Nova marginal e a obviedade do paradoxo

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“Três anos depois da ampliação da marginal Tietê, a mais importante via de São Paulo, o efeito positivo sobre o trânsito acabou –e a lentidão na cidade voltou a subir” [Nova marginal Tietê já não alivia o trânsito paulistano, Folha, 24/03/2013]

Quando a ampliação da marginal foi anunciada, comentamos o Paradoxo de Braess: mais estradas podem por vezes significar mais congestionamento. Com novas estradas motoristas coletivamente alteram seus trajetos buscando, individualmente, diminuir seu tempo de viagem. O resultado paradoxal é que coletivamente o resultado pode ser que todos perderão mais tempo. Não basta adicionar mais e mais estradas para reduzir congestionamentos, não é uma função linear, mais estradas podem piorar o trânsito. E uma versão um tanto mais complexa, mas ao mesmo tempo mais previsível do paradoxo foi observada no grande experimento involuntário da ampliação da marginal.

Até quem não pegava mais a marginal voltou a usar, e então já excedeu a capacidade da via”, diz Horácio Figueira, mestre em transportes pela USP. Exatamente o Paradoxo de Braess. E somado a isto, o foco em investimentos de infra-estrutura e crédito baixo, incluindo descontos em impostos, para automóveis teve outro resultado nada paradoxal. “A frota cresceu 35% de 2005 para 2011, chegando a 7,1 milhões de veículos — índice de 63,4 para cada 100 habitantes” [Crescimento da frota fez trânsito piorar em SP, afirma CET].

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Somos reféns do automóvel, porque o automóvel é fácil de ser medido economicamente. É um bem de consumo durável de grande valor, que gera empregos e movimenta diversos setores da economia. O impacto de um automóvel na economia é muito mais fácil de ser percebido do que, digamos, o de uma bicicleta. Uma bicicleta tem uma fração do valor de um automóvel, gerando uma fração dos empregos e movimentando uma fração de setores econômicos. Você não vê anunciantes de bicicleta nos intervalos do Jornal Nacional.

O combustível que a bicicleta irá consumir não é medido pelo governo, felizmente. A energia vem da alimentação do ciclista. Mas sendo assim, como você acompanha quantas bicicletas de fato circulam em São Paulo diariamente? É uma tarefa complicada, será preciso lidar com vários indicadores “proxy”, estimativas e tudo mais. Com automóveis, ministros podem ter prontamente dados sobre o consumo de combustíveis, sobre multas, impostos e toda uma infra-estrutura criada para estimar não só a frota como onde e qual a extensão dos congestionamentos minuto a minuto.

Esta infra-estrutura para monitorar automóveis teve um custo, é claro. A duplicação da marginal teve um custo. Você pode ter estes custos à mão… contudo porque o automóvel é um elemento econômico fácil de ser medido em seus impactos positivos na economia, e é um impacto muito expressivo, estes custos são sempre tomados como marginais.

Há então os custos associados a automóveis muito mais difíceis de serem estimados. Mais de 40.000 pessoas morrem ao ano em acidentes de trânsito. Qual é o custo disso? São quase R$2 bilhões pagos anualmente em indenizações pelo DPVAT, mas uma indenização do DPVAT certamente não equivale ao real valor de uma vida perdida. É apenas uma indenização definida pelos recursos que podem ser alocados de um fundo de seguro obrigatório pago por proprietários de automóveis. Quanto maior é o custo – econômico! – das vidas ceifadas? Qual é o custo da poluição? Quanto custa o estresse?

Não temos esses números, ou ainda que tenhamos estimativas, elas não se traduzem em indicadores tão diretos e considerados tão urgentes para a economia quanto número de empregos, impostos pagos e tanto mais. Temos os números dos carros, e eles guiaram a lógica simples da política pública de investir em automóveis. Isso, deixando a parte toda a questão de lobbies da indústria automobilística, que amplificam o poder de influência e decisão em favor do automóvel, e a facilidade com que a corrupção pode ser praticada com grandes obras viárias.

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Quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida”, diz a Lei de Goodhart. “A lei de Goodhart é um análogo sociológico do princípio da incerteza de Heisenberg na mecânica quântica”. Em economia, a Lei de Goodhart traduz o fato de que para alcançar qualquer meta atrelada em um indicador, é muito mais fácil que os fundamentos desse indicador sejam distorcidos do que realmente mudar – e melhorar – o que esse indicador realmente pretendia medir para início de conversa.

