O que então define o comportamento animal?

Vimos nos dois últimos textos que a genética influencia o comportamento, mas nunca o determina. Da mesma forma o aprendizado ocorre, mas depende de bases genéticas para tanto. No início do século passado o comportamento animal vivia essa dualidade instinto versus aprendizado, cada qual com sua escola e seguidores aguerridos. No entanto, e parafraseando o aniversariante Nelson Rodrigues, todo maniqueísmo é burro, voltamos ao caminho do meio. Foi assim que em 1973 Konrad Lorenz, Niko Timbergen e Karl von Frisch foram laureados com o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina pela conciliação entre esses dois paradigmas.

Todo comportamento animal é um misto de dois componentes: seu instinto geneticamente baseado e o aprendizado proporcionado pelo ambiente onde vive. Não faz sentido isolar os fatores ou dizer que um comportamento é mais instintivo ou mais aprendido. A genética pode até promover uma forte propensão a realizar um dado comportamento, mas ele só irá se manifestar se pressupostos à sua ocorrência forem cumpridos. Mesmo assim o comportamento mudará de acordo com experiências prévias e com as informações que o meio lhe oferecer para essa manifestação.

Instinto vs aprendizado? Instinto+aprendizado. O canto de um pássaro depende de seus genes, mas também do ambiente. Fonte: everystockphoto.com

Instinto vs aprendizado? Instinto+aprendizado. O canto de um pássaro depende de seus genes, mas também do ambiente. Fonte: everystockphoto.com

Por exemplo, vejamos o canto de uma ave. Existem bases genéticas para o canto, tanto que cada espécie tem cantos tão específicos que pesquisadores são capazes de identifica-las de ouvido. No entanto, é necessário cumprir alguns pressupostos. Filhotes não cantam (ao menos não como adultos), portanto é importante que o animal esteja no estágio ontogenético adequado. Não importa quantos genes uma ave tenha, se ela estiver extremamente desnutrida esse comportamento será reprimido, demonstrando assim a importância do fator fisiológico também.

Porém, mesmo que um comportamento ocorra, ele tende a ser afetado por fatores externos. Uma ave pode estar geneticamente apta a cantar, na fase de vida ideal para o canto e fisiologicamente propensa, mas esse canto será melhor ou pior executado dependendo do contato que a ave teve com bons cantores antes. Isso o sabe qualquer criador de canário, já que gravações dos campeões de gogó (no caso, siringe) circulam no comércio para inspirar os futuros concorrentes. Da mesma forma, foi surpreendente quando se descobriu que em ambientes ruidosos algumas aves canoras mudavam seu estilo de canto privilegiando amplitudes maiores (cantando mais alto), ou em ambientes com muitos obstáculos, como uma floresta fechada, privilegiando cantos mais graves (que ultrapassam esses obstáculos).

Nos próximos textos veremos como instinto e aprendizado afetam as diferentes manifestações comportamentais dos animais.

O carneirinho edipiano

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora se flagrou pela terceira vez desatenta aos balidos do cliente. A princípio ela achou fofa a imagem do fragilizado carneirinho sobre seu divã, mas já estava ficando enfadada daquela arenga sem fim sobre as qualidades da ovelha sua mãe. Realmente não era o dia certo para isso, a doutora mesmo havia visitado na véspera seu próprio analista-supervisor tentando discutir seus problemas com a secretária. O terapeuta da terapeuta sugeriu que ela projetara na secretária sua relação com a mãe.

Quem não se apaixonaria por uma mãe fofa assim? Fonte: everystockphoto.com

Quem não se apaixonaria por uma mãe fofa assim? Fonte: everystockphoto.com

– …ah, não sei o que faria sem minha mãezinha. Doutora, tudo o que sou devo a ela. – Pontuou o carneirinho.

– Muito mais do que você pensa, meu amigo. Muito mais do que você pensa. – Suspirou a analista. – A questão é que você já é um adulto e precisa deixar o rebanho onde nasceu.

– Ora, doutora. É claro que eu sei que terei que deixar minha mãezinha, mas quando o momento chegar. Ainda não estou pronto e nem ela. Sou jovem demais.

