Sophie Charlotte von Hannover

Sophie Charlotte von Hannover;

Sophia Charlotte; 

Sophie Charlotte von Brunswick-Luneberg; 

Sophie Charlotte von Brunswick-Lüneberg

(1668-1705)

Tessa Moura Lacerda

Professora de Filosofia na Universidade de São Paulo – USP

 Lattes

Retrato de Sophie Charlotte, por Noël Jouvenet.

Sophie Charlotte – PDF

Sophie Charlotte (30 de outubro de 1668 no Castelo de Iburg, em Osnabrück – 21 de janeiro de 1705 no Eleitorado de Hanôver) foi a primeira rainha da Prússia, país que se tornaria uma das grandes potências europeias do século XVIII. Naturalmente, como rainha, era uma das mulheres mais poderosas da Europa, o que pode nos levar à suposição de que ela não estivesse submetida ao que hoje chamaríamos de violências de gênero. Ledo engano. Justamente por ser rainha, mas principalmente por ser mulher, todos os escritos de Sophie Charlotte foram queimados quando ela morreu prematuramente de uma pneumonia, aos 36 anos. Mas vejamos essa história com mais vagar.

Sophie Charlotte era a única filha dentre os sete filhos da Princesa Sofia (Wassenaer Hof, em Haia, 14 de outubro de 1630 – Hannover, 8 de junho 1714) e do Príncipe-Eleitor de Hannover, Ernst August (Herzberg am Harz, 20 de novembro de 1629 – Hannover, 23 de janeiro de 1698). Filha de mãe calvinista e de pai luterano, Sophie Charlotte foi criada sem batismo em qualquer religião, dessa forma poderia futuramente aderir à religião de um marido. Essa foi a estratégia de Sofia para garantir um bom casamento para a filha – a opção religiosa não seria um impedimento para que Sophie Charlotte fosse escolhida como esposa. Com efeito, a questão religiosa não era um assunto menor: nesse período, a Europa sofreu bastante com essas guerras de religião: a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma série de guerras cuja causa principal era a rivalidade entre protestantes e católicos, atingiu particularmente o território que hoje é conhecido como Alemanha. 

Conflitos religiosos anteriores ocorridos no território correspondente à Alemanha de hoje haviam sido solucionados com a assinatura, em 25 de setembro de 1555, da Paz de Augsburgo. Esse tratado inaugurou um período em que cada príncipe podia impor sua crença aos habitantes de seus domínios. Um certo equilíbrio se manteve enquanto os credos predominantes restringiam-se às religiões católica e luterana; o advento do calvinismo mudou esse cenário. Vários soberanos e soberanas aderiam ao calvinismo, como a própria Princesa-eleitora Sofia de Hannover, mãe de Sophie Charlotte. A Alemanha só foi unificada em no século XIX, em 1871, antes desse período havia uma série de Principados ou Eleitorados – como Hannover – que faziam parte do Sacho Império Romano-Germânico, mas que não só tinham uma certa autonomia política, como guardavam diferenças culturais e até linguísticas entre si. Dentre essas diferenças, a questão religiosa era o ponto principal de discordâncias que levaram a conflitos e guerras.

Essa disputa religiosa ameaçava outros reinados e repúblicas, por isso, o império sueco e a França também entraram no conflito, assim como o futuro império austríaco, a monarquia de Habsburgo. Essa guerra matou mais de oito milhões de pessoas, principalmente na Europa central, causando problemas econômicos e demográficos. E somente com a assinatura de uma série de tratados que constituem a Paz de Vestfália, em 1648, chegou ao fim (cf. Holborn, 1982; Elias, 2001).

Embora Sophie Charlotte tenha nascido 20 anos após a assinatura da Paz de Vestfália, as disputas religiosas não estavam completamente esquecidas, nem mesmo no interior de uma mesma família. Uma das irmãs de Sofia, Louise Hollandine (1622-1709), por exemplo, procurava convencê-la a se converter ao catolicismo. Nesse intento, chegou a enviar para Sofia o livro de Paul Pelisson, historiador da corte de Luís XIV, Reflexões sobre as disputas da religião (Paris, 1686). Sofia incumbiu o bibliotecário de Hannover e seu amigo, o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (Leipzig, 1 de julho de 1646- Hannover, 14 de novembro de 1716), de responder Louise Hollandine. 

Voltemos um pouco no tempo para entender a chegada de Leibniz nesta história, afinal ele desempenhará um papel importantíssimo na vida de Sophie Charlotte, e vice-versa.

