Macrina

Macrina nasceu por volta de 327 em Cesareia, na Capadócia (leste da Ásia Menor), irmã mais velha de Basílio de Cesárea e de Gregório de Nisa. Após a morte de seu noivo, ela se retirou com sua mãe Emélia e alguns ex-criados para uma fazenda da família no rio Íris perto de Anesi, onde viveu uma vida de contemplação, oração e penitência.

Gregório, que considerava Macrina uma mulher com formação teológica, desenvolveu uma espécie de biografia filosófica sobre a irmã, a principal fonte de informação sobre a vida e pensamento dela, Vida de Macrina. Esta obra abriga profundas discussões teológicas e filosóficas mantidas no encontro entre os irmãos nos últimos dois dias da vida de Macrina. Gregório entendeu a vida da irmã como um modelo a seguir. Ela “ascendeu à mais alta virtude humana por meio da filosofia” (VM 1.3).

Macrina ensinou ao irmão sobre a imortalidade da alma, trouxe a dor da perda humana para o campo da pedagogia do espírito e argumentou sobre a virtude e os sacrifícios que ela implica. Neste verbete, Laura Carolina informa como Macrina concebia a alma é como essencialmente sem gênero, ao considerar uma igualdade espiritual entre homens e mulheres. Assim, a figura de Macrina representa uma alteração nos papéis usuais, tanto femininos quanto masculinos, uma vez que ela adota os dois tipos de papéis e assim os transforma (Cadenhead, 2018).

Conheça a vida e o pensamento de Macrina neste verbete escrito pela professora da Universidade de Buenos Aires, Laura Carolina Durán. Assista aqui à entrevista com a autora do verbete.

Macrina

Por Laura Carolina Durán – Professora da Universidade de Buenos Aires

PDF – Macrina

Informações sobre sua vida
O Léxico dos Nomes dos Santos (Lexikon der Namen und Heiligen) diz sobre Macrina, a jovem: “ela nasceu por volta de 327 em Cesareia, na Capadócia (leste da Ásia Menor). Ela era a irmã mais velha de Basílio de Cesárea e de Gregório de Nisa. Após a morte de seu noivo, ela se retirou com sua mãe Emélia e alguns ex-criados para uma fazenda da família no rio Íris perto de Anesi, onde viveu uma vida de contemplação, oração e penitência. Gregório de Nisa elogia-a como uma mulher com formação teológica. Ele morreu em cerca de 379-380. Comemoração: 19 de julho”(Wimmer, Melzer, Gelmi, 2002). Esta breve informação destaca aspectos centrais da vida de Macrina, de quem não temos seus próprios escritos, mas seu modo de vida e pensamento nos foi transmitido. A principal fonte de informação a este respeito é a Vida de Macrina (doravante VM), escrita por Gregorio de Nisa em 381-382. A Carta 19 e o diálogo Sobre a alma e a ressurreição de Gregório também fornecem informações, junto com alguns depoimentos de Basílio e um epigrama de Gregório Nacianceno (Silvas, 2008, p. X). Em geral, Macrina é conhecida como irmã de Basílio e Gregório, dada a importância desses dois padres capadócios, mas não foi suficientemente considerada com base em seu próprio perfil intelectual e espiritual e no legado que deixou para a posteridade cristã. A Vida de Macrina foi caracterizada como uma “biografia filosófica” (Maraval, 1971, pp. 21-23). Gregório refere que se trata de uma carta que se estendeu, dirigida a alguém que permanece anônimo, companheiro de longas reflexões, várias delas centradas na memória da irmã. Ele escreve esta obra com a esperança de que “uma vida dessa natureza não seja esquecida com o passar do tempo” (VM 1.3, trad. Mateo Seco), desejo que podemos considerar realizado. Gregório entendeu a vida da irmã como um modelo a seguir. Ela “ascendeu à mais alta virtude humana por meio da filosofia” (VM 1.3). Essas duas palavras, virtude e filosofia, tinham uma relação especial para os cristãos do século IV, uma vez que, na Antiguidade tardia, os filósofos eram entendidos como aqueles que defendiam suas ideias com a sua forma de vida como um todo. A obra está dividida nas seguintes seções: prólogo, informações biográficas, encontro, sepultamento, milagres e epílogo. O prólogo levanta a questão central de como é possível para uma mulher levar uma vida tão perto de Deus. Gregório tratou do lugar das mulheres no movimento ascético do século IV. Afirma no prólogo: “uma mulher era o tema de nosso relato, se é que ela pode ser chamada de mulher, porque não sei se convém designar com uma qualidade pertencente à natureza a alguém que veio a estar acima da própria natureza” (VM prol.). Este lema de Gregório está muito próximo da fórmula de Gálatas 3:28 “não há mais homem nem mulher”, ideia que representa a antítese escatológica de Gênesis 1:27 (Deus aos seres humanos à sua imagem, à imagem de Deus, criou, macho e fêmea os criou).