– Negação! Você fica berrando e batendo com os pés no chão a cada vez que se vê longe da sua mãe. Enquanto isso você mesmo disse que todos os outros filhotes que nasceram na mesma estação já estão pastando livremente formando um grupo só de filhotes.

– Isso porque eles são uns desnaturados! Eu não. Sou um filhote devotado. Além do mais, eu sou o caçula entre todos os que nasceram comigo. – Baliu o cliente com ar arrogante levantando o focinho lanoso bem alto.

– Isso explica muito. – Sussurrou a psicanalista. – Você é devotado ou exige devoção da sua mãe? Já percebeu como o carneiro dominante anda reagindo a você? Já é quase época de sua mãe entrar novamente no cio. – Argumentou a psicóloga.

– Mas minha mãe disse que nunca irá me abandonar, estará sempre lá para mim. Ela me ama tanto, doutora. Me ensinou onde pastar, em quem confiar e de que animais fugir. Me ensinou até o que comer para evitar umas dores de estômago terríveis quando o pasto está muito amargo. Tudo o que eu preciso saber para ser um carneiro grande, saudável e feliz.

– Tenho certeza de tudo isso. E tenho mais certeza ainda de que ela está tentando te ensinar uma última lição, meu rapaz. – Sentenciou a terapeuta.

– É mesmo? Que lição é essa? – Perguntou o carneirinho eriçando a lã das costas.

– Só falta lhe ensinar a ser independente e seguir sua vida adiante sem ela. Estou certa de que essa é a última lição que sua mãe deseja que aprenda. E como vai ser? Você será um bom filho e corresponderá às expectativas da sua mãe?

Essa foi a última fala da sessão. O carneirinho não respondeu. Baixou a cabeça e saiu do consultório pisando na ponta dos cascos com um ar entre o cabisbaixo e o meditabundo. Mas a doutora sabia que a sessão havia valido a pena.
Sanga, U., Provenza, F., & Villalba, J. (2011). Transmission of self-medicative behaviour from mother to offspring in sheep Animal Behaviour, 82 (2), 219-227 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.04.016

Um animal é uma tábula rasa cujo comportamento só reflete seu aprendizado?

No último post falamos sobre como animais são capazes de modular seu comportamento de acordo com o ambiente. Ele pode ter deixado a impressão de que o instinto é uma ficção, que animais aprendem a desempenhar toda a gama de seus comportamentos durante a vida. Isso é tão errado quanto considerá-los autômatos.

O termo “Tábula rasa” refere-se ao método de escrita no Império Romano. Os romanos usavam uma bandeja preenchida com cera para riscar com algum objeto pontiagudo, para apagar bastava raspar a bandeja. Tábula rasa sigifica bandeja raspada. Assim como os partidários do animal autômato acreditam que todo comportamento é uma linha de comando inata, os partidários do animal tábula rasa acreditam que nada vem pré-escrito nele, o instinto não existe, tudo é fruto do aprendizado.

Bugios tentam, mas o comportamento de voar não lhes pertence. Fonte: panoramio.com

Bugios tentam, mas o comportamento de voar não lhes pertence. Fonte: panoramio.com

Recorramos a um reductio ad absurdum só para iniciar a argumentação. Comportamentos são limitados por diversos fatores, entre eles a anatomia de um animal. Numa tábula rasa podemos escrever qualquer coisa, num animal limitado por sua anatomia as possibilidades são finitas, uma tábula rasa de margens bem estreitas. Por mais interessante que voar pareça a um Bugio, sua anatomia não lhe permitiria exercer esse comportamento, não importa quanta punição, reforço ou aulas de voo lhe fossem impostos.

As coisas não precisam ser tão extremas. Compartilham comigo o laboratório de Zoologia da Unemat diversos pesquisadores do Controle Biológico de pragas agrícolas. Sempre vejo nas culturas deles lagartas de mariposas que, recém saídas do ovo rastejam até uma tenra folha de soja e começam a devorá-la. Similarmente, microscópicas vespinhas eclodem de outras lagartas saindo pela primeira vez ao mundo exterior e em pouco tempo estão copulando e ovopositando em outras lagartas sem nunca terem visto adultos fazerem isso. Onde está o aprendizado aí? Os partidários da tábula rasa têm respostas muito criativas, mas pouco resistentes à parcimônia.

