A pecerveja encalhada

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Era uma sexta-feira e a doutora só pensava em descansar. Tem cliente que acha que psicanalista é que nem aspirador de pó, enquanto você não precisa dele ele fica guardado naquele quartinho meio escuro até que você volte lá outra vez. Pois a doutora ansiava por um chope bem gelado ao fim do expediente. Ela merecia, não se recordava de ter tirado férias desde o fim do doutorado em etologia clínica (ou você achou que o “Dra.” dela era um desses títulos auto denominados?). Para complicar, essa semana sua secretária estava em licença de saúde. A suspeita era dengue e isso apavorava a analista porque uma de suas clientes mais frequentes ultimamente era uma Aedes anoréxica, só de sentir o cheiro de sangue já ficava enjoada. A suspeita era que estivesse infectada por Wolbachia.

-Bom dia, tenho uma consulta marcada com a doutora. – Disse a percevejinha que chegara dez minutos adiantada.

-Sou eu mesma. Vamos entrando, pode pousar ali no divã.

A Sra. Lygus, encalhada, mas cheia de amor para dar. Fonte: wci.colostate.edu

Já instaladas em seus respectivos estofados cliente e terapeuta iniciam a sessão.

-Doutora, é que desde que terminou meu último relacionamento não consigo mais namorar ninguém. Estou carente, precisando de um namorado.

-Dona Pe-cerveja. Digo, Perceveja, você está precisando de um namorado ou de novo do seu primeiro namorado? Você sofre de uma fixação pelo ex? – Perguntou a psicóloga.

-Não, eu tento me relacionar, mas parece que espanto os rapazes. Eles me evitam. Parecem fugir de mim.

-Hum, espanta os rapazes… – Espelhou a psicóloga.

-É, eles até se aproximam, apalpam meu abdômen com as antenas, mas na hora de partirmos para o que interessa eles se afastam. Às vezes eu até facilito a corte, sabe como são esses rapazes, muitos deles inseguros, tímidos, mas não tem jeito, eles acabam voando embora.

-Entendo. Você percebeu alguma mudança desde sua cópula com o seu ex? Alguma coisa no seu cheiro? – A analista aspirava o ar discretamente tentando ela identificar sua suspeita.

-Não. Por que?

-Dona Perceveja, alguns insetos parecem tornar-se menos atraentes para os machos. Isso foi atribuído a substâncias deixadas pelos ex-parceiros, mas não foi confirmado em todos os casos. Tem sido difícil identificar a molécula de odor. Moscas da fruta e algumas borboletas já demonstraram problemas parecidos com o que você relata.

-Mas… mas… e agora? Aquele desgraçado me conquistou, fez o que bem quis comigo e agora me deixa assim. Covarde! O que eu faço agora, doutora?

-Calma, esse odor perde efeito em pouco tempo. Com o tempo o seu poder de sedução retornará. Só não fique muito ansiosa que isso também espanta pretendentes. O que acha de retornar semana que vem para vermos como você está?

-Obrigada, doutora. Vou esperar. Nos revemos semana que vem, sim.

Enquanto a cliente se afastava a doutora suspirou. Pe-cerveja! Humpf! Ela é que estava em fixação. E voltou para conferir sua agenda. Só mais uma sessão no meio da tarde, facilmente adiável. O fim de semana começaria mais cedo.
Brent, C., & Byers, J. (2011). Female attractiveness modulated by a male-derived antiaphrodisiac pheromone in a plant bug Animal Behaviour, 82 (5), 937-943 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.08.010
Turley, A., Moreira, L., O’Neill, S., & McGraw, E. (2009). Wolbachia Infection Reduces Blood-Feeding Success in the Dengue Fever Mosquito, Aedes aegypti PLoS Neglected Tropical Diseases, 3 (9) DOI: 10.1371/journal.pntd.0000516

Um animal é um autômato que só responde a seus instintos?

Algumas pessoas têm a impressão de que animais são máquinas cujas linhas de comando são chamados instintos. Ao nascer um pacote de programas já viria instalado no organismo do animal e seria, pouco a pouco, ativado assim que um determinado evento acionasse aquele comportamento. Tenho um cachorro que é só tocar sua barriga e ele imediatamente se põe a sacolejar as pernas trazeiras, ele foi assim desde sempre, não aprendeu a sentir cócegas num dado momento da vida. Pessoas que entendem animais como autômatos agarram-se a exemplos como esses para justificar sua posição.

É claro que existem comportamentos tão simples que mal são modulados e pouco variam, mas esses são exceção dentro da diversidade de possibilidades comportamentais. Em geral os animais precisam (e são capazes de) adequar seus comportamentos a diferentes situações. Nesse cálculo entram o estado interno do animal, os custos do comportamento em questão e os benefícios que ele irá trazer. Falando assim dá a impressão de que a cada atitude o animal executa um instante de reflexão introspectiva para tomar sua decisão. Nem preciso dizer que não é bem assim, na verdade os animais que erraram nessas contas simplesmente foram extirpados pela seleção natural.

Polvo, Octopus vulgaris

Polvos podem ser tímidos ou curiosos em diferentes lugares. Fonte: eol.org

Desde pequeno sempre fui acostumado a mergulhar em costões rochosos, um de meus prêmios nesses mergulhos era encontrar um tímido polvo no fundo de sua toca em Guarapari. Mais velho fiz uma viagem a Fernando de Noronha e qual não foi minha surpresa ao descobrir que ali os polvos eram  bem mais curiosos com a presença de mergulhadores. Ambos os polvos eram certamente capazes de me perceber ali, mas o custo de matar a curiosidade para o que eu encontrava em Guarapari poderia ser a vida (Esses costões rochosos eram frequentados por pescadores que enxergavam no meu trunfo biológico um delicioso fruto do mar), o de Fernando de Noronha estava a salvo por rígidas leis e fiscalizações, por isso para ele o custo era mais baixo.