É mais fácil maquiar a inflação, congelando preços, do que controlar o que a inflação realmente significa, que é a erosão do valor dos salários. Na União Soviética, grandes planos econômicos estabeleciam metas de crescimento que levavam em conta o número de quilômetros rodados por trens. Para alcançá-las, diz a lenda que trens andavam milhares de quilômetros vazios.

É mais fácil criar e administrar políticas relacionadas a automóveis para melhorar indicadores econômicos do que tentar abordar indicadores muito mais complexos e difíceis de quantificar como qualidade de vida. Mas mesmo confiando em indicadores, todos mostram que o trânsito em São Paulo voltou a piorar, a despeito de bilhões de investimento de várias esferas do governo. E quando a realidade confronta abertamente o absurdo de indicadores há muito inadequados, algo precisa ser feito.

Para diminuir a quantidade de congestionamentos em São Paulo, para melhorar a qualidade de vida do paulistano, deve estar claro que a solução não é simplesmente criar mais vias.

Ateísmo Humano

No Congresso Humanista 2012, com a mestre de cerimônias Shirley Galdino

No início de setembro de 2012, a Liga Humanista Secular (LiHS) realizou o I Congresso Humanista Secular em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Reunindo pela primeira vez ateístas, humanistas e secularistas de todo o país e do mundo em um grande evento no Brasil, eu estive lá, e uma palavra que pode resumi-lo é que foi histórico!

O termo pode parecer um tanto exagerado para o que, à primeira vista, pareça apenas uma série de palestras feitas lá no Sul. Para expressar e compartilhar melhor a satisfação que tive em acompanhar e participar desse evento, vou contar um pouco de minha história me aventurando como parte destes grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas.

A “Sociedade da Terra Redonda”

Há mais de dez anos, existia no país um grupo significativo de ateus, agnósticos, humanistas, céticos, racionalistas e tantos mais unidos pela internet em todo o Brasil e pelo mundo para trocar ideias e promover ações defendendo seus direitos e ideais para transformar a sociedade como um todo para melhor.

Era a “Sociedade da Terra Redonda” (STR), criada em 1999 por “Léo Vines”. Como muitos ateus à época, tenho orgulho de ter feito parte deste grupo, ajudando a produzir como co-editor três números da “Revista Terra Redonda”. Entre os outros editores voluntários da STR encontramos nomes que podem ser reconhecidos ainda hoje neste mesmo ativismo: Daniel Sottomaior, que viria a fundar a ATEA, e Asa Heuser, hoje presidente da mesma LiHS. Outro co-editor da revista Terra Redonda era o professor Renato Zamora Flores, um dos palestrantes no CHS2012 e a quem também tive o privilégio de enfim conhecer pessoalmente e fechar um ciclo.

Se há mais de dez anos já existia um grupo como a STR, se ele reunia algumas das figuras que hoje defendem esses ideais através de organizações formais com ações concretas, indo de campanhas de conscientização a eventos com luminares internacionais, o que aconteceu com a STR?

Bem, ela não aconteceu. Justamente quando os esforços eram para que se formalizasse – em maio de 2004! –, indo além de um grupo de pessoas unidas pela rede para se tornar uma instituição formalizada na sociedade, a figura central no grupo, seu criador, deixou-o de lado. O grupo ficou no limbo por anos, sem estar certo sobre se o presidente ainda retornaria, se delegaria responsabilidades para permitir a continuidade do projeto, ou se o barco deveria ser mesmo abandonado. Em retrospecto, hoje é claro que o barco deveria ter sido abandonado prontamente e o momentum de colaboradores preservado. Mas se passaram oito anos. Foi um fim “não com um estrondo, mas com um suspiro”. Um longo e incerto suspiro.

Limbo e Renascimento

Ao longo destes anos do limbo da STR, grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas, mas acreditam firmemente em outras, continuaram formando grupos e subgrupos pela internet unidos seja pela crença ou descrença. Porém o rubicão de “grupos de internet” continuou não sendo cruzado. Aqui se inclui o próprio CeticismoAberto, projeto que mantenho desde 2001 e ainda não é uma associação formalizada.