Sofia é a décima segunda filha de um total de treze (entre elas Elisabeth da Boêmia), do “rei de Inverno” Frederico V do Palatinado (1596-1632), e de Elizabeth Stuart (1596-1662) – os pais de Sofia ficaram conhecidos como “rei e rainha de Inverno da Boêmia” pelo curto reinado. Sofia nasceu nos Países Baixos, onde sua família estava exilada depois da “Batalha da Montanha Branca”, batalha que o exército de seu pai perderia para a Liga Católica (uma reunião de estados católicos alemães que visava combater a União Protestante, na primeira fase da Guerra dos Trinta Anos).  

Sofia era filha de Elizabeth Stuart, por isso tinha no horizonte a possibilidade de se tornar rainha da Inglaterra  (seu avô era Jaime VI da Escócia e I da Inglaterra, e seu tio, Carlos I da Inglaterra). Com efeito, ela passará toda a vida tentando demonstrar seu direito ao trono da Inglaterra e terá ajuda de Leibniz nisso. No final das contas, Sofia poderia ter sido Rainha da Grã-Bretanha se não tivesse falecido poucas semanas antes da morte de sua prima, a Rainha Ana. Com a morte de Ana, será o filho de Sofia, Georg Ludwig, quem assumirá o trono da Inglaterra em 1714 como George I.

Voltando no tempo: em 1658, Sofia se casou com Ernst August, Duque de Brunswick-Lüneburg, depois de ter quase casado com o irmão dele, um pouco mais velho, Georg Wilhelm (este negociou com os dois, prometendo jamais casar-se para que jamais tivesse herdeiros legítimos, garantindo que Ernst August herdaria as terras e os títulos que pertenceriam, em princípio a ele, Georg). Quatro anos depois, Ernst August se torna Príncipe-Administrador de Osnabruque. E, finalmente, com a morte de seu irmão mais velho, Johann Friedrich (1625-1679), herda o ducado de Brunswick-Lüneburg, cuja principal cidade era Hannover. Três anos antes de sua morte, Johann Friedrich havia contratado o jovem filósofo Leibniz como conselheiro da corte e bibliotecário. Eis a entrada de Leibniz na história dessa família.

O jovem Leibniz, que havia se formado em Filosofia em 1662, feito uma formação equivalente a mestrado em Direito em 1664 e doutorado em Direito em 1666, trabalhava desde 1668 numa reforma jurídica para o Príncipe-eleitor de Mainz. Foi por conta deste emprego que Leibniz viajou em 1672 para Paris, numa missão diplomática. Logo depois de Leibniz chegar em Paris, porém, o Príncipe-eleitor de Mainz faleceu. Leibniz decidiu, então, permanecer em Paris – ele começara a ficar conhecido por sua máquina de calcular, que aprimorava a máquina criada por Pascal, incluindo, além de soma e subtração, também multiplicação e divisão; além disso, tinha também escritos matemáticos e jurídicos que começavam a torná-lo conhecido. Porém, não teria como se manter em Paris sem um emprego. Embora quisesse continuar na França, precisou aceitar o convite que recebeu de Johann Friedrich e se tornou conselheiro da corte e bibliotecário em Hannover. 

É nessa condição que Leibniz conhecerá Sofia, com quem desenvolverá uma amizade. Assim também conheceu a pequena Sophie Charlotte. Sofia e Sophie Charlotte se tornarão grandes interlocutoras de Leibniz, em questões filosóficas, científicas e políticas, além de grandes amigas. 

1. A troca filosófica entre Sophie Charlotte e Leibniz

Lloyd Strickland, um dos pioneiros no estudo da correspondência entre Leibniz e as duas Sofias (como ele intitula seu livro: Leibniz and Two Sophies: The Ph     ilosophical Correspondance [Leibniz e as duas Sofias: a correspondência filosófica]), Sofia e Sophie Charlotte, destaca que essa correspondência não interessou muito os especialistas em Filosofia Seiscentista por tratar, principalmente, de temas políticos e fofocas da corte, trazendo temas filosóficos em apenas um terço das cartas. 

Acrescento a isso uma questão ainda mais complicada em relação a Sophie Charlotte: as principais cartas dela foram queimadas. Restam-nos apenas cinco bilhetes curtos, dirigidos a Leibniz, sem que tenhamos oportunidade de adivinhar o pensamento de Sophie Charlotte. 

