A Liberdade e a Cardiologista

Abandonei o silêncio penitente a que se remetem os pacientes.
Farto da parede muro-das-lamentações que me tapava a vista, falei.

“E o sal, doutora?”.

Não o meu; o da Assembleia da República.

“Acho que legislaram bem. Apesar de não ser original, já que os teores de sal são já controlados em muitos alimentos…Olhe, até nos refrigerantes eles põem sal!”.

Reforçou o argumento espetando-me o peito com maior intensidade.

“Bem…”, ganhei balanço, entre o desconforto do ecocardiógrafo e um novo quebrar do silêncio asséptico.

“Bem, não se trata só de uma questão de Saúde Pública. É também uma questão de liberdade individual, de escolha pessoal. A seguir vem o quê? A cor dos meus boxers?”.

Agradeci encontrar-me num cardiologista e não num urologista, já que estética cromática é uma lacuna da minha personalidade.

“Liberdade? O sr. sabe o custo para os contribuintes que o consumo excessivo de sal origina? Sabe que o cancro do estômago está intimamente relacionado com teores de sal na urina, que por sua vez reflectem o consumo de sal? É caríssimo, não há dinheiro. É preferível cortar essa pequena liberdade!”.

O miocárdio neste momento deve ter posto a língua de fora porque me perguntou:

“Tem andado a sentir-se bem?”.

Maldita tecnologia, pensei. Não dá a mínima hipótese, qual detector de mentiras.

“Claro que tenho, doutora. O meu dealer salino está em promoções!”.

Imagem – daqui

Ciência? Decida você mesmo…

Na secção Ciência do DN é relatado que o Ministério da Defesa britânico decidiu revelar os segredos de OVNIS que as mentes castrenses de Sua Majestade andaram a ocultar ao mundo.
Apenas um trecho da secção Ciência do DN de hoje:

“Uma dos casos que consta nos dossiês do DI55, e que foi contado pela imprensa britânica, é o de uma mulher que disse ter encontrado um extraterrestre louro e com sotaque escandinavo quando andava a passear o cão.
Esta história(…), ocorreu em Norwich, em Novembro de 1989. A mulher que a protagonizou explicou ter conversado durante dez minutos com um homem louro que lhe explicou que as formas circulares traçadas em alguns campos de cereais eram obra de seres extraterrestres como ele e que o propósito da sua visita era amigável. “

Sugiro outros casos a serem analisados pela referida secção de Ciência:

Freeport Legalizado Por Hordas de Advogados Voadores
ou
200 mil Pessoas Imaginárias
Estes cidadãos surgem esporadicamente e apenas nas mentes de sindicalistas, segundo especialistas. Os delirantes sindicalistas afirmaram, segundo as mesmas fontes, que foram “abduzidos” e regressaram ao convívio dos comuns com ordens precisas de “provocarem ajuntamentos populares”. A Comissão de Festas de Cavernães, declarou à secção de Ciência, vir a contar, num futuro próximo, com estes profissionais da imaginação, vulgo, sindicalistas.
ou
Contentores de Reeducação
Uma especialista do norte do país em fenómenos para-educativos, referiu à secção de Ciência, que estas construções de “último grito tecnológico” facilitam a “lavagem civilizadora de mentes”, uma vez que permitem “aos imberbes nómadas” um contacto privilegiado com “estruturas focalizadoras de energias pedagógicas”.

Notícias de Ciência que poderiam muito bem aparecerem em qualquer jornal diário nacional…
Ou não.

Ver ainda: “Qualquer dia prefiro os Criacionistas”

Imagem – daqui

Ela por ele

Já me aconteceu várias vezes, em especial no oriente.
Antecipando um colega ele, surpreender-me quando me deparava com uma ela.
A técnica redentora deste engano passa por inúmeros contorcionismos comportamentais, que não vou descrever a fim de não reviver o embaraço.
Coisas que acontecem quando não se domina o género dos nomes e num ambiente que não nos é familiar.
Nada de especial.

Acontece também em jornalismo de ciência.
Recentemente, um artigo importante relaciona o aumento da acidez dos oceanos com a uma maior fragilização da carapaça microrganismos que são um elo muito importante das cadeias alimentares oceânicas.
Num artigo, hoje publicado no DN, Filomena Naves apelida os “foraminíferos” de “foraminíferas”, por mais do que uma vez.
Bem sei que, neste tempos alucinantes, os ininterruptos comunicados das agências noticiosas não nos dão sossego, mas traduzir “foraminifera” para “foraminíferas” é, como dizê-lo, nominalmente errado.
O importante é que a notícia foi divulgada.
Ainda que no género errado.

