De volta à vida

É primavera. Aqui no cerrado as chuvas começam a voltar. Na parte mais ao sul do Brasil são as temperaturas que sobem. Por todo lado a vida recomeça.

Sempre que o ambiente impõe condições difíceis demais à vida, uma opção disponível para os animais (e as plantas também) é abrir mão da vida. Não no sentido de se deixar, ou de se fazer, morrer, mas no sentido de abdicar dos processos vitais pelo menos enquanto as coisas andarem difíceis demais. Nesse caso, os organismos reduzem drasticamente seu metabolismo, o consumo de nutrientes, oxigênio e água, paralisam seu crescimento e o investimento reprodutivo e ficam ali, esperando as coisas melhorarem para retomar tudo isso depois. Estes processos são conhecidos por dormência.

Tem hora que não tem jeito, é preciso despertar. (imagem: John Connell)

Há diversos processos diferentes relacionados à depressão metabólica dos animais, como a diapausa, o torpor, a hibernação e a dormência. A duração, intensidade da economia energética e os gatilhos que desencadeiam cada processo de dormência diferem de um tipo para o outro.

Também existem diferentes espécies que entram em dormência metabólica nos mais diversos grupos animais. Mesmo protozoários podem se encistar para evitar a perda de água, a falta de um hospedeiro nas espécies parasitas ou a escassez alimentar. Outros animais que encistam (e insistem em continuar vivos) são os vermes nematóides e platelmintos, assim como os legendários e indestrutíveis tardígrados. Moluscos, minhocas e até peixes pulmonados evitam a morte por congelamento e a perda de água entrando em estivação. Mamíferos se escondem do frio e da desnutrição hibernando. Pequenos mamíferos e aves de metabolismo extremamente alto, como morcegos, camundongos e beija-flores, diariamente entram em torpor para evitar o desperdício energético. Os insetos e os embriões dos peixes anuais entram em diapausa durante períodos de seca intensa. Todos estes grupos são salvos da morte a cada ano (ou mesmo diariamente) graças aos processos de dormência.

A existência é um processo delicado que precisa se equilibrar numa corda bamba entre e existência e o desaparecimento. Cruelmente, a sina de todo ser vivo (pelo menos dos sexuados, mas isso fica para uma outra postagem) é sempre acabar morrendo, a diferença entre o sucesso ou o fracasso biológico está no que você conseguiu realizar enquanto se equilibrava. A dormência animal aparelha diferentes organismos a se manterem vivos ainda que o ambiente esteja hostil num dado momento, um verdadeiro alívio para a manutenção da biodiversidade. Todos passamos por isso, momentos mais difíceis nos quais suspendemos partes de nossas atividades e mantemos apenas o que for vital, mas chega uma hora em que é possível e necessário seguir em frente. O Ciência à Bessa está de volta!

Tudo em um ano 7 – A célula

Da mesma forma que o mundo do RNA, o surgimento da primeira célula pauta-se por modelos experimentais, obviamente fósseis destes eventos seriam virtualmente impossíveis de serem deixados. Há diversas teorias sobre a origem das células e dos componentes básicos desta estrutura, vou apresentar um pout-pourri do que converge entre elas.

Ácidos graxos, gorduras, são moléculas orgânicas capazes de terem se originado espontaneamente. Devido a sua natureza imiscível à água, os ácidos graxos se organizam na forma de vesículas diminutas com duas camadas encerrando dentro de sim um pequeno volume de líquido e o que nele estiver presente. Estas vesículas podem conter moléculas importantes como a de RNA do último post da série, podem encerrar substâncias em suas superfícies capazes de modificar seu funcionamento, podem ser química e osmoticamente diferentes de seu entorno, isolando fatores hostis do ambiente, podem fundir-se e dividir-se e até apresentar um metabolismo rudimentar.

A célula propriamente dita é uma questão de como esta vesícula, que alguns chamariam de coacervado, se formará. Seu surgimento dependeria apenas de concentrar as funções listadas acima todas em uma mesma vesícula destas.

Ainda há muito que mudar para que tenhamos uma célula complexa como as modernas, mas o pequeno passo de hoje, foi fundamental para a história da vida. Na verdade, usei a data de 3,7 milhões de anos atrás como a da origem da célula, mas encontrei referências desde este número até 4,3 milhões de anos, colocando as células como um evento anterior ao mundo do RNA. Nesta escala de grandeza eventos marcantes ainda não são facilmente datados.