Seymour Benzer: Genes que transcrevem proteínas que alteram comportamentos, sim. Por que não? Fonte: plosbiology.org
Seymour Benzer: Genes que transcrevem proteínas que alteram comportamentos, sim. Por que não? Fonte: plosbiology.org

A genética do comportamento ainda é uma ciência jovem, mas o instinto já pode ser dissecado até o grau simples de um gene para um comportamento em alguns raros casos. O pioneiro nesse ramo foi Seymour Benzer, que descreveu um mutante de mosca da fruta que evita a luz (esses animais na fase adulta buscam a luz), outro cujo período de atividade não coincidia com a fase escura do dia. Hoje são conhecidos genes ligados a compulsão em ratos, depressão (ou algo semelhante a isso) em peixes, fidelidade numa espécie de roedor norte americano e até à incapacidade de distinguir machos e fêmeas na hora da corte em camundongos. Existe sim algo inato aos animais que podemos chamar de instinto.

Ok, então o instinto existe, mas não é absoluto e o aprendizado afeta o comportamento, contudo não pode ser responsável por todo ele. Como então é determinado o comportamento animal? Exploraremos esse assunto no próximo texto.

A pecerveja encalhada

ResearchBlogging.org
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Era uma sexta-feira e a doutora só pensava em descansar. Tem cliente que acha que psicanalista é que nem aspirador de pó, enquanto você não precisa dele ele fica guardado naquele quartinho meio escuro até que você volte lá outra vez. Pois a doutora ansiava por um chope bem gelado ao fim do expediente. Ela merecia, não se recordava de ter tirado férias desde o fim do doutorado em etologia clínica (ou você achou que o “Dra.” dela era um desses títulos auto denominados?). Para complicar, essa semana sua secretária estava em licença de saúde. A suspeita era dengue e isso apavorava a analista porque uma de suas clientes mais frequentes ultimamente era uma Aedes anoréxica, só de sentir o cheiro de sangue já ficava enjoada. A suspeita era que estivesse infectada por Wolbachia.

-Bom dia, tenho uma consulta marcada com a doutora. – Disse a percevejinha que chegara dez minutos adiantada.

-Sou eu mesma. Vamos entrando, pode pousar ali no divã.

A Sra. Lygus, encalhada, mas cheia de amor para dar. Fonte: wci.colostate.edu

Já instaladas em seus respectivos estofados cliente e terapeuta iniciam a sessão.

-Doutora, é que desde que terminou meu último relacionamento não consigo mais namorar ninguém. Estou carente, precisando de um namorado.

-Dona Pe-cerveja. Digo, Perceveja, você está precisando de um namorado ou de novo do seu primeiro namorado? Você sofre de uma fixação pelo ex? – Perguntou a psicóloga.

-Não, eu tento me relacionar, mas parece que espanto os rapazes. Eles me evitam. Parecem fugir de mim.

-Hum, espanta os rapazes… – Espelhou a psicóloga.

-É, eles até se aproximam, apalpam meu abdômen com as antenas, mas na hora de partirmos para o que interessa eles se afastam. Às vezes eu até facilito a corte, sabe como são esses rapazes, muitos deles inseguros, tímidos, mas não tem jeito, eles acabam voando embora.

-Entendo. Você percebeu alguma mudança desde sua cópula com o seu ex? Alguma coisa no seu cheiro? – A analista aspirava o ar discretamente tentando ela identificar sua suspeita.

-Não. Por que?

-Dona Perceveja, alguns insetos parecem tornar-se menos atraentes para os machos. Isso foi atribuído a substâncias deixadas pelos ex-parceiros, mas não foi confirmado em todos os casos. Tem sido difícil identificar a molécula de odor. Moscas da fruta e algumas borboletas já demonstraram problemas parecidos com o que você relata.

-Mas… mas… e agora? Aquele desgraçado me conquistou, fez o que bem quis comigo e agora me deixa assim. Covarde! O que eu faço agora, doutora?