Referência
Andrew D. Moy, William R. Howard, Stephen G. Bray, Thomas W. Trull. Reduced calcification in modern Southern Ocean planktonic foraminifera. Nature Geoscience (08 Mar 2009), doi: 10.1038/ngeo460, Letters.

Imagem daqui

Crise FAQ

Já havia tentado minorar a minha ignorância económica em “Subprime natural”.
Mas ver este vídeo é…como dizê-lo?, fazer de qualquer pessoa um Medina Carreira.
Claro…como a água.

http://vimeo.com/moogaloop.swf?clip_id=3261363&server=vimeo.com&show_title=1&show_byline=1&show_portrait=0&color=&fullscreen=1
The Crisis of Credit Visualized from Jonathan Jarvis on Vimeo.

Dragões bebé

Imagens de juvenis de dragões-de-Komodo (Varanus komodoensis).
Algo mais sobre esta espécie em “Podcasts, modernices e erros”.

Baby Komodo Dragons
http://mediaservices.myspace.com/services/media/embed.aspx/m=52518561,t=1,mt=video

O Homem que não via a Esquerda

lobo_occipital (Large)José era um homem político.
Aparentemente normal, esbarrava à esquerda.
Esbarrava não será o termo apropriado: José atropelava a esquerda.
Via o que se passava.
O que se movia e evoluía à sua esquerda.
As necessidades e carências.
Mas não os reconhecia como seus, não os intuía, ainda que os visse.
Por isso mesmo, maltratava esse lado político ou, no mínimo, apenas o atropelava.
José sofria de uma deficiência no seu lobo occipital político direito.
Sofria de agnosia lateral.
A Educação. A Saúde. O Emprego.
Via-os.
Mas não os reconhecia como seus.
José sofria de agnosia política.
Agnosia lateral.
À esquerda.


Agnosia 1“A agnosia é uma perturbação pouco frequente que se caracteriza pelo facto de a pessoa poder ver e sentir os objectos, mas não os pode associar ao papel que habitualmente desempenham nem à sua função.
A
s pessoas afectadas por certas formas de agnosia não conseguem reconhecer rostos familiares nem objectos correntes, como uma colher ou um lápis, embora os possam ver e descrever. A agnosia é causada por um defeito nos lobos parietais e temporais do cérebro, que armazena a memória dos usos e a importância dos objectos conhecidos. Muitas vezes, a agnosia aparece subitamente depois de um traumatismo craniano ou de um icto. Algumas pessoas com agnosia melhoram ou recuperam de forma espontânea enquanto outras devem aprender a assumir a sua estranha incapacidade. Não existe um tratamento específico.”
daqui

“Rather, damage to the posterior parietal lobe produces agnosia, an inability to perceive objects through otherwise normally functioning sensory channels. The deficits with agnosia are complex, such as defects in spatial perception, visuomotor integration, and selective attention. The agnosias most commonly seen with lesions of the right posterior parietal visuocortex are among the most remarkable that can be seen in neurological patients. A particularly dramatic agnosia isastereognosis, an inability to recognize the form of objects through touch. This agnosia is commonly accompanied by a left-sided paralysis.”
Kandel et al. 2000, pp. 392-393

AgnosiaReferências:
“Seeing the World in Half-View” Scientific American, February 2009, Mind & Brain
http://www.sciam.com/article.cfm?id=seeing-the-world-in-half-view

Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM 2000. Principles of Neural Science, 4th ed. McGraw-Hill, New York.

Imagens:
1- daqui
2- Kandel et al. 2000, figura 20-12.
“The three drawings on the right were made from the models on the left by patients with unilateral visual neglect following lesion of the right posterior parietal cortex. (From Bloom and Lazerson 1988.)”
3- Kandel et al. 2000, figura 20-14. “The neglect of space on the left after injury to the right posterior parietal cortex may be remarkably selective. A patient may not be visually aware of all parts of an object but still able to recognize the object. Patients with neglect after a right hemisphere stroke were shown drawings in which the shape of an object is drawn in dots (or other tiny forms). The patient was then asked to mark with a pencil each dot. In the figure here the patient was able to report accurately each shape (rectangle, circle, letter E, letter H) but when required to mark each dot with a pencil she neglected the left half of each object. (Adapted from Marshall and Halligan 1995.)”