Por algum tempo em sua evolução o sítio online CeticismoAberto foi hospedado como uma área da STR, e durante o limbo da STR, percebi o valor e a necessidade que havia em auxiliar outras iniciativas na rede a encontrar algo tão básico quanto uma hospedagem fixa, para que seus responsáveis pudessem concentrar seus esforços em criar e divulgar conteúdo. Com o estabelecimento do CeticismoAberto de forma independente, desde agosto de 2006 ele passou a sustentar o chamado projeto HAAAN, uma incubadora de projetos de divulgação do pensamento crítico pela rede. O nome foi escolhido pela sonoridade (“hãããn”) e por não ter associação direta a nada, de forma que cada site hospedado possa firmar sua própria identidade e ao final estabelecer-se sozinho.

Através do projeto HAAAN hospedamos iniciativas eletrônicas selecionadas, com um foco em iniciativas analisando de forma crítica temas extraordinários, na linha do CeticismoAberto. Apesar de não ter o ateísmo ou o laicismo dentro do foco, o HAAAN também já hospedou na rede a iniciativa “Brasil para Todos”, que foi uma das ações que Sottomaior levou à frente depois da STR e antes de fundar a ATEA, com a bandeira do Estado laico. Hospedamos, registramos e ajudamos a criar ainda o site da “União Nacional dos Ateus” (UNA) e mesmo o “Bule Voador”, lançado na rede em 2008.

E foi em 2008 que o rubicão foi finalmente cruzado. Em agosto de 2008 a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, ATEA, foi fundada por um trio incluindo Daniel Sottomaior. A associação logo pôs em prática ações concretas de destaque além do mundo virtual, incluindo ações jurídicas e campanhas de divulgação em outdoors.

Por sua parte, e ao longo do tempo o Bule Voador, de suas origens como um blog, passou a ser mantido como canal de comunicação pela LiHS, que assim como a ATEA, foi muito além do que o próprio HAAAN ou o CeticismoAberto alcançaram. Esses grupos cruzaram o rio e se estabeleceram formalmente: se o limbo da STR durou anos, eles foi superado pelo estabelecimento formal primeiro da ATEA e então da LiHS.

Depois de praticamente uma década desde que começaram a se organizar através da tal de Internet, grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas no Brasil finalmente saíram da rede e solidificaram sua posição na sociedade. São instituições.

Pouca Fé

Entetanto, minha fé em grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas não durou tanto. Ao longo deste ativismo, de editor da STR, já fui um associado da ATEA, diretor da UNA e membro-emérito da LiHS. Hoje não sou formalmente associado a nenhum desses grupos ou associações. Para explicar essa posição, mais história.

Apoiar e participar de iniciativas promovendo ciência, com foco na análise crítica de alegações extraordinárias, ao longo de mais de uma década tem sido extremamente gratificante. Não me lembro de qualquer conflito ou divergência que não valesse a pena, não me recordo de nenhuma frustração que não fosse compensada por uma grande satisfação. Ter respondido a duas ações judiciais movidas por um suposto “premonitor”, apesar do inconveniente e do prejuízo financeiro, é mais do que compensado pelo apoio recebido de todas as formas de todos amigos e colegas, o que permitiu atravessar essa pendenga jurídica com duas vitórias judiciais. Meu amigo e advogado, Alexandre Medeiros, aceitou a causa pelo CeticismoAberto. Foi um de vários apoios fundamentais que recebi. Ser ofendido por certas figuras é de certa forma um elogio, receber o apoio de outras é um dos prêmios mais valorosos que se pode receber. O “ativismo cético”, se o chamarmos assim, abriu-me muitas portas, permitiu que aprendesse e ganhasse muito, inclusive profissionalmente. Nada foi em vão.

Infelizmente o mesmo não se pode dizer do ativismo ateu. Para mim, sempre foi nítida a diferença na prática entre a luta por estas duas causas tão próximas. No ativismo ateu, desde o início de meus contatos, desde a STR, divergências internas tendem a fragmentar grupos já pequenos e quantidades absurdas de esforços são dedicadas a tarefas pouco produtivas ou mesmo contra-produtivas – incluindo fomentar mais divergências internas. A STR não implodiu, ela definhou antes de implodir, mas vários grupos contemporâneos ou mesmo posteriores implodiram ou mesmo explodiram em tempestades internéticas durante o período do limbo. Não que tempestades internéticas façam qualquer barulho fora da Internet.