Mas então quer dizer que instintos não existem? A resposta desse virá no próximo texto da série.

O esquilo hipocondríaco

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

Já haviam se passado dez minutos da consulta. A doutora ouvia do lado de fora a voz esganiçada do cliente da vez e sua nova secretária, uma adolescente que contratou depois de meses sem recepcionista porque poucas topavam atender animais. Decidiu tomar uma atitude.

-Bom dia, Sr. Urocitellus. Não vai entrar?

-Num, instante, doutora. Ele só está terminando de compartilhar comigo umas receitas para os cravos no meu nariz. – Antecipou-se a secretária à resposta do esquilo.

– Receitando!? Que eu saiba o senhor não é médico dermatologista, é? E a senhorita tem o dever de manter minha agenda em dia para não atrasar outros clientes. Quem sabe, ao invés de se consultar comigo, o senhor não prefira atender minha secretária? Nesse caso a senhorita lhe pague seus serviços e volte a me chamar quando o próximo cliente chegar, por favor.

– Não, não, doutora! – Gritou o esquilo passando por entre as pernas da lacaniana ligeiramente e saltando para cima do divã.

– Melhor assim. – O olhar severo da analista se transmutou em seu melhor sorriso num instante. – Bom dia. Pelo que vejo ainda anda preocupado com sua saúde.

– Sim, senhora. E isso não é uma coisa boa? Vivemos em tempos de cuidados ao próprio corpo, todos se exercitam, se alimentam melhor. Preocupar-se com a saúde é politicamente correto. – Respondeu orgulhoso o roedor.

Urocitellus columbianus

Urocitellus columbianus, o esquilo de chão de Columbia procurando uma farmácia. Foto de Martin Pot.

Silêncio.

Silêncio.

Mais silêncio…

– Doutora, me ajude. Não consigo me livrar dos remédios. Cada vez que tento parar de tomar começo a sentir comichões por todo o corpo, me sinto coberto de pulgas, carrapatos, piolhos e sarnas. Meu estômago fica embrulhado só de pensar nos vermes que devo ter. – Choramingou o esquilinho com os pelos das costas eriçados e coçando o pescoço com as patinhas de trás.

– Sr. Urocitellus, sente-se aqui à minha frente, deixe-me dar uma olhada em você.

O esquilo posicionou-se de costas para a doutora que começou a revirar seus pelos em meio a guinchos de deleite do cliente. A pelagem era de um cinza mesclado nas costas, tornando-se castanho dourado na barriga. Os pelos brilhavam com o viço de um macho saudável. A doutora não encontrou nenhum parasita, aliás, como das outras vezes que havia feito o mesmo. Entre os pelos só havia pequenas feridas causadas pelo próprio esquilo de tanto se coçar.

– Hum, muito preocupante! – Exclamou a analista.

– O que, um monte de carrapatos nas minhas costas? – Entrou em pânico o analisado.

– Não, um monte de minhocas na sua cabeça.

– Mas, doutora. Essa semana encontrei uma lêndea na minha barriga. Estou infestado, tenho certeza. A senhora procurou direito?

– Todos nós temos pequenos defeitos, são eles que nos fazem humanos, digo, esquilos. Por que esse medo todo das suas imperfeições? Por que esse desejo de um ideal platônico inalcançável? É um fardo pesado demais para um esquilo carregar. – Perguntou a psicanalista.

– E que fêmea irá querer um macho infestado e doente como eu? Acho que nem ganhar peso depois da hibernação eu ganhei esse ano.

– Sr. Urocitellus, as mulheres não olham só para essas coisas. O senhor está nublando seu olhar com essa busca insalubremente exagerada pela saúde e deixando de fazer o que geralmente conta. Está desperdiçando os poucos dias de cio das suas amigas procurando pulgas que não existem. Olha, pense nos seus colegas mais bem sucedidos com as meninas da área. Eles são totalmente livres de parasitas? – Enquanto a doutora falava o esquilo lembrou-se de como ouviu algumas fêmeas cochichando e rindo sobre como era sexy a forma como um macho rival coçava a barriga com as mãozinhas felpudas enquanto tomava sol.

– Acho que o senhor deveria se concentrar em cuidar desses pensamentos que te sugam e esquecer os parasitas imaginários. Tenho certeza de que eles afetam menos seu sucesso com as garotas do que sua autoestima. Nossa sessão acabou por hoje, mas quero voltar a vê-lo antes da próxima hibernação para saber como passou a estação reprodutiva e se seguiu meus conselhos.