Filosofia cara

Também eu procrastinei vagueando no mundo delicioso dos contratos públicos, i.e., para onde vai algum do nosso dinheiro.
Não me recordo como mas fui parar a este:
a Câmara de Lagoa efectuou a assinatura da Revista Portuguesa de Filosofia pela quantia de 4.524,00€.
Parece-me bem.
O preço é que me pareceu exagerado.
Mas que sei eu.
Consultando a secção de assinaturas da revista, constatei que para desfrutar dos 4 números anuais se deve gastar 47.50 €.
Regalei-me, então, por constatar que a Câmara Municipal de Lagoa distribuiu filosofia por 25 escolas do seu concelho.
Ou então que tinha 25 anos de pagamentos em atraso…
Hummm…alguém que me explique os 4.524,00€?

Quem quiser perder tempo pode consultar para onde vai o nosso dinheiro aqui.
Não me chamem má-língua mas estes dois contratos – aqui e aqui – são, no mínimo, estranhos.
Não sei…devo andar com o vírus “Nós por cá”.
Outra referência no jornal Público on-line

Cidades sem pessoas II


(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 03/08/2007 – segunda e última parte)

Continuação de “Cidades Sem Pessoas I”

Os derrotados

Os perdedores biológicos do nosso abandono serão vários.
Sem a presença humana, as cidades e zonas próximas serão mais um ambiente a explorar. Manadas de vacas à solta serão um manancial meigo para lobos e raposas.
Estas serão uma fonte de alimento fácil para todo o tipo de predadores, que se aproximarão cada vez mais dos ambientes urbanos.
Cadáveres de , por alimentar, serão fonte de alimento para todo o tipo de necrófagos. Algumas das aves, como os corvos, habituais em ambientes urbanos mais a norte, invadirão inicialmente as urbes, alimentando-se das carcaças. Este ciclo será apenas momentâneo, uma vez que sem o factor humano presente a fonte de alimento em putrefacção condicionará aqueles vencedores fugazes.
As galinhas com sua capacidade de se geo-orientarem, recentemente descoberta, não encontrarão caminho para uma salvação evolutiva. Voadoras débeis, serão para o futuro sem humanos o que o Dodó foi para o séc. XXI humanos – uma recordação…
Mas e os odiados ratos e ratazanas?
Dependentes dos desperdícios alimentares humanos, estas espécies de mamíferos declinarão, servindo de refeição a vários predadores.
As baratas, de quem se diz serem capazes de sobreviver a um ataque nuclear, terão igualmente a vida difícil, pois os ambientes humanos aquecidos e com comida disponível terão desaparecido. Em especial no hemisfério norte, como atesta Alan Weisman no seu recente livro “World without us”, as fontes de calor permitem que aqueles insectos rastejantes vivam em cidades com Invernos rigorosos.
Outros, como gorgulhos e traças, anteriormente muito abundantes em quase todos os continentes, entrarão em declínio; as fontes de alimentos que as sustentavam (essencialmente cereais) acabarão pouco a pouco.
Uma incógnita evolutiva serão as formigas. Connosco partilhavam os ambientes citadinos, apossando-se de alguns dos nossos domínios. Carreiros de obreiras invadiam as casas, procurando todo alimentos para transportarem para as suas colónias. Contudo, devido ao seu carácter social, terão maior facilidade em se adaptar a ambientes desprovidos de sobras humanas.
No cômputo geral, verificar-se-á um acréscimo na biodiversidade bem como o lento restabelecimento das dinâmicas estruturais dos ecossistemas, dos ciclos biogeoquímicos e das alterações climáticas.

Marcas não vivas

As zonas florestadas das cidades, até agora remetidas a parques ou passeios, alastrarão por áreas cada vez maiores, contribuindo com galhos e folhas para que a matéria orgânica depositada no solo (ou no cada vez menor alcatrão disponível) seja abundante.
Todo este combustível orgânico será um potencial alimentador de incêndios, originados por relâmpagos ou por curto-circuitos dos sistemas eléctricos sem manutenção. Ao fim de alguns anos, os incêndios terão alterado o aspecto das cidades, destruindo construções e mobiliário urbano.
A estatuária, distintiva de qualquer ambiente citadino, será, pouco a pouco, tragada pelo correr do tempo. As estátuas, em especial as de calcário ou mármore, serão lentamente meteorizadas por chuvas carregadas de dióxido de carbono, que dissolverão o carbonato de cálcio de que são feitas.
Faces, membros e corpos serão arrastados pelas águas que caem do céu, levando as memórias de monarcas e poetas para os rios e o mar. Este fenómeno será geologicamente rápido, ou seja, escassas centenas de an
os.
O mesmo fenómeno ocorrerá nos revestimentos dos edifícios. O outrora imponente e belo granito polido dará lugar a uma estrutura que se desagrega – fenómeno originado pela alteração dos feldspatos em argilas.
A ponte sobre o Tejo, sem manutenção regular, entrará num processo de desagregação. Mesmo a sua estrutura reforçada, que outrora permitia a circulação de comboios, não evitará o seu colapso.
Segundo William Rathje, da Universidade de Stanford, arqueólogo especializado em desperdícios humanos, ao fim de 10000 anos ainda será possível ler os jornais do último dia dos seres humanos na Terra. Em ambientes anóxicos (sem oxigénio), como aqueles em que os j
ornais são cobertos por sedimentos, os constituintes do papel permanecem inalteráveis, à semelhança do que ocorreu com os papiros com mais de 3000 anos.