Mesmo após o limbo, com o estabelecimento da primeira organização formal para defesa de direitos de ateus e outras causas relacionadas, os desentendimentos continuaram, e em certos pontos se acentuaram. A UNA teve como um de seus germes a dissidência da ATEA, e a LiHS em sua gênese compartilhou também muito com a UNA, embora por fim também acabasse por haver divergências entre esta e a própria UNA. Não que isso a aproximasse da ATEA, pelo contrário. O episódio duplo da série South Park, “Go God Go”, satirizando o neo-ateísmo, pode ser simplesmente bobo ao retratar Richard Dawkins apaixonado por um Senhor Garrison transexual, mas na apresentação da guerra absurda entre grupos ateístas sobre a “questão final” irrelevante a sátira é praticamente um documentário.

Profundamente decepcionado com a capacidade de ateus organizarem-se em torno de ideais comuns para promover ações efetivas que mudem a sociedade para melhor, vendo esforços serem perdidos e erros repetidos desde o início com a STR, acabei por solicitar meu desligamento de todos esses grupos e associações de pessoas-que-não-acreditam-em-deus.

Além da decepção, enquanto estava envolvido diretamente nesses grupos eu também me envolvi em divergências que consumiam esforços e não levam a nada de positivo. O vírus da necessidade de vencer o último debate da Internet é contagioso, e eu certamente não estou imune a ele. Se a Internet fomentou o surgimento de inúmeros grupos de minorias, ateus incluídos, ela também infecta aqueles em sua ânsia pela razão e retórica, pela ilusória e breve “fama” de internet, a discussões sem fim pela rede. Em nome da razão, mas em verdade sob seu disfarce, argumentos secos são disparados para servir ao que são claramente desentendimentos pessoais mesquinhos.

A Internet, sua impessoalidade, seu imediatismo, desperta um lado negativo da discussão racional. Se como ferramenta a Internet fomentou o surgimento de inúmeros grupos, ela trouxe também o cavalo de tróia que tem destruído e atrasado grupos ateus há mais de uma década. Este não é um fenômeno exclusivo do Brasil, tampouco um vírus no qual o único vetor seja a rede eletrônica, mas se há uma análise que possa arriscar do (não) desenvolvimento dos grupos ateus por aqui ao longo de uma década, é esta.

Fé Renovada

É aqui, finalmente, que chegamos ao I Congresso Humanista Secular do Brasil em Porto Alegre. Descrente, penso que posso confessar hoje que não esperava muito do evento. Há um limite para o que um pequeno grupo de pessoas consegue fazer, ainda que algumas dediquem esforços heroicos. E grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, como havia me desiludido, nunca conseguem ficar muito grandes. Minha falta de fé significou que, com pouco tempo antes do evento, não preparei como deveria as palestras que fui convidado a apresentar. Ninguém deveria reparar muito, imaginei, não esperando muito seja de mim, seja do evento.

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Eu estava errado. A imagem acima traduz como estava errado. Esses não são os palestrantes. Esses são mais de uma dezena de organizadores presentes, ao final do evento, boa parte dos quais vieram de quase todos os cantos do Brasil. E boa parte dos organizadores não pôde estar presente, mas também colaborou para concretizar um evento espetacular, não só por si mesmo como também pela forma como foi concretizado.

No momento em que me desiludia e me afastava do ativismo ateu e ainda prestava atenção a algumas velhas novas tempestades internéticas, se consolidava um grupo grande e organizado de pessoas centradas e dedicadas a realmente fazer coisas. Fora da Internet. E o mais importante, que descobri durante o congresso e pude acompanhar após ele: é uma instituição sólida, que não depende exclusivamente de um punhado de pessoas. Depende de um grande grupo de pessoas, suficiente para dar segurança institucional à associação.

A Liga Humanista Secular concretiza hoje não apenas o que sonhava ao participar da STR há dez anos, mas vai além. Seu escopo é amplo, sua visão é clara, sua execução tem sido muito eficiente. O evento equilibrou bem todos os eixos do humanismo secular, apresentados pelo então presidente da LiHS, Eli Vieira.