-Calma, esse odor perde efeito em pouco tempo. Com o tempo o seu poder de sedução retornará. Só não fique muito ansiosa que isso também espanta pretendentes. O que acha de retornar semana que vem para vermos como você está?

-Obrigada, doutora. Vou esperar. Nos revemos semana que vem, sim.

Enquanto a cliente se afastava a doutora suspirou. Pe-cerveja! Humpf! Ela é que estava em fixação. E voltou para conferir sua agenda. Só mais uma sessão no meio da tarde, facilmente adiável. O fim de semana começaria mais cedo.
Brent, C., & Byers, J. (2011). Female attractiveness modulated by a male-derived antiaphrodisiac pheromone in a plant bug Animal Behaviour, 82 (5), 937-943 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.08.010
Turley, A., Moreira, L., O’Neill, S., & McGraw, E. (2009). Wolbachia Infection Reduces Blood-Feeding Success in the Dengue Fever Mosquito, Aedes aegypti PLoS Neglected Tropical Diseases, 3 (9) DOI: 10.1371/journal.pntd.0000516

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O réveillon da sustentabilidade?

Passei a virada do ano em Copacabana. Tomei muita chuva e espumante, no momento não me lembro qual dos dois tomei mais, assisti ao show do Rappa e fugi antes que começasse o do Latino. No cômputo final me diverti. Mas algumas não pude deixar de me preocupar com o futuro da humanidade.

O céu do novo ano no Rio e sua chuva de poluentes no Réveillon da sustentabilidade. Fonte: oglobo.globo.com

Segundo a prefeitura do Rio a festa desse ano seria uma homenagem à Rio +20, evento que celebrará e discutirá os 20 anos da conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente que ocorreu aqui em 1992. O evento está agendado para os dias 20 a 22 de junho. Em menção à Rio +20 e à importância do comportamento sustentável o show pirotécnico começou tingindo de verde a primeira madrugada do ano.

Aí é que está o problema. Os fogos de artifício verdes utilizam em sua composição nitrato de bário, um sal solúvel altamente tóxico e poluente. O nitrato de bário causa irritação nas vias aéreas, olhos e pele, dores abdominais, vômito ou diarréia, convulsão, arritmia cardíaca e enrijecimento muscular. Os sintomas podem se manifestar até várias horas após a intoxicação. Ao entrar em combustão o nitrato de bário produz dióxido de nitrogênio, outro gás altamente irritante quando inalado e que combinado à chuva que caía essa madrugada transformou-se nos ácidos nítrico e nitroso, alguns dos formadores de chuva ácida, por outro lado o dióxido de nitrogênio também pode ter se combinado ao oxigênio, gerando óxido nítrico e ozônio; o óxido nítrico é outro gás irritante que pode provocar até efisema pulmonar e o ozônio, apesar de em grandes altitudes compor a camada estratosférica que repele parte da radiação solar ultravioleta, aqui rente aos nossos narizes é um forte oxidante que leva a dificuldade respiratória e mais irritação.

O próprio prefeito Eduardo Paes comentou acertadamente que “poluição é tudo aquilo que está em excesso” no ambiente. Nesse sentido o químico responsável pelos fogos e professor da PUC Wilson Bucker Aguiar Jr., calcula que as concentrações de todos os produtos químicos usados nos fogos serão baixas demais no ambiente para gerar problemas. De fato, os mesmos foguetes verdes já foram exaustivamente utilizados em anos anteriores sem problemas aos expectadores. O que me incomoda é apenas o verniz ambiental que esse réveillon (e outros inúmeros eventos e empresas) teve.

Será que as inúmeras garrafas verdes também eram um símbolo da sustentabilidade? Fonte: oglobo.globo.com

O festival pirotécnico verde não tinha a intenção de ser sustentável, ele pretendia apenas simbolizar a natureza e estimular no público a consciência ambiental. E é assim, de simbologias despropositadas em simbologias despropositadas, que lá se vão vinte anos. Tanta simbologia sem prática, parece, não surtiu muito efeito. Nessa manhã um exérctio de quase 4 mil garis coletou 370 toneladas de lixo da praia de Copacabana, 25% mais no réveillon da sustentabilidade do que ano passado. Muitas garrafas de vidro jogadas na areia resultaram num número quase igual de atendimentos médicos a ferimentos no pé e intoxicação alcoólica.