Ao fim de 15000 anos, os últimos de vestígios de edifícios serão tragados pelo avanço de glaciares que uma nova Idade do gelo originará.
Os níveis de dióxido de carbono só ao fim de cem mil anos atingirão níveis idênticos ao do período pré-industrial.
Apenas decorridos 35000 anos, terão desaparecido os últimos vestígios de chumbo, acumulados ao longo de dezenas de anos de utilização automóvel.
Passados dez milhões de anos, as únicas marcas da nossa fugaz passagem pelo planeta serão, por exemplo, estátuas de bronze, como a do Rei Dom José I, no Terreiro do Paço.
Apenas a sua forma contemplará o Tejo (ou o local onde este estaria) num planeta sem seres humanos…

Referências
Marchante, E., comun. pess.
Weisman, A. 2007. The World without Us. St. Martin’s Press.
Western, D. 2001. Human-modified ecosystems and future evolution. PNAS vol. 98 n.10 5458-5465.

Gostaria de agradecer a disponibilidade da Professora Helena Freitas do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, pela conselhos iniciais e disponibilidade.

Imagens
dos dois posts “Cidades sem pessoas” – links nas imagens)

Complexos

It is an old maxim of mine that when you have excluded the impossible, whatever remains, however improbable, must be the truth.

Arthur Conan Doyle, 1858 – 1930

Se é certo que o Ciência Ao Natural não desfruta dos milhares de visitantes que recebem, por exemplo, A Educação do Meu Umbigo ou o De Rerum Natura, também é verdade que tem fiéis leitores, fruto mais do apoio que o jornal Público lhe presta do que pelo mérito da minha prosa.
Assim sendo, é fácil observar a procedência e parte dos gostos dos visitantes que frequentam o espaço de divulgação que é o Ciência Ao Natural. É uma actividade que me dá gosto: ver quem me visita, que artigos prefere, etc.
Na 2ª feira, dia 5 de Janeiro de 2009, publiquei um post intitulado “Currículo Cívico“, onde chamava a atenção para a inusitada clareza de análise de Medina Carreira. Apelava para que o vídeo de uma entrevista fosse visto, particularmente numa parte que Medina Carreira disserta sobre o estado da Educação em Portugal.
E que aquela entrevista deveria ser escutada por todos os portugueses.
Mesmo pelo Sr. Primeiro-Ministro.
Curioso é que, no dia seguinte, constatei ter sido visitado demoradamente, algumas das visitas com mais de uma hora, por utilizadores quer da Ceger – Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, quer da DGIDC – Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular.

Se um post que tem como palavras-chave “Primeiro-Ministro”, “Educação” e “Medina Carreira” gera longas visitas dos referidos organismos governamentais, pergunto:
que tipo de visitantes institucionais terei quando rabiscar um post que tenha como palavras-chave “aloé vera”, “pirâmide” e “loucura”?

Imagens – daqui e daqui

Cidades sem pessoas I

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 02/08/2007)

continua 5ª feira
8/01/2009

Cidade sem Sono


Ninguém dorme no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
As criaturas da lua cheiram e rondam as choupanas.

Virão iguanas vivas morder os homens que não sonham
e o que foge com o coração partido encontrará pelas esquinas
o incrível crocodilo imóvel sob o frouxo protestos dos astros.
(…)
Um dia
os cavalos viverão nas tabernas
e as formigas furiosas
atacarão os céus amarelos que se refugiam nos olhos das vacas.
Outro dia
veremos a ressurreição de mariposas dissecadas

e ainda, ao andar por uma paisagem de esponjas pardas e barcos mudos
veremos brilhar nosso anel e brotar rosas de nossa língua.