Na saída do consultório o esquilo precisou interromper duas vezes a secretária, que não parava de espremer o nariz, para que ela preenchesse seu retorno dali a algum tempo.
Raveh, S., Heg, D., Dobson, F., Coltman, D., Gorrell, J., Balmer, A., Röösli, S., & Neuhaus, P. (2011). No experimental effects of parasite load on male mating behaviour and reproductive success Animal Behaviour, 82 (4), 673-682 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.06.018

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O dourado esquizofrênico

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
-Doutora, está aqui alguém para vê-la, mas não é o cliente da vez. – Anunciou a secretária novata. A última havia pedido demissão quando descobriru que não havia um adicional por insalubridade mental.
-É ele mesmo, pode pedir que entre.
-Mas este aqui diz ser uma piraputanga. Na agenda consta que o próximo cliente é um dourado. – Protestou.
-Ele é um dourado, apenas não sabe disso. – Cochichou a doutora. – Vamos entrando, dona piraputanga! – Convidou a analista em voz alta.
O peixe esticado sobre o divã, àquela hora tão próxima do meio-dia, fez a doutora imaginá-lo sobre uma tábua de cortar, cercado de cebolas fatiadas, tomates, pimenta e coentro à espera da grelha. A doutora tentou afastar aquele pensamento da cabeça, agora o cliente a olhava com um sorriso ameaçador de um pré-opérculo ao outro. Não era ainda um dourado adulto, mas suas escamas já apresentavam um leve reflexo dourado, no mais tinha a cor das nadadeiras e manchas no corpo que realmente lembravam uma piraputanga. Somente aquele sorriso ameaçador entregava sua natureza predatória que nada remetia às dóceis piraputangas de hábitos vegetarianos.


O dourado e seu sorriso de dentes cônicos, típicos de um piscívoro
Fonte: wdicas.com

-E então, dona pêra, como vai a vida no rio?
-Tudo muito bem, as águas continuam límpidas e frescas. A comida é abundante…
-Hmm, deve ser mesmo muito bom viver nos riachos, ser um piraputanga. – Instigou a doutora ao dourado à sua frente.
-É sim, não trocaria minha vida por nada no mundo. Como sou inofensiva, todos desfrutam minha companhia agradável.
-É mesmo? Mas deve haver desvantagens também, não?
-Que nada, doutora. Sou bem vindo aonde vou, querido por todos.
-Tem comido muitos frutinhos caídos das matas ciliares? – Ao escutar a pergunta o peixe se revirou de leve no divã como se a reacomodação física fosse aliviar o desconforto mental da pergunta.
-Ah… é… quer dizer, até tenho.
-Você não gosta muito de comer frutos, não é mesmo?
-Ah, isso é tão horrível! É como confessar um crime. Doutora, não conte a ninguém, por favor! Mas gosto mesmo é de comer peixinhos menores que eu. – Confessou o dourado.
-É um costume um tanto diferente para uma piraputanga, não acha? Talvez ser outros peixes como um dourado ou uma traíra também tenha lá suas vantagens. – Xeque!
O cliente fez uma careta de peixe morto, mas nada disse.
-Sabe, adimiro muito os dourados. Sua força, sua agilidade. São peixes muito bonitos. Impõem respeito nos rios que vivem. Não são como as traíras que vivem se escondendo em locas, vivendo no obscurantismo, e precisam emboscar suas presas de surpresa ou morrem de fome. Os dourados são veloses, subjugam suas presas numa disputa justa, vencendo-as pelo cansaço. – Jogou a isca a psicóloga.
-E as piranhas, umas covardes, só mesmo em cardume conseguem intimidar suas presas. Os dourados não, são caçadores solitários! – Mordeu o cliente.
-Pois é, só tem um peixe que eu adimiro mais do que vocês piraputangas. São os nobres dourados.
-Doutora, preciso lhe contar um segredo. Não sou uma piraputanga, sou um dourado. – Xeque mate!


Dourados (acima) mimetizam piraputangas (abaixo) para se alimentarem
foto de José Sabino

-Puxa vida, não me diga! – Fingiu-se de surpresa a psicanalista. – Mas e essas nadadeiras avermelhadas? E essa mancha na cauda?
-São um disfarce apenas. Assim me infiltro entre as piraputangas e consigo chegar mais perto das minhas presas sem ser percebido. Fica bem mais fácil me alimentar.
-Uau, que esperto você! Deve se orgulhar de ser um dourado tão astuto, não? Nosso tempo se esgotou, mas por que não volta semana que vem?
O dourado foi até o balcão onde estava a secretária e pediu para agendar uma sessão dali a uma semana. Quando a secretária lhe perguntou em nome de quem marcava a consulta ele respondeu sem vacilar: “Sr. Dourado”.

Bessa, E., Carvalho, L., Sabino, J., & Tomazzelli, P. (2011). Juveniles of the piscivorous dourado Salminus brasiliensis mimic the piraputanga Brycon hilarii as an alternative predation tactic Neotropical Ichthyology, 9 (2), 351-354 DOI: 10.1590/S1679-62252011005000016

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O camundongo bissexual

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, fora do consultório psicanalítico…