Os vídeos das palestras ainda devem ser divulgados pela LiHS, toda e cada apresentação foi espetacular. Ainda me centrando nesta visão mais ampla do evento e do movimento ateu, se há uma palestra que gostaria de comentar, é a palestra do filósofo português Desidério Murcho, sobre o sentido da vida para ateus. Em linguagem e abordagem acessíveis, o professor expôs ideias e argumentos profundos condensados no pequeno espaço temporal da palestra. Na resposta às perguntas da plateia, o filósofo se colocava no lugar daqueles que lhe faziam perguntas e procurava a melhor forma de efetivamente transmitir sua resposta. Uma palestra de filosofia imensamente prazerosa e empolgante, de um tema central a todos que lá estavam, proferida por um experiente professor.

O título deste texto, “ateísmo humano”, é um certo contraponto a um texto anterior publicado aqui, “ateísmo halsenflugel”, em que criticava a abordagem feroz que Eli Vieira e um dos participantes do Bule Voador faziam sobre a definição “correta” de “ateísmo”, apoiados largamente no que seria a abordagem filosófica do tema. Pois se aquilo representava um erro e ainda outro retrocesso contraprodutivo na história do movimento ateu no país, bem, Eli Vieira, ainda como presidente da LiHS, foi um dos responsáveis pelo equilíbrio de abordagens e também pela participação brilhante do filósofo Desidério Murcho.

Assistir ao espetáculo proporcionado pelo ateísmo humanista renovou minha fé e orgulho em ser humano e ateu.

Um Movimento sobre Nada – e Tudo

O ateísmo, por si só, é literalmente nada, é a ausência de crença em deus. A vertente do ateísmo mais popular, e a que é tida automática e orgulhosamente como sinônimo de ateísmo, é o ateísmo racionalista, aquele a que se chega após uma análise racional dos argumentos sobre deus e a conclusão de que não haveria razão para aceitar esse conceito. Que é uma questão de fé, e uma que ateus racionais escolheram descartar.

Este ainda é um conjunto de valores bem tênue, e um tanto confuso. Se é a razão o valor comum que une ateus racionalistas, não deveriam se centrar em associações racionalistas, ao invés de ateístas, sendo este mero detalhe? Se, por outro lado, a causa mais urgente pela qual devem lutar é pela aplicação de direitos e liberdades definidas constitucionalmente, não deveriam se centrar em associações de direitos humanos e constitucionais?

As duas e novas associações formais no país oferecem escolhas, não necessariamente excludentes. A ATEA, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, tem como foco o ateísmo, a congregação de ateus, a defesa de seus direitos. A LiHS, Liga Humanista Secular, tem como foco o humanismo secular, uma posição filosófica mais ampla e ao mesmo tempo mais estrita.

Mais ampla e mais estrita? Mais ampla porque o humanismo secular promove valores indo da razão à ética, pela qual o Congresso Humanista Secular de 2012 contou com a participação de acadêmicos, jornalistas e defensores de direitos humanos. Sua ação na rede tem se destacado ultimamente na defesa de direitos LGBT e pelo feminismo. Essa amplitude angariou a contribuição e participação de ativistas de um amplo espectro.

Há contudo um posicionamento político estrito nos valores do humanismo secular. Em retrospecto, não é surpresa que isso cause repulsa daqueles que discordam de um ou outro destes aspectos promovidos – ou simplesmente discutidos! – pela LiHS. O humanismo secular é amplo em sua abordagem, e pode ser um tanto estrito em suas conclusões. Apenas a tolerância pode estender e abrigar neste espectro opiniões divergentes sobre assuntos específicos quando a concordância em temas mais relevantes deve ter prioridade. Esta tolerância nem sempre é exercida como deveria seja por pessoas de fora ou de dentro da LiHS.

Como não é surpresa que haja aqueles que se sintam inconformados com o foco estrito da ATEA, que por vezes permite em silêncio discursos de ódio entre suas fileiras tão condenáveis quanto o mesmo ódio do qual procura defender ateus. Afinal, congregar e defender ateus é sua prioridade maior.