Sabemos o quanto ela instigou Leibniz a desenvolver pontos de seus pensamentos e a explicar melhor sua Filosofia, principalmente em debates mediados por ela e que envolviam também John Toland (1670-1722) ou Francis Mercury van Helmont (1614-1698). Para não falar o debate que Leibniz desenvolve com Pierre Bayle em seus Ensaios de teodiceia (1710), único livro publicado em vida pelo filósofo e que o tornou bastante conhecido na época: o livro foi concebido, segundo o próprio Leibniz, a partir do diálogo que mantinha com a rainha Sophie Charlotte (embora publicado somente após a morte prematura dela). É verdade que a hipótese de Lloyd Strickland é que a Teodiceia foi escrita por inspiração de outras obras de Bayle, e não do Dicionário histórico-crítico que Sophie Charlotte conhecia bem. Os livros de Bayle, Réponse aux questions d’um provincial [Resposta às questões de um provincial] (1706) e Entretiens de Maxime et de Thémiste [Conversas entre Maxime e Thémiste] (1707), publicados somente depois da morte de Sophie Charlotte, é que teriam verdadeiramente inspirado Leibniz a escrever os Ensaios de teodiceia. Mas é o próprio Leibniz quem atribui sua inspiração maior para a escrita da Teodiceia a seu diálogo com Sophie Charlotte – fiquemos com essa afirmação.

Sabemos que Sophie Charlotte estimulou Leibniz a desenvolver temas como a relação entre os sentidos e os objetos externos, a infinita variedade de seres existentes, o princípio de uniformidade (“é tudo como aqui em toda parte e sempre”, afirmará Leibniz citando a peça de teatro “Arlequim, imperador da lua”, da Comedia dell’arte, apresentada a primeira vez em março de 1687), entre outros. Mas a pergunta que fica é: o que, desses debates mediados e desse estímulo, poderia ser aproximado do pensamento de Sophie Charlotte? É possível traçar um esboço da filosofia de Sophie Charlotte uma vez que perdemos seus escritos para o fogo? É possível delinear o pensamento de Sophie Charlotte através do pensamento de Leibniz ou da “voz” de Leibniz nesse diálogo epistolar?

Mais de uma vez me esforcei para entender o que seria o pensamento de Sophie Charlotte a partir daquilo que permaneceu intacto nessa correspondência entre ela e Leibniz, ou seja, a partir de cartas de Leibniz. Mas precisamos confessar que se trata de um exercício de imaginação. E que talvez não seja o caminho mais frutífero para compreender a grandeza e a força desta jovem rainha.

As cartas filosóficas de Sophie Charlotte foram queimadas por ela ser rainha. As rainhas, nesse tempo, não eram apenas “adereços” da corte, elas tinham poder político e desenvolviam projetos próprios. Um exemplo: a transformação do Eleitorado de Brandemburg em reino, que contou fortemente com o papel de Sophie Charlotte e de sua mãe Sofia, que no outono de 1700 viajaram para Aachen, Bruxelas e Holanda para pressionar pela elevação de Frederico III, marido de Sophie Charlotte, a rei. Elas conseguiram: em 1701 “nasce” o reino da Prússia. Sophie Charlotte se transforma em rainha. 

Rainha: o mesmo atributo que levou Sophie Charlotte a ter suas cartas mergulhadas no fogo, pode nos dar a ver o que seria essa filosofia. É em seu papel como rainha e no legado desse papel para a história que podemos buscar desenhar a filosofia de Sophie Charlotte.

2. Mulheres poderosas

A proximidade e a amizade com Leibniz foram, com certeza, fundamentais na vida de Sophie Charlotte e no desenvolvimento de suas ideias, mas não devemos deixar passar em branco o enorme papel que desempenharam as mulheres poderosas de quem Sophie Charlotte descendia. A começar por sua mãe, Sofia, cuja filosofia é hoje negligenciada, mas que teve um papel importantíssimo para a filha, introduzindo-a ao mundo da Filosofia, não apenas através dos textos, mas também das amizades, com Leibniz, com John Toland, com Francis Mercury van Helmont, por exemplo. Mãe e filha dividiam a atenção desses pensadores, compartilhavam ideias e interpretações, dialogavam sobre todos esses assuntos, além dos assuntos políticos, claro. Haveria uma correspondência entre as duas ou as trocas se davam apenas nas conversas em encontros pessoais? Não sabemos. A maior parte das cartas dessas duas filósofas que foram preservadas são parte da correspondência de Leibniz. Pelas cartas a Leibniz, vemos que Sofia (a mãe) propõe a hipótese da materialidade da mente, por exemplo (Lloyd Strickland sugere que Sofia tem essa interpretação materialista da mente e analisa      profundamente essa hipótese em seu artigo sobre a filosofia de Sofia).