A doutora agendara sua próxima sessão em um café reservado e pouco frequentado nas proximidades do prédio onde atendia. Ela teve que abrir mão de atender em seu consultório por dois motivos. O primeiro é que o edifício havia sido recentemente desratizado e seu próximo paciente era justamente um camundongo. O segundo era que a doutora estava novamente sem secretária, a última havia fugido do consultório no dia que a doutora recebeu um leão que se sentia culpado por ter matado o próprio enteado. O camundongo agendara uma sessão de emergência sem antecipar para a doutora o motivo, mas parecia bastante perturbado.
Lá pelas tantas entra no café um sujeitinho de chapéu, óculos escuros e sobretudo, apenas sua cauda aparecendo através da fenda no sobretudo. Ele atravessa de maneira furtiva, esquivando-se pelos cantos do recinto, até a mesa em que a terapeuta se encontra e se senta, uma mesa isolada, nos fundos, distante dos garçons e do único outro cliente.
-Bom dia, doutora. – O camundongo abre o cardápio na frente do rosto e sussurra.
– O senhor quer me explicar do que se trata isso tudo? – Pergunta a analista reclinando-se sobre a mesa.
– Doutora, em toda minha vida nunca estive tão exposto e envergonhado. Tenho vontade de sumir, morrer, me mudar para bem longe e nunca mais voltar. Já discutimos minha orientação sexual, não é? Como eu me interesso por camundongos machos e fêmeas indistintamente.
– Sr. Mus, o senhor entra em looping, reincide nos mesmos assuntos. Achei que havíamos decidido não voltar nesse tema.
– Havíamos, sim. Eu havia prometido não mais me sentir culpado por isso. Nunca mais negar minha orientação sexual. Aceitar-me mais da forma que sou. E fui de certa forma bem sucedido nisso. Tomei consciência de que ninguém tem a ver com minha vida amorosa além dos maus parceiros, machos ou fêmeas, graças à senhora. – Afirmou o roedor.
-Então por que retornamos a esse assunto?
-Doutora, caiu na internet um vídeo meu em momentos de intimidade. Minha reputação está aniquilada! Como poderei voltar a olhar o mundo nos olhos?

-Como assim “caiu na internet”? Coisas não caem na internet sozinhas, elas precisam ser colocadas ali por alguém. – A doutora retorquiu.
-Sim, eu suspeitei que havia uma câmera ali, mas não vi quem a estava manejando.
-Você viu que estava sendo filmado?
-Vi, mas…
-E mesmo assim continuou?
-Continuei, mas…
-Sr. Mus, o senhor estava desejando ser exposto. – Sentenciou a Lacaniana.
-Jamais, doutora!
-O senhor queria dizer para o mundo que gosta de meninos e meninas e encontrou sua maneira. Nunca teve intenção de permanecer escondido e eu não o condeno por isso. Você quer mostrar sua identidade sexual, isso não é errado. Mas o senhor não pode continuar negando esse desejo. Existe uma área no seu nariz, o órgão vomeronasal, que percebe os odores sexuais de parceiros. Na maioria dos machos esse órgão só dispara seus sinais nervosos quando percebe o cheiro de uma fêmea. Não é o seu caso. Isso é tudo! O seu simplesmente não discerne entre machos e fêmeas, ambos o atraem. Você se interessa pelos dois e queria contar isso por aí. Do mesmo jeito que uma adolescente passa a se maquiar e muda a forma de se vestir mostrando aos outros que está sexualmente madura, você queria sair do armário.
-Mas, mas…
-Sr. Mus, foi uma quantidade imensa de informação por hoje. Sugiro que fiquemos por aqui no momento. Vá para casa, pense nisso tudo e podemos nos ver depois novamente, basta telefonar.
A psicanalista assistiu o camundongo se distanciando. Ele estava cabisbaixo, de vibrissas pendentes. Mas o futuro era promissor, ele havia tirado os óculos e o chapéu e já não se esgueirava pelos cantos.

Liu, Y., Jiang, Y., Si, Y., Kim, J., Chen, Z., & Rao, Y. (2011). Molecular regulation of sexual preference revealed by genetic studies of 5-HT in the brains of male mice Nature, 472 (7341), 95-99 DOI: 10.1038/nature09822

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A marmota fóbica

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
-Doutora, acho que o próximo cliente chegou. – Avisou a recepcionista. -Acho melhor a senhora vir recebê-lo.
A terapeuta se perguntava de que adiantava ter uma recepcionista que não recebe os clientes quando se lembrou quem estava agendado para aquele horário, um jovem machinho magricela da marmota de barriga amarela. O bichinho era um caso de fobia daqueles de ilustrar livro-texto! Jamais ficaria a sós na sala de espera com a recepcionista novata. Sua última secretária foi dispensada depois de exigir um altíssimo adicional por insalubridade. Ela se apavorou com a antessala do consultório coberta de serpentes de jardim num frenesi sexual grupal. Não adiantou dizer que as serpentes eram totalmente inofensivas, exceto para as lesmas.
Na recepção a marmota enfiava lentamente a carinha pela porta sem tirar os olhos da secretária, assim que ela olhava para o cliente, este fugia guinchando apavorado.
-Pode entrar, Sr. Marmota, está tudo seguro por aqui. – Gritou a psicóloga sem perseguir o cliente. O animalzinho entrou se esgueirando pelos cantos, o mais distante que conseguia da secretária e sem desgrudar os olhos desconfiados dela.
Dentro do consultório o roedor sempre ficava mais confortável, subiu no divã e encarou a doutora.
-Seu coração está disparado e a respiração ofegante. Está tendo um ataque de pânico?
-Nada disso, doutora. É que subi de escadas.
-Ao 16° andar!?
-É que tenho medo de elevador.
-Sim, me recordo. E como foi a vinda para o consultório hoje?
-Tensa como sempre, né doutora. Detesto caminhar pela cidade. Cada rua que atravesso tenho certeza de que serei atropelado. Cada pedestre que cruzo penso que é um bandido. Mas sei que preciso vir, senão nunca mais sairia da minha toca.
-Compreendo. Que bom que você enfrentou seus receios e veio me ver hoje. Já faltou a duas sessões recentemente, não? Deixe-me consultar minha agenda…
Ao abrir a gaveta o móvel soltou um rangido que foi suficiente para iniciar o rebuliço. Seu cliente saltou de cima do divã numa fração de segundos, enfiando-se no estreito vão sob uma cômoda de madeira sobre a qual a doutora deixava um busto de porcelana do Freud e outro do Lorenz. Com o solavanco os dois pensadores despencaram espatifando-se no chão. A psicanalista correu de sua cadeira em socorro aos bibelôs quando já era tarde demais, mas seu rompante fez a marmota fugir novamente, dessa vez para baixo da poltrona da doutora.