Fundamentalmente, tanto a LiHS quanto a ATEA são associações irmãs. A defesa dos direitos de ateus é um dos objetivos do humanismo secular, por sua parte a ATEA declara explicitamente entre seus objetivos a promoção de sistemas éticos seculares. Uma anedota ilustra bem essa congruência de valores: o presidente da ATEA, Daniel Sottomaior, é pessoalmente um defensor ferrenho do vegetarianismo como conclusão ética racional. O ex-presidente da LiHS, Eli Vieira, recentemente também passou a defender no âmbito pessoal, com ênfase, o vegetarianismo como conclusão ética racional.

A diferença na abordagem e ênfase destes dois grupos, assim como seus eventuais conflitos, advém mais das prioridades e características de seus dirigentes e seu histórico do que de uma incompatibilidade de princípios. Como são instituições formalizadas e democráticas, é minha esperança que estes conflitos ainda sejam solucionados, se não pelos voluntários de hoje, pelos de amanhã. Foi uma pena não ver a ATEA representada no Congresso Humanista Secular.

Encontrando Nada, e Tudo

E, como a história se repete, por pouco a LiHS não se viu representada como apoiadora do II Encontro Nacional de Ateus (IIENA), coordenado pela Sociedade Racionalista, um novo grupo articulado nas redes sociais e que conta já com mais de 130.000 seguidores no Facebook. Após um desentendimento em outra tempestade virtual contraproducente, os ânimos por fim se acalmaram e ultimamente valores comuns prevaleceram.

Depois do Congresso Humanista, e após um primeiro encontro bem-sucedido no ano passado, o segundo encontro nacional de ateus neste fim-de-semana (17/02) promete. Com minha fé renovada em grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, participarei de mais um evento, e já contribuí com a “vakinha” para ajudar a cobrir os custos locais. Será fabuloso encontrar outras pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, incluindo aí uma palestra do procurador Jefferson Dias, autor da ação que levou à condenação do canal de TV Band, após declarações proferidas pelo apresentador José Luis Datena reconhecidas pela Justiça como impróprias, a esclarecer a população sobre a diversidade religiosa e a liberdade de consciência e de crença no Brasil.

Resultados concretos estão sendo alcançados. A Internet também pode favorecer e alavancar o que há de melhor em nós, eventos em escala nacional ou internacional como os que estão sendo promovidos seriam impossíveis, com os escassos recursos de que se dispõe, sem a rede eletrônica. E a notícia da vitória judicial sobre o discurso de ódio de Datena na TV acompanha o enorme sucesso que o vídeo-resposta de Eli Vieira, o mesmo ex-presidente da LiHS, alcançou refutando as falácias pseudocientíficas de um pastor condenando a homossexualidade “cientificamente”.

Ainda me preocupa que a nova Sociedade Racionalista não seja uma associação formalizada, já adentrando o segundo ano organizando um evento em escala nacional. Ainda preocupa que as rixas entre os grupos por vezes se aprofundem ao invés de serem remediadas. Ainda preocupa que os mesmos erros continuem sendo repetidos. Mas já estou há algum tempo afastado de tudo isto, sentado agora confortavelmente como espectador, apenas mais um ateu na multidão, e se antes o que me restava era descrença e decepção, o que há agora é esperança e, como um termo que não me canso de repetir, fé.

As vitórias e conquistas recentes são espetaculares. Os últimos meses têm sido quase inacreditáveis após uma década de esforços pouco produtivos. Ateus têm salvação, e pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas podem criar coisas fantásticas e concretas para beneficiar toda a sociedade. Aos poucos, a sociedade muda, para melhor, com a participação de ateus, em nome de deus algum, pela sociedade em si mesma.

***

[Agradeço especialmente a Daniel de Oliveira e Cíntia Brito dos Santos pela acolhida, compartilho a honra que me foi ser palestrante acompanhado de figuras tão ilustres, e parabenizo todos da LiHS, em especial à comissão organizadora que vi correndo por horas seguidas, em um evento de tirar o fôlego e inspirar ânimos.]

O arranha-céu e o caminhão de cocô

Menos de uma década depois que John F. Kennedy anunciou que iríamos à Lua e faríamos outras coisas “não porque são fáceis, mas porque são difíceis”, Neil Armstrong deu seu pequeno passo e seu grande salto para a Humanidade.

Em apenas 10 anos, imagens aéreas registram o progresso espetacular de Dubai neste vídeo criado para promover o TEDxDubai 2011. Sobre a areia do deserto onde no século 19 mal viviam pouco mais de 1.200 habitantes, hoje floresce uma cidade moderna rumo a duas milhões de pessoas em torno dos mais altos arranha-céus do mundo.