Alerta! Alerta! Alerta!
Aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro,
àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com um violento calafrio azul.
(…)
Não dorme ninguém pelo mundo. Ninguém, ninguém.
Já o disse.
Não dorme ninguém.

Mas se alguém de noite tem demasiado musgo nas têmporas,
abri os alçapões pa
ra ver sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.

Federico García Lorca

Este poema e um artigo no último número da Scientific American fizeram-me imaginar as cidades portuguesas sem os representantes da espécie humana.
De um momento para o outro e por qualquer motivo desconhecido, todas as pessoas desaparecem das cidades; surgirão vencedores e vencidos biológicos, no contexto citadino definitivamente abandonado pelos seus criadores.

No momento em que pela primeira vez a população urbana portuguesa ultrapassou a população rural, a especulação sobre o que aconteceria num ambiente urbano sem portugueses é curiosa, apresentando-se como uma realidade que deveremos tomar em atenção.
No I Congresso Europeu de Conservação Biológica, em 2006, foi discutido que “com metade da população mundial a viver actualmente em cidades e a previsão de 60% em 2030, o ambiente urbano é um dos pontos principais da agenda global de ambiente e de conservação.”

Mas o que se passaria nas nossas cidades, após o desaparecimento de todos os portugueses?

Os vencedores

Entre os vencedores biológicos deste omnicídio estão os mosquitos, que sem campanhas de extermínio, e aproveitando-se de zonas húmidas, aumentarão exponencialmente o seu número. Esses insectos alimentar-se-ão de animais como as aves. Estas, sem cabos de alta-tensão e arranha-céus (entretanto destruídos, por falta de manutenção), poderão voar livremente.

Todos os anos os arranha-céus são responsáveis pela morte de 1000 milhões de aves, só nos EUA. Para Daniel Klem Jr., ornitólogo do Muhlenberg College, o revestimento em vidro dos edifícios das cidades constitui um fenómeno “indiscriminado, eliminando aptos e não-aptos”. As aves colidem com aquelas estruturas, pois não as conseguem identificar, por serem espelhadas, vendo apenas o céu ou árvores reflectidas. Segundo este investigador, só a destruição de habitats tem um impacto mais negativo sobre as aves.

E os nossos animais de estimação?

Os gatos contam-se entre os prováveis vencedores do período pós-humano, caçando pequenos mamíferos, insectos e aves, à semelhança do que fazem actualmente. Gradualmente aumentarão de tamanho, competindo directamente com outros predadores.

Os cães poderão ter dois destinos. As raças de comportamento dominante agrupar-se-ão em matilhas, à semelhança do que ocorre hoje em dia, em matilhas de cães assilvestrados. Desta forma poderão sobreviver, readquirindo alguns comportamentos ancestrais dos lobos, percorrendo ruas e avenidas em busca de presas. Presentemente, os cães abandonados são responsáveis por ataques a rebanhos que ocorrem no nosso país, embora os proprietários prefiram responsabilizar o lobo-ibérico…
Na minha opinião, os cães mais dóceis ou pequenos serão remetidos para nichos ecológicos reduzidos, ou terão como destino a extinção. O meu Labrador provavelmente não se safaria…

Flora exótica como espanta-lobos (Ailanthus altíssima), robínia (Robinia pseudoacacia), acácia-de-espigas (Acacia longifolia) e árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum) existem nas nossas cidades, tendo sido aí introduzidas para ornamentação de jardins, arborização de espaços urbanos e sebes.

A espanta-lobos é proveniente da China, produzindo até 350 000 sementes anualmente. Além
de extremamente agressiva para as plantas autóctones, liberta toxinas que impedem o desenvolvimento de vegetação em seu redor.

Sem campanhas de erradicação, algumas plantas exóticas substituirão definitivamente as plantas originais, colonizando cada vez maiores áreas e modificando a paisagem natural.
Segundo Elizabete Marchante, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, “desde há pouco tempo, começou a surgir em espaços urbanos outra espécie (Sesbania punicea) que, apesar de ainda não ser invasora em Portugal, é uma invasora perigosa em ecossistemas com clima idêntico.”
As árvores vencedoras do abandono humano ocuparão a maioria das ruas ao fim de dois a quatro anos. As suas raízes irão destruir progressivamente asfalto e passeios, bem como a rede de água e esgotos, contribuindo para o cada vez maior esquecimento dos vestígios humanos.
Nada do aspecto actual das cidades será mantido. Se houvesse alguém para o descrever, veria um ambiente caótico em que as marcas de construção humana seriam, pouco a pouco, engolidas pela vegetação.

continua 5ª feira
8/01/2009