Machos jovens são tanto mais responsivos a gritos de alarme quanto mais susceptíveis à predação

Fonte: http://ecobirder.blogspot.com/

-Que bagunça! Olha o que o senhor fez com meu consultório! O que foi que houve?
-Um grito! Escutei alguém emitir um grito de alarme. Um coiote deve estar por perto, fuja doutora. – sussurrava o roedor apavorado.
-Não há nem coiote nem grito de alarme, Sr. Marmota. Foi só minha gaveta que está emperrada. E olha o estado que ficou a minha sala! Saia já de baixo da minha poltrona. -Exigiu a psicanalista enquanto puxava de seu esconderijo o cliente que se segurou como pode.
-A senhora tem certeza? Nenhum coiote? -Perguntava a marmota de olhos arregalados e garras cravadas no chão.
A terapeuta, cenho franzido e olhos vidrados, segurou o cliente pelo que seria seu colarinho enquanto observava o caos que se instalara ao redor.
-Senhor Marmota, eu até compreendo que, sendo um macho jovem e não estando na sua melhor forma física, o senhor tem motivos para se preocupar. Mas o senhor sabe que aqui no consultório está seguro. Por que fez essa bagunça toda? Você quebrou meus enfeites!
A doutora colocou seu cliente amedrontado no chão, já meio arrependida do rompante. Ela juntou os cacos dos bibelôs com os pés, recolocou a poltrona no lugar e esticou o tapete no chão. Enquanto isso a marmota recobrava o fôlego de volta ao divã. Na hora em que foi devolver a agenda para a gaveta a psicanalista esqueceu do barulho. O Sr. Marmota saiu pela porta como um foguete, mas a doutora não o seguiu. Melhor assim, mas preciso lubrificar essa gaveta.

Lea, A., & Blumstein, D. (2011). Age and sex influence marmot antipredator behavior during periods of heightened risk Behavioral Ecology and Sociobiology DOI: 10.1007/s00265-011-1162-x

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A siba mitomaníaca

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Naquela manhã no consultório psicanalítico…
A recepção estava em silêncio e já passava do horário da próxima cliente. A secretária havia tirado a manhã para ir ao médico, estava com medo de ter sido contaminada por um pai barata d’água que estava em crise com medo de não serem seus os ovinhos que protegera com tanto afinco.
A doutora resolveu procurar do lado de fora e percebeu um vulto esgueirando-se do vaso de plantas em direção ao balcão da atendente. Agora, olhando para o balcão, tudo parecia normal. O pote de caramelos, a agenda, os dois porta-lápis, o retrato da família da secretária. Dois porta-lápis? Ali costumava haver um só!
– Bom dia, Srta. Sepia, pode sair do seu esconderijo. Já a vi. – Ao perceber que tinha sido descoberta a siba se dismilinguiu sobre o balcão, os bracinhos, antes perfeitamente parecidos com lápis e canetas coloridas, murchos sobre a mesa e todo seu corpo num tom pálido e decepcionado.

à esquerda o porta-lápis, à direita a siba camuflada de porta-lápis. Repare como os braços imitam bem os lápis.

Fonte: www.submarino.com.br

-Vamos entrando. – Disse a doutora enquanto fechava a porta e a cliente se deitava no divã. Ao virar-se o consultório parecia novamente vazio. – Minha cara, você se importa de NÃO imitar o padrão de cor do estofado. Não me sinto muito à vontade conversando com minha mobília.
-Desculpe doutora. É tão difícil me controlar!
-Controlar… – Ecoou a analista nem em tom de afirmação nem de pergunta, só para instigar a cliente a falar mais.
-É. Não paro de me camuflar.
-Se camuflar? Você gosta de parecer aquilo que não é? – Continuou a terapeuta.
-Não, quer dizer, sim. Não é por mal, doutora. Eu só não consigo evitar. Sabe, doutora, já nem sei como sou de verdade, quero dizer, sem me camuflar em nada. – Foi dizendo o bichinho e passando com leveza para cima da mesa de centro.
-Esse comportamento é típico de quem tem vergonha do seu self. Você tem medo de mostrar ao mundo o seu eu-interior?
-Não, doutora. Eu tenho medo é de mostrar o meu eu-exterior para o eu-exterior dos meus predadores e terminar no eu-interior deles! O recife está coalhado de garoupas com infinitos dentes na boca e elas adoram uma siba como petisco.
-Compreendo. Mas e no momento, o que você tem a temer? – interrogou a psicóloga.
-Aqui no consultório? Nada, oras.
-E por que você continua se camuflando?

Agora de verdade, A siba usa não só cores, mas a posição dos braços para se camuflar.