Além de ser filha de Sofia, Sophie Charlotte era sobrinha de Elisabeth da Boêmia, cuja concepção materialista da alma começa a ser reconhecida no século XX, sobretudo a partir dos trabalhos de interpretação da filósofa Lisa Shapiro. Elisabeth deixou de ser vista como pupila de Descartes, para passar ao rol de filósofas bem recentemente. A afirmação de que Elisabeth da Boêmia tem uma concepção materialista da alma está em disputa ainda hoje, mas já não se questiona o fato de que ela apresenta um pensamento filosófico próprio nas cartas que trocou com Descartes – um de seus maiores admiradores. Sofia muitas vezes intermediou a entrega dessas cartas e tinha a irmã mais velha como um exemplo. Stickland sugere inclusive que essa seria uma das razões para Sofia restringir seus pensamentos filosóficos às cartas com Leibniz, a exemplo do que sua irmã Elisabeth fez no diálogo com Descartes.

Sophie Charlotte era sobrinha também de Louise Holandine, pintora que se formou com Giuliano Periccioli, Sienese e Gerard van Honthorst. Era uma retratista, tendo feito inclusive autorretratos. Algumas de suas obras estão hoje em museus alemães.

Não há dúvidas de que Sophie Charlotte tinha uma ascendência de mulheres poderosas em sentido amplo. Nunca é demais mencionar: o acesso dessas mulheres à filosofia, pintura, literatura, línguas, matemáticas se dava por sua origem nobre – há exceções, claro. Há mulheres que estavam ligadas de maneira mais próxima a alguns filósofos hoje canônicos, e por isso tiveram acesso à educação, como Damaris Cudworth Mashan, filha de Ralph Cudworth e muito próxima de Locke, mas ainda assim Lady Mashan estava ligada à nobreza europeia. Naturalmente, num período em que as mulheres eram proibidas de frequentar universidades, poucas      tinham direito a uma educação formal; a condição de nobre e o papel que as nobres tinham nas cortes facultava a essas mulheres o acesso a tantos conhecimentos. Mas para além dessa questão de classe, o que suas reflexões e obras provam é que as mulheres tinham, e sempre tiveram, as mesmas capacidades intelectuais dos homens. Essas rainhas, princesas, nobres, graças a seu acesso à educação, demonstravam na prática o que as filósofas argumentavam desde o século XV na chamada querela das mulheres (querelle des femmes). Com efeito, a “querela das mulheres” opunha misóginos e feministas desde o século XV, com a publicação de A cidade das damas de Christine de Pisan, em 1405, mas ganhou força durante o século XVII. O privilégio de classe de rainhas, princesas e mulheres ligadas à nobreza lhes dava acesso a um mundo proibido para a maioria das mulheres, e isso evidenciava as capacidades intelectuais das mulheres, como reivindicavam os feministas ou proto-feministas envolvidos na querela.

3. Sophie Charlotte: uma política como filosofia prática? 

A leitura canônica que se fez de Sophie Charlotte a descreve como “pupila”, discípula, patronesse, incentivadora de Leibniz. Em resumo: ela só existe, nessa narrativa, como alguém que esteve vinculada a Leibniz. Eventualmente se fala de seu notório entusiasmo pela filosofia e de seu senso de humor, assim como de sua incrível capacidade de leitura e de manter conversações sobre qualquer assunto. É assim descrita por John Toland (An account of the Courts of Prussia and Hanover [Um relato das Cortes da Prússia e de Hanover] , 1705) e também por seu neto, Frederico II, rei da Prússia (Mémoires pour servir a l’ histoire de Brandembourg [Memórias para a história de Brandemburgo], 1750). 

Mas já é sabido também que um escrito contemporâneo de Sophie Charlotte a descreve como “Rainha-filósofa”. Ora, por que este não se tornou o aposto mais reconhecido ou a melhor descrição de Sophie Charlotte? Parece óbvio, mas não custa lembrar que as mulheres lutaram por séculos para serem reconhecidas como sujeitos racionais, como pensadoras, filósofas, tão capazes quanto os homens, como fica evidente pela “querela das mulheres” mencionada antes; além disso, vale lembrar também a misoginia presente no chamado cânone filosófico nas histórias escritas durante o século XIX, que somente há algumas décadas vem sendo questionadas. 

Mesmo sendo rainha de um dos maiores impérios do XVIII, Sophie Charlotte teve sua existência e seu reconhecimento vinculados a um filósofo canônico. A única vantagem disso seria termos acesso aos seus textos e suas ideias, reunidos na troca de cartas com Leibniz e compiladas por Onno Klopp na segunda metade do XIX. Todavia, como já mencionamos, nossa rainha-filósofa não pôde nos legar nenhum texto escrito.

