a mãe de Mêncio, uma de cujas fontes é a biografia 11 deste primeiro livro. 仁孝文 Rénxiàowén não apenas leva em conta o papel de mãe, como também defende a importância das líderes para a educação do restante das mulheres da casa.
Apesar de seguir o preceito confucionista das 三從四德 sān cóng sì dé, “três obediências e quatro virtudes”, a imperatriz defende a igualdade de qualidade moral de homens e mulheres, no sentido de serem iguais em excelência, independentemente de a exercerem de forma distinta. As três obediências estariam no relacionamento com o pai antes do casamento, com o marido depois do casamento e com o filho ou qualquer outro parente responsável, caso ela ficasse viúva. No capítulo dois, ela resume as obediências dizendo que o caminho da mulher é seguir os outros. As quatro virtudes femininas tradicionais eram 德 dé (correção moral), 言 yán (adequação do discurso), 容 róng (aparência digna) e 功gōng (dedicação a seus trabalhos) (Knapp 2015).
De acordo com a imperatriz, a excelência nos planos teórico e prático, inextricavelmente ligados, pode ser alcançada igualmente por homens e mulheres em suas respectivas esferas. No caso de um valor confucionista básico como 孝 xiào, a piedade filial, por exemplo, ela entende que se trata de uma capacidade humana concedida pelo céu, 天性 tiān xìng, sem discriminação de gênero. No caso das mulheres casadas, como elas tradicionalmente iam morar na casa do marido, a piedade filial se manifestava, acima de tudo, em relação aos sogros. Lá ela também cumpria a função de realizar rituais para os ancestrais de seu marido. No caso de uma imperatriz, ela também era responsável, juntamente com o marido, pelos 社稷 shè jì, altares aos deuses dos grãos e da terra (capítulo 15) que, na época da dinastia 明 Míng, combinavam o culto aos deuses da agricultura com a reverência aos ancestrais imperiais (Theobald 2018). Sua importância era tão grande que a expressão também era usada para se referir ao reino, o que mostra a relevância política do papel da imperatriz. Além de seu papel com relação aos ritos à terra e aos ancestrais, ela é responsável pelo governo das mulheres nos aposentos internos e, sobretudo, pela educação do futuro imperador (capítulo 16). O capítulo 4 atribui um papel semelhante ao imperador: unir o superior com o inferior: a tradição ancestral com a tradição familiar. Seguindo a tradição confucionista de cuidar tanto da aparência externa quanto da disposição interna para realizar rituais, ela afirma que, se ambas as questões não forem cumpridas, os espíritos não ficarão satisfeitos com os ritos e 神弗享而能保躬裕後者,未之有也。Shén fú xiǎng ér néng bǎo gōng yù hòu zhě, wèi zhī yǒu yě (Se os espíritos não estiverem satisfeitos, ela não poderá proteger a si mesma, nem beneficiar seus descendentes, capítulo 15)
Embora a principal e mais conhecida obra de 仁孝文 Rénxiàowén seja seu manual sobre os valores e ações das mulheres, ela também escreveu um Sutra budista, com a peculiaridade de que alegou se tratar de uma mensagem revelada pelo Bodhisattva 觀音 Guānyīn durante um sonho que ela havia escutado e memorizado. Na China अवलोमितेश्वर, Avalokiteśvara, o mais famoso dos bodhisattvas, é uma personagem feminina chamada 觀世音, Guānshìyīn (na forma abreviada, 觀音 Guānyīn), que significa “olhar e escutar o mundo”, e reflete algo do nome sânscrito, que significa “senhor que olha para baixo” e, portanto, foi considerado o boddhisattva da compaixão (Cf. Pine 2004:44-45). O conteúdo desse sutra implicava apoio ao governo de seu marido, que estava enfrentando uma guerra civil (McMahon 2016:87), portanto, o seu conteúdo é lido nessa chave política, seja com relação à situação específica pela qual ela estava passando com seu marido ou, mais tarde, como um sinal de apoio divino à dinastia 明 Míng. Além dessa defesa teórica da autoridade de seu marido, quando ele teve que sair para lutar pela sucessão imperial, ela seguiu sua sogra na organização da defesa da capital, liderando as esposas dos oficiais e ministros (Tsai 2001:66). Esse evento histórico está de acordo com o que dissemos anteriormente sobre o espaço interior mencionado na obra da imperatriz não ser um lugar de passividade e confinamento distante da política, mas um espaço para a construção do poder a serviço da família imperial e do reino.