Fonte: Barbosa et al., 2011 (citação completa abaixo)

-Mas eu não estou… Ah!! – Gritou a siba ao ver que estava com o manto preto, a cabeça e o início dos tentáculos erguidos e  verdes e as pontinhas rosadas como o vaso de violeta ao seu lado. – Doutora, o que está acontecendo comigo?
-Acontecendo contigo? Você está se transformando no Karl von Frisch. – Respondeu a analista sem querer apavorar o molusco.
-Em quem? Ah!! – Outra vez a siba assustou-se ao ver refletida no vidro de uma fotografia emoldurada a mesma imagem de um senhor de cabelos espetados, queixo pronunciado e óculos que estava no retrato.
-Acalme-se! Vamos precisar de mais consultas e vou te recomendar um remédio. Mas você precisa voltar ao consultório duas vezes por semana, Srta. Sepia. – A cefalópode agora estava acuada num canto do consultório, seus oito braços e dois tentáculos envoltos no próprio corpo encolhido e uma lágrima de tinta preta lhe escorria pelo sifão.
-Até logo, doutora. Por favor, não desista de mim. – E a siba saiu pela porta, branca e salpicada de pintinhas pretas como o papel de parede.

Barbosa, A., Allen, J., Mathger, L., & Hanlon, R. (2011). Cuttlefish use visual cues to determine arm postures for camouflage Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences DOI: 10.1098/rspb.2011.0196

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A milhafre obsessiva

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora já esperava o aviso de sua secretária quando escutou um barulho na janela do consultório. Apesar de ter amplas janelas de onde se podia ver boa parte da cidade, raramente as cortinas estavam abertas, dando ao consultório um escurinho uterinamente aconchegante. Ao afastar as pesadas camadas de Blackout a doutora reconheceu a cliente marcada naquele horário, uma fêmea do milhafre preto, um gavião migrador, com duas sacolas presas às possantes garras. Na mesma hora a doutora contraiu ligeiramente o canto da boca num sinal reprimido de desaprovação.

-Bom dia, Sra. Milhafre, eu a esperava pela porta da frente.

-Bom dia, doutora. Vim direto do shopping, o caminho mais curto era pela sua janela. Me perdoe.

-Era o caminho mais curto ou a senhora estava evitando minha sala de espera? – Os olhos da ave, em geral ameaçadores, ficaram vazios e ela engoliu seco. Havia algum tempo a analista precisou reprimir esta cliente que estava decidida a redecorar seu consultório e antessala. Ela alegava que mudanças eram necessárias. Na falta de resposta a analista prosseguiu. -Fazendo compras novamente então? – Perguntou fitando as sacolas da Etna e Tok Stok.

-Pois é, doutora, mas juro que não foi por compulsão. Estávamos precisando de umas coisas para casa. Olha essa capa de almofada, que coisa mais linda! Combina com o tapete da mesa de centro e as flores secas. E estes quadros que vou colocar na cozinha, que mimos. Achei baratinhos dois jarros…– A doutora, que acabara de desistir de prestar atenção, certamente não conhecia o ninho da Sra. Milhafre, mas, dado o volume de presentinhos domésticos que ela trazia a cada sessão, ou morava em um palacete ou em um relicário abarrotado de quinquilharias.

-A senhora quer me explicar por que é que estava “precisando” dos enfeites que trouxe desta vez? Convença-me de que estes artigos não são supérfluos. – À primeira vista a doutora teria rotulado esta paciente de leviana, mas ela sabia que ali havia um problema mais grave.

-Doutora, eu sei o que a senhora vai me dizer. Que eu uso isso de cuidar da casa para chamar a atenção do meu parceiro. Que é seleção sexual. Que minha obsessão é uma forma de chamar a atenção e ser mais amada. Que eu preciso encarar meus problemas de frente em vez de me esquivar. Mas dessa vez não é isso! – A analista a encarava curiosa de aonde a gavião queria chegar. – A senhora não entenderia, mas eu me sinto muito mais segura quando meu ninho está enfeitado. Lembro-me de quando era apenas uma mocinha e meu ninho era sem graça, nenhum enfeite. Meus filhotes demoravam séculos para se emplumar e vinham sempre de um em um. Sabe quantos ovos botei este ano? Três ovos, doutora! Todos nasceram saudáveis e estão crescendo lindos. Isso jamais aconteceria num ninho feio.

A Milhafre em momento nenhum olhava para a analista, ela não tirava os olhos de um quadro de Niko Timbergen que a psicóloga havia propositalmente entortado antes da sessão a título de teste. A ave tomou fôlego e prosseguiu. – E sabe do que mais? Até os engraçadinhos sem-teto que viviam invadindo meus ninhos antes de eu começar a enfeitá-los desistiram de se aproximar. É, de longe meu lindo lar demonstra que ali vive uma família sólida e decidida a cuidar do que é seu. Tenho muito menos trabalho com malandros hoje em dia. Só preciso evitar que alguém encontre e coma meus ovos, mas ladrões de ninhos, nunca mais.

– Estou convencida, Sra. Milhafre. A senhora está de alta! – Sentenciou a doutora.

– Quer dizer que estou curada?

– Não precisa mais voltar aqui. – Concluiu a analista sem responder diretamente à pergunta.

A milhafre antes de retornar ao consultório para pegar suas sacolas

Fonte: rezowan.wordpress.com

A doutora acompanhou a cliente até a janela de onde ela alçou voo com uma sacola em cada pé. Seu voo era livre e confiante como a doutora nunca havia visto, mas por dentro ela se perguntava. Se toda aquela racionalização estivesse correta, então sua obsessão pelo ninho era boa e deveria ser mantida. Se fosse apenas um subterfúgio, a analista já estava cansada de assistir sua cliente se justificando e repetindo os mesmos erros. Para se enganar era melhor que ela economizasse nas consultas. De todo modo o mais correto era dispensá-la das sessões.