Moderna, sim, mas assustadoramente moderna: Kate Ascher, autora de um livro sobre os arranha-céus de Dubai, contou em uma entrevista à NPR:

burjtrucks“TERRY GROSS: Então você escreveu que em Dubai eles não têm uma infra-estutura de saneamento que suporte arranha-céus como esse. Então o que eles fazem com o esgoto?

KATE ASCHER: Alguns prédios por lá podem acessar o sistema municipal, mas muitos deles em verdade usam caminhões para levar o esgoto dos prédios individuais e então esperam em fila para jogá-lo na usina de tratamento. Então é um sistema bem primitivo.

GROSS: Bem, esses caminhões podem esperar horas e horas na fila.

ASCHER: É verdade. Disseram-me que podem esperar até 24 horas antes que cheguem ao final. Agora, há um sistema municipal que está sendo desenvolvido e presumo que irão conectar todos esses prédios altos em algum ponto no futuro, mas eles certamente não estão sozinhos. Na Índia muitos prédios são responsáveis por fornecer seu próprio sistema de água e remoção de esgoto. Então é realmente – somos muito afortunados neste país [EUA] de que podemos contar com o fato de nos conectarmos a um sistema urbano que possa lidar com qualquer esgoto que um prédio produza. Esse não é o caso por todo o resto do mundo.

GROSS: Bem, ele realmente ilustra um dos paradoxos da vida moderna, que temos essas estruturas que alcançam o céu e então em um lugar como Dubai você tem uma fila de 24 horas de caminhões esperando para jogar for o esgoto desses prédios.

ASCHER: Isso. É preciso lembrar que um lugar como Dubai realmente emergiu nos últimos 50 anos. Era uma sonolenta cidade beduína há meio século. E o que você faz quando traz os mais sofisticados arquitetos e engenheiros, você pode literalmente construir qualquer coisa, incluindo um prédio de 140 ou 150 andares. Mas projetar uma rede municipal de tratamento de esgoto é de algumas formas mais complexo. Certamente requer mais dinheiro e tempo para ser feito, então um pulou à frente do outro.”

A situação no Brasil está muito mais próxima de Dubai do que dos EUA, onde mais da metade do país não possui saneamento básico e mesmo nas maiores metrópoles urbanas vêem-se luxuosos empreendimentos milionários sendo construídos sem um tratamento adequado de seu esgoto.

O Brasil não surgiu há 50 anos, e sim há 500 anos, e os motivos para este paradoxo são outro ponto em comum com Dubai: a desigualdade social e a disponibilidade de mão-de-obra quase escrava.

Somos já há praticamente uma década líderes mundiais na reciclagem de alumínio, com taxas se aproximando de 100%. Um feito fabuloso se fosse resultado da conscientização popular sobre a redução do impacto ambiental e um sofisticado sistema de seleção de coleta de lixo.

Mas nosso recorde de reciclagem é resultado da conscientização da camada mais desfavorecida da população de que revirar o lixo em busca de latas de alumínio jogadas no meio de lixo orgânico, vidro e mesmo em sarjetas é uma das únicas formas disponíveis de subsistência. Uma multidão de catadores da latinhas que todos vemos ao andar pelas ruas responde pelo nosso recorde.

O futuro moderno onde vivemos é aquele onde temos arranha-céus quase quilométricos que dependem de filas quilométricas de caminhões cheios de cocô, dirigidos por motoristas de cocô pagos para ficar quase um dia inteiro esperando sua vez de despejar o cocô de pessoas mais ricas. Onde celebramos o recorde de reciclagem de alumínio, graças a uma multidão de catadores dispostos a revirar todos os lixos da cidade para coletar as preciosas latas que jogamos fora.

Deve estar claro que o recorde de arranha-céu mais alto do mundo ou o de taxa de reciclagem de alumínio não são indicadores muito confiáveis de desenvolvimento, de fato podem ser exatamente o oposto. E enquanto celebramos o tímido progresso econômico de nosso país e seu posicionamento entre as maiores economias do mundo, é bom lembrar que estes são apenas outros indicadores que vistos mais de perto podem revelar um caminho muito mais longo pela frente. [via BoingBoing]

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