Muitos políticos relacionados ao evento mencionaram que haveria conpensação ambiental para toda a emissão de gases da festa. Em primeiro lugar ainda desconfio muito desses medidores de emissões. Em segundo lugar há que se perguntar quão inclusiva será essa compensação, será que compensarão minha viagem de avião ao Rio de Janeiro ou só aquela dos foguetes? Serão contabilizadas as mudas que não vingaram? Haverá cuidado posterior ao plantio? Por fim, gostaria de lembrar a esses políticos que árvores plantadas são uma compensação melhor definida para as emissões de gás carbônico, elas pouco podem fazer pela maciça entrada de ácido na baía de Guanabara proporcionada pelos fogos, por exemplo. Para tal melhor seria desviar o bicarbonato de sódio inútil contra o câncer para anular os ácidos de nitrogênio, desde que bem mensurado.

Entre meus desejos para o ano que nasce está o de uma humanidade que aja mais pelo efeito de seus comportamentos e menos pela imagem que aquilo passa. Feliz e verde ano novo a todos.

PS: Ah, falando no que parece, mas não é, a fundação cacique cobra coral afirmou que não faltou com seu dever no contrato assinado com a prefeitura do Rio para esse réveillon. O contrato previa, segundo a médium Adelaide Scritori, apenas a cessação dos ventos.

Eduardo Bessa Entrevista o Papai Noel

Entrevista com o Papai Noel em plena noite de natal. Conversamos sobre a natureza humana, a existência do bom velhinho e presentes.

Agradecimentos à camera-woman Luisa Matos e ao Clóvis Matos, seu pai e nosso Papai Noel.

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O esquilo hipocondríaco

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

Já haviam se passado dez minutos da consulta. A doutora ouvia do lado de fora a voz esganiçada do cliente da vez e sua nova secretária, uma adolescente que contratou depois de meses sem recepcionista porque poucas topavam atender animais. Decidiu tomar uma atitude.

-Bom dia, Sr. Urocitellus. Não vai entrar?

-Num, instante, doutora. Ele só está terminando de compartilhar comigo umas receitas para os cravos no meu nariz. – Antecipou-se a secretária à resposta do esquilo.

– Receitando!? Que eu saiba o senhor não é médico dermatologista, é? E a senhorita tem o dever de manter minha agenda em dia para não atrasar outros clientes. Quem sabe, ao invés de se consultar comigo, o senhor não prefira atender minha secretária? Nesse caso a senhorita lhe pague seus serviços e volte a me chamar quando o próximo cliente chegar, por favor.

– Não, não, doutora! – Gritou o esquilo passando por entre as pernas da lacaniana ligeiramente e saltando para cima do divã.

– Melhor assim. – O olhar severo da analista se transmutou em seu melhor sorriso num instante. – Bom dia. Pelo que vejo ainda anda preocupado com sua saúde.

– Sim, senhora. E isso não é uma coisa boa? Vivemos em tempos de cuidados ao próprio corpo, todos se exercitam, se alimentam melhor. Preocupar-se com a saúde é politicamente correto. – Respondeu orgulhoso o roedor.

Urocitellus columbianus

Urocitellus columbianus, o esquilo de chão de Columbia procurando uma farmácia. Foto de Martin Pot.

Silêncio.

Silêncio.

Mais silêncio…

– Doutora, me ajude. Não consigo me livrar dos remédios. Cada vez que tento parar de tomar começo a sentir comichões por todo o corpo, me sinto coberto de pulgas, carrapatos, piolhos e sarnas. Meu estômago fica embrulhado só de pensar nos vermes que devo ter. – Choramingou o esquilinho com os pelos das costas eriçados e coçando o pescoço com as patinhas de trás.

– Sr. Urocitellus, sente-se aqui à minha frente, deixe-me dar uma olhada em você.