Sergio, F., Blas, J., Blanco, G., Tanferna, A., Lopez, L., Lemus, J., & Hiraldo, F. (2011). Raptor Nest Decorations Are a Reliable Threat Against Conspecifics Science, 331 (6015), 327-330 DOI: 10.1126/science.1199422

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O bonobo fetichista

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

-Bom dia, meus amigos. A Sra. vai esperar seu parceiro aqui? Fique à vontade. – A doutora virou-se para sua secretária para pedir algumas revistas para a macaquinha que esperaria ali, mas era visível o semblante de “precisamos conversar em particular” da secretária. As duas seguiram até um canto da pequena antessala. Sua nova secretária era uma evangélica fervorosa de saia comprida, um cabelo longo e maltratado, sobrancelhas que nunca viram uma pinça e pernas mais cabeludas do que as do bonobo que esperava sua consulta.
-Doutora, esses dois aí foram ao banheiro. – Sussurrou a secretária.
-Sim, e o que tem isso?
-Juntos, doutora. Acho que eles estavam de saliência. – Falou a secretária agora esquecendo-se de manter baixo o volume da voz.
A doutora lançou-lhe um olhar de repreensão que se transformou num sorriso à medida que ela virava o rosto para o cliente da vez. – Por favor, entre e vá se acomodando no divã, Sr. paniscus. Como posso lhe ajudar? – Perguntou a Dra. assim que encostou a porta.
-Doutora, estou cansado de ser menosprezado pelos trogloditas dos meus primos na jaula ao lado. Eles se julgam muito superiores, verdadeiros gênios. No entanto não veem meus méritos e habilidades. – Disse o símio apertando o estofado do divã com seu polegar opositor do pé.
-Que coisa! E o que é que esses primos sabem fazer de tão especial?
-Nossos primos chimpanzés são de fato espertos, doutora, usam folhas como abrigo da chuva, gravetos para pescar cupins e pedras para abrir coquinhos. Mas isso não quer dizer que eu não tenha meus truques também, eles só são diferentes. Olha, nossas meninas aprenderam a usar cascas de coco para levar água a outros do nosso bando, folhas de palmeira para limpar o corpo, brincamos e nos catamos usando gravetos e nos dias quentes brincamos esguichando água em nossos filhotes usando garrafas que os tratadores nos dão no zoológico.
-Ora, vocês me parecem muito habilidosos. E, sociáveis que são, usam mais as ferramentas para interagir com os outros do que para comer, como fazem os chimpanzés. O que mais sabem fazer? – Perguntou a analista.
Por um instante o Bonobo pareceu enrubescer mesmo sob a pele escura e a psicóloga se perguntando se não havia sido Darwin que disse que o homem era o único animal capaz disso.
-Doutora, minha parceira aprendeu a fazer uma ferramenta interessante com vagens de uma árvore. Usamos essa vagem para nos excitarmos.
– Ele disse agora com um ligeiro sorriso na boca.
-Era isso que vocês estavam fazendo no lavabo antes da sessão? – Um nó se formou na garganta do Sr. paniscus que o impedia de responder ou respirar. Alguns instantes se passaram.
-Me desculpe, é que ela não me deixa parar de usar a vagem. Me pede o tempo todo e, a bem da verdade, eu também gosto.
-Sr. paniscus, há quanto tempo não têm uma relação sexual sem usar a vagem?
– Ah, doutora, nem consigo me lembrar. Ela é parte da nossa vida sexual há anos. – Respondeu o primata.
-Essa dependência do objeto transicional não é saudável para ela, também não é saudável se esse passatempo de vocês atrapalhar outras atividades rotineiras.-Sentenciou a terapeuta.
-Objeto transicional?- Perguntou o Sr. paniscus.
-Vou fazer uma pergunta apenas para o senhor pensar sobre ela. Não é necessário me responder. Quando esse afã sexual atinge sua parceira, ela deseja você ou o fetiche, a vagem?
Dava para ler no rosto do bonobo que aquela pergunta o havia levado à compreensão. Ao final da sessão ele se arrastou porta afora com a cabeça pendendo e as mãos quase tocando o chão.
Na antessala a secretária ainda sustentava ares de censura, mas a macaquinha não estava. Do lavabo vinham uns ruidos estranhos.
-Amor, vamos voltar ao zoológico. Terminamos a sessão.-Chamou o bonobo.
A Sra. paniscus e sua vagem deixaram o banheiro sorridentes, mas não encontraram no parceiro boas-vindas. Partiram como quem tem muito o que discutir. Assim como ficaram a doutora e sua secretária.
-Terapia, humpf! Esses sem-vergonhas precisam é ir para a igreja. – Depois dessa declaração da secretária a doutora já pensava no anúncio de jornal procurando uma funcionária nova.

Gruber, T., Clay, Z., & Zuberbühler, K. (2010). A comparison of bonobo and chimpanzee tool use: evidence for a female bias in the Pan lineage Animal Behaviour, 80 (6), 1023-1033 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.09.005

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A caranguejo ferradura adúltera

ResearchBlogging.org

Naquela manhã no consultório psicanalítico…

 

Outra vez a Terapeuta aguardava com a porta do consultório aberta a chegada do próximo cliente. Ela detestava ter que fazer isto porque considerava que sua sala deveria ser algo mais reservado. Simbolicamente, o consultório é quase um útero, diria Jung. Então ali estava a Dra., com seu útero aberto, tudo por causa da secretária. Desde que um caranguejo chama-maré com síndrome da hiperatividade beliscara a secretária a ponto de arrancar-lhe a carne, haviam as duas acertado que em dia de consulta daquele ou outros crustáceos a secretária não compareceria. O cliente de hoje era, de fato, um quelicerado, mas a Dra desistiu de discutir os detalhes taxonômicos com a funcionária e a liberou.