Estudos recentes
Embora ela seja mencionada com frequência em estudos dedicados à dinastia 明 Míng e especialmente ao seu marido, o imperador 永樂 Yǒnglè, como na obra de Tsai (2001), a figura da imperatriz ainda não foi estudada em profundidade, e tem sido até mesmo objeto de críticas contemporâneas. Em sua tradução para o inglês da obra de 仁孝文 Rénxiàowén, Ann Pang-White (2018), após reconhecer a originalidade de sua abordagem em relação a obras anteriores escritas por mulheres, considera como limitações o fato de ela ter defendido o papel das mulheres apenas limitado ao interior do palácio sob a norma das 三從 sān cóng, “três obediências”, e de não ter propiciado qualquer participação direta na política. De nossa parte, defendemos uma leitura diferente e, além disso, entendemos que esse tipo de crítica é um tanto inapropriado para obras históricas e que muitas vezes é feito contra obras escritas por mulheres, como se estivéssemos exercendo uma pressão adicional sobre elas para que saltem sobre a sua própria sombra. Deve-se lembrar que a própria imperatriz insiste na natureza pragmática de seus conselhos, como enfatizaram Cornwall e Rivas (2015) e que tanto sua sogra, que a inspirou, quanto ela própria foram conselheiras dos imperadores de quem eram consortes, além de terem, em uma ocasião, organizado e comandado outras mulheres na defesa da capital do reino. É por isso que são abordagens mais frutíferas aquelas como a de Tan (2020), que argumenta que em《內訓》Nèi Xùn, Lições para os Aposentos Internos, é possível traçar as três características básicas do que ela considera ser o empoderamento feminino: o exercício da agência própria, a abordagem equilibrada das relações de poder e o fornecimento de meios adequados para alcançar a mudança. Não estamos inclinados a acrescentar “dentro de seu contexto” porque todos nós pensamos dentro de nosso contexto. Em sua circunstância, 仁孝文 Rénxiàowén foi uma inovadora: soube como se aliar a outras mulheres e defendeu o direito delas à educação.
Algumas avaliações do tratado não se basearam em sua relevância para a defesa dos direitos das mulheres, mas em seu valor e influência como uma adaptação dos valores neoconfucionistas ao âmbito das mulheres (De Bary e Bloom 1999:833). Essa perspectiva também é esclarecedora, pois destaca sua importância dentro do esquema social e abre caminho para valorizar a posição pragmática da imperatriz. Um recente livro de Tsai sobre o imperador 永樂 Yǒnglè, de 2001, leva em conta o papel da imperatriz e sua obra, sendo, portanto, de grande valia para avaliar sua contribuição em seu contexto. Entretanto, não podemos deixar de notar que o aludido episódio da organização da defesa da capital por mulheres, quando o então príncipe aspirante ao trono teve que ir lutar, não foi destacado, nem mesmo nessa obra, com relevância suficiente. O episódio é mencionado, também, em McMahon (2016), em um trabalho dedicado ao papel das imperatrizes e concubinas imperiais da dinastia 宋Sòng (960-1279) à 清Qīng (1644-1911), nesse caso com um pouco mais de justiça. Uma das principais contribuições de Lições para os Aposentos Internos é que ele nos oferece a perspectiva da história do ponto de vista de mulheres reais que tiveram de enfrentar os desafios de sua época e que defendiam melhorias efetivas, como a insistência na educação de meninas e jovens de diferentes estratos sociais e a erudição de mulheres de diferentes classes sociais.
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Tradução de Carolina Araújo