O esquilo posicionou-se de costas para a doutora que começou a revirar seus pelos em meio a guinchos de deleite do cliente. A pelagem era de um cinza mesclado nas costas, tornando-se castanho dourado na barriga. Os pelos brilhavam com o viço de um macho saudável. A doutora não encontrou nenhum parasita, aliás, como das outras vezes que havia feito o mesmo. Entre os pelos só havia pequenas feridas causadas pelo próprio esquilo de tanto se coçar.

– Hum, muito preocupante! – Exclamou a analista.

– O que, um monte de carrapatos nas minhas costas? – Entrou em pânico o analisado.

– Não, um monte de minhocas na sua cabeça.

– Mas, doutora. Essa semana encontrei uma lêndea na minha barriga. Estou infestado, tenho certeza. A senhora procurou direito?

– Todos nós temos pequenos defeitos, são eles que nos fazem humanos, digo, esquilos. Por que esse medo todo das suas imperfeições? Por que esse desejo de um ideal platônico inalcançável? É um fardo pesado demais para um esquilo carregar. – Perguntou a psicanalista.

– E que fêmea irá querer um macho infestado e doente como eu? Acho que nem ganhar peso depois da hibernação eu ganhei esse ano.

– Sr. Urocitellus, as mulheres não olham só para essas coisas. O senhor está nublando seu olhar com essa busca insalubremente exagerada pela saúde e deixando de fazer o que geralmente conta. Está desperdiçando os poucos dias de cio das suas amigas procurando pulgas que não existem. Olha, pense nos seus colegas mais bem sucedidos com as meninas da área. Eles são totalmente livres de parasitas? – Enquanto a doutora falava o esquilo lembrou-se de como ouviu algumas fêmeas cochichando e rindo sobre como era sexy a forma como um macho rival coçava a barriga com as mãozinhas felpudas enquanto tomava sol.

– Acho que o senhor deveria se concentrar em cuidar desses pensamentos que te sugam e esquecer os parasitas imaginários. Tenho certeza de que eles afetam menos seu sucesso com as garotas do que sua autoestima. Nossa sessão acabou por hoje, mas quero voltar a vê-lo antes da próxima hibernação para saber como passou a estação reprodutiva e se seguiu meus conselhos.

Na saída do consultório o esquilo precisou interromper duas vezes a secretária, que não parava de espremer o nariz, para que ela preenchesse seu retorno dali a algum tempo.
Raveh, S., Heg, D., Dobson, F., Coltman, D., Gorrell, J., Balmer, A., Röösli, S., & Neuhaus, P. (2011). No experimental effects of parasite load on male mating behaviour and reproductive success Animal Behaviour, 82 (4), 673-682 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.06.018

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Bicho Bizarro: Peixes anuais

Rivulus scalaris. Foto de Wilson Costa em Costa, W.E. 2005. Seven new species of the killifish genus Rivulus (Cyprinodontiformes: Rivulidae) from the Paraná, Paraguay and upperAraguaia river basins, central Brazil. Neotr. Ichthyol. 3(1)

É início da estação chuvosa no sertão e grandes poças começam a se formar onde antes havia um solo rachado pela secura e pelo calor. O homem simples do semiárido nordestino se agacha para encher de água uma moringa e dentro da poça recém-formada percebe um monte de peixinhos coloridos, a conclusão é óbvia: caíram das nuvens com a chuva. Na realidade os ovos dos peixes anuais, ou killifishes como dizem os aquaristas, ficam em meio ao solo e resistem ao período seco. Com a chegada da chuva os peixinhos nascem, crescem rapidamente, os machos disputam ferozmente por parceiras, daí sua coloração vistosa, acasalam e depositam um novo lote de ovos antes que a poça volte a secar.  Os peixes anuais são animais belíssimos, têm um colorido tão chamativo que passam muitas vezes por espécies marinhas. Por isso aquaristas do mundo inteiro cobiçam esses peixes que, muitas vezes, são objeto de tráfico de animais ou biopirataria. A pressão é tamanha que Wilson Costa, maior especialista do grupo no Brasil, ocasionalmente evita dar detalhes da distribuição desses animais nos artigos que descrevem espécie novas para não atrair traficantes.