A criatura que saiu do elevador mais parecia uma dessas semi-esferas usadas para separar duas pistas seguida de um rabinho triangular esquisito. Arrastava-se com dificuldade desde o paleozóico até o presente, consultório adentro.

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Umas fiéis (abaixo) outras se divertem(acima)
Fonte: Searcy & Barret, 2010, Animal Behaviour

-Bom dia, Sra. Límula. Seja bem vinda. Como vão seus 54208 filhos? – Saudou-a a psicanalista.

-Bom dia, doutora. Veja, agora já são 115892, mas não tenho muitas notícias deles. A última vez que os vi foi na forma de ovinhos pela areia da praia.

-Huh! Compreendo. E o que me conta hoje? – Perguntou a analista ajudando a cliente, que media 30 cm, a subir no divã.

-Ah, doutora, a estação tem sido ótima. Acabamos de ter uma maré alta perfeita, o amor estava por todos os lados, as águas tépidas. A sra. já esteve no México na primavera? Tudo é tão bonito lá, as praias têm areias brancas e águas azuis…

-Sra. Límula, a senhora não veio aqui conversar sobre o México. Por que não corta o papo e vai direto ao assunto que está tentando evitar? – Disse a analista em um tom paciente, mas assertivo.

A cliente afundou no divã, seus olhos compostos eram duas bolinhas negras de tristeza.

-Tem razão. É que aconteceu uma coisa essa última maré alta. A caminho da praia eu conheci meu marido. Nos encontramos, conversamos e ele era um macho maravilhoso, tinha uma pegada firme, me fez sentir segura com ele. Passamos meses pareados na orla esperando pela maré certa e a espera foi perfeita, nosso amor só crescia.

-Eu pressinto um “mas” vindo por aí. – Murmurou a psicóloga consigo mesma.

-Mas no  dia que subimos à praia não sei explicar o que aconteceu. Assim que chegamos um grupo de quatro machinhos  veio conversar, tinham um papo agradável e meu marido não pareceu se incomodar com a presença deles ali. Eles eram simpáticos, mas não eram o tipo que uma garota escolhe como marido, inspiravam mais uma aventura amorosa do que uma relação séria. Ainda assim, suas personalidades descontraídas e sedutoras de quem passa o dia na praia esperando para a azaração me cativou. Ai doutora, meu corpo tinha urgência de sexo que nas últimas semanas eu não tinha dúvida de que seria com meu marido, mas naquele momento aqueles quatro estranhos ali não me saíam do prossoma. Começamos a cavar um ninho e eles se aproximavam cada vez mais, agora se metendo entre eu e meu marido. Aquele que deveria ser o momento de maior privacidade de um casal agora era compartilhado com aqueles quatro rapazes. – À medida que falava, a Sra. Límula procurava no rosto da terapeuta qualquer traço de reprovação que permanecia oculto. Então ela decidiu seguir adiante. – Dra, acasalamos nós seis juntos. Ao mesmo tempo em que eu desovava na areia e meu marido fecundava meus ovos aqueles quatro pervertidos também jogavam seus gametas entre meus ovos.

-A senhora gostou de ser cortejada por tantos machos? – Perguntou a psicanalista.

-Ora, doutora. Isso não é certo! Eu deveria ter deixado a praia assim que aqueles rapazes chegaram. Uma xifosura séria não deveria…- A frase foi interrompida pela analista.

-Poupe seus recalcamentos para seus diálogos internos. Se a senhora veio em busca de perdão tem uma igreja católica ali na esquina. Aqui é um consultório psicanalítico. Aqueles cinco pretendentes te encheram a bola, não foi?

-Foi sim, doutora! Alimentaram meu narcisismo. Eu adorei acasalar com aqueles cinco homens. Não achei certo com meu marido depois de tanto tempo de devoção. Mas, no que se refere a mim, eu adorei o sexo. Sou uma vadia e gosto disso! – Gritou a carangueja numa catarse que terminou em lágrimas que ela tentou esconder com as quelíceras.

A psicóloga esperou alguns instantes até que a cliente se acalmasse. – Sra. Límula, seu marido não é o único xifosuro interessante no mundo. ele é UM deles. Por que acha que não tem direito ao prazer de ter vários parceiros ao mesmo tempo se o mais interessado na sua monogamia, que é o seu marido, pareceu ceder a ela?

-Mas e a minha segurança? Isso de ter vários parceiros não é perigoso? – Foi a vez da cliente perguntar.

-Sua fecundação é externa, isso reduz o risco de doenças sexualmente transmissíveis. Ainda há outros custos possíveis, mas nenhum parece te afetar muito. Sra. Límula, parece ser uma tática entre alguns caranguejos ferradura ser monogâmicos e outros não o serem. Você deveria se preocupar menos e aproveitar mais, ainda mais sabendo que seu marido aceita essa relação aberta. – Concluiu a doutora no exato momento em que a duração da consulta se esgotou.

A terapeuta ficou assistindo enquanto aquela criaturinha tão primitiva e tão complicada se afastava a passos vacilantes. Dava para perceber que ela deixara o consultório ainda não convencida, mas a semana que se seguiria iria se encarregar de convencê-la através de seus diálogos internos.

Johnson, S., & Brockmann, H. (2010). Costs of multiple mates: an experimental study in horseshoe crabs Animal Behaviour, 80 (5), 773-782 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.07.019