Resta-nos conjecturar suas ideias a partir de sua participação ativa em debates com Leibniz, mas também com John Toland e Francis Mercury van Helmont. No caso de Toland, Sofia o recebeu em Hannover em 1702, mas foi aconselhada a não      o manter lá, por ser uma autor ateísta e ela estar esperando ser reconhecida como herdeira do trono inglês. Sophie Charlotte então o recebe em julho de 1702 e promove debates entre Toland e Leibniz: “O Sr. Leibniz é a única companhia que tenho aqui no momento. Eu o faço discutir um pouco com Toland.” – afirma ela em uma carta citada por Stickland (p.19). Essas conversas e a diferença de perspectiva entre os dois resultaram      num período bastante produtivo para ambos. Toland publicou em 1704, Letters to Serena [Cartas para Serena], em cujo prefácio afirma que Serena/Sophie Charlotte, é uma “Senhora de uma vasta bússola de conhecimento”. Leibniz também foi estimulado por esse diálogo: tendo recebido o Dicionário histórico crítico de Pierre Bayle antes de sua partida de Berlim, passou a preparar um material para as discussões posteriores nas audiências com Sophie Charlotte. A presença de Sophie Charlotte na vida de Leibniz é tão importante que depois da morte repentina dela, quando estava de visita em Hannover, enquanto ele estava em Berlim, Leibniz passa bastante tempo sem escrever para ninguém e dedica a Sophie Charlotte um poema. Mais tarde, confessará a Damaris Mashan, com quem também se correspondeu: 

Esta grande Princesa tinha, para mim, bondades infinitas: a ela agradava estar informada de minhas especulações, ela inclusive as aprofundava; e eu a deixava a par do que me vinha de sua parte, e que eu tinha a honra de responder. Talvez jamais se tenha visto uma Rainha tão perfeita e tão filósofa ao mesmo tempo. Julgai, Madame, que prazer eu devo ter tido por estar sempre perto de uma Princesa como esta e de ser encorajado pelo ardor que ela testemunhava pelo conhecimento da verdade. (Leibniz a Damaris C. Mashan, 10/7/1705, Klopp X, p.287) 

     

A morte de Sophie Charlotte foi devastadora para Leibniz:

a morte da Rainha da Prússia causou uma longa interrupção em minha correspondência e em minhas meditações. (…) que surpresa a minha e de toda Berlim quando soubemos da morte dela! Foi um golpe particularmente para mim que, em meio à infelicidade geral, sofri uma perda particular. (…) Fiquei muito perturbado com essa fatalidade (…). (Leibniz a Damaris Cudworth Mashan, 10/7/1705, Klopp X, p.287-288).

Além desses debates filosóficos criados por Sophie Charlotte, podemos vê-la como alguém que se preocupou com a construção do conhecimento na prática. Ela tem um papel fundamental no projeto, primeiro, de um Observatório em Berlim e, depois, pelas conversas com Leibniz, na transformação desse projeto em algo ainda mais grandioso: a criação da Academia de Ciências de Berlim, que existe até hoje. 

O projeto de um Observatório era iniciativa de Sophie Charlotte, como Leibniz soube em 1697. A derivação desse projeto para a criação da Academia de Ciências de Berlim foi a ocasião para o estabelecimento de uma relação intensa e próxima entre Sophie Charlotte e Leibniz – que viajou inúmeras vezes para Berlim, a convite de Sophie Charlotte. Em 1700, finalmente, o então Príncipe Eleitor de Brandemburg aprova a fundação dessa Sociedade. Apenas em 11 de Julho de 1700 a Academia de Ciências de Berlim foi oficialmente fundada, tendo Leibniz como seu presidente vitalício. 

A promoção de debates filosóficos, não como uma audiência passiva, mas como quem tem um interesse genuíno em compreender alguns pontos, como a relação entre os sentidos e os objetos externos, a infinita variedade de seres existentes e o princípio de uniformidade, e certamente estabelecer concepções próprias a respeito das discordâncias entre Leibniz e Pierre Bayle, ou Leibniz e John Toland, pode ser vista como uma característica marcante de Sophie Charlotte. Além disso, ela atuou de maneira prática para a promoção do conhecimento na Prússia, não apenas através desses debates com pensadores, cuja amizade compartilhava também com sua mãe, nos salões do castelo, mas principalmente com a criação da Academia de Ciências de Berlim. Em sua curta vida, Sophie Charlotte, a rainha-filósofa, legou à Alemanha essa sociedade científica existente até hoje. 

Referências bibliográficas

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