Na seção de dados biográficos, Gregório destaca os seguintes eventos: o sonho da mãe pouco antes do nascimento de Macrina, sua educação, seu noivado, a decisão de continuar uma vida ascética, a transformação de seu estilo de vida, a influência sobre seus irmãos Basílio e Pedro, a força em face da adversidade. Entre essas passagens narrativas, são incorporadas descrições do ideal ascético de vida que, juntamente com eventos externos, esclarecem a figura de Macrina. Gregório vê o estilo de vida de Macrina como um progresso constante em direção a uma santidade cada vez maior, onde as crises e golpes do destino representam oportunidades para se provar e seguir por esse caminho. Ele enumera três figuras femininas que vão moldar a vida de Macrina: Macrina, a anciã (avó paterna), Emélia (mãe) e Tecla (discípula de Paulo). A anciã Macrina sofreu a última perseguição aos cristãos no início do século IV (VM 2.1) e teve seus bens confiscados (VM 20.2). Ela fugiu da perseguição com sua família para as florestas montanhosas de Ponto e passou sete anos ali, sofrendo com o clima severo. Duas gerações depois, seus netos escolheram um estilo de vida muito semelhante, mas voluntariamente. Por outro lado, Macrina, a anciã, era muito admirada em sua família por ter recebido formação de Gregório Taumaturgo, por sua vez instruído por Orígenes. A importância dos ensinamentos de Gregório Taumaturgo é ilustrada na obra que Niceno lhe dedicou (Vida de Gregório Taumaturgo). Macrina leva o nome desta avó e o da discípula de Paulo, seus nomes públicos e secretos, respectivamente. O nome secreto é revelado a Emélia em uma visão, em que alguém de porte mais majestoso do que um homem lhe diz para chamar sua filha por nascer de Tecla (VM 2.3). Como em todas as religiões, sonhos e visões desempenham um papel importante no Cristianismo como meio de transmissão da vontade divina. Tecla foi a discípula de Paulo cuja história foi registrada nos Atos de Paulo e Tecla, apócrifos do século II, e no Simpósio ou Sobre a virgindade de Metódio de Olímpia, o texto que provavelmente mais influenciou a caracterização de Macrina por Gregório (Wilson Kastner, 1979, p. 110). Tecla pregou o Evangelho como apóstola e se tornou modelo para todas as mulheres ascetas (Davies, 2001). Gregório, Basílio e Gregório de Nazianzo referem-se em várias ocasiões a Tecla e suas virtudes. Segundo Gregório, esse nome secreto tem a ver com o modo de vida que sua irmã escolheu, já que os nomes são entendidos como portadores de símbolos e significados.


Quanto à educação de Macrina, embora não se afirme que tenha aprendido a ler e a escrever, é muito provável que o tenha feito. Na Vida descreve-se o cotidiano monástico: todas as atividades da Macrina, desde levantar-se até deitar, eram acompanhadas pelo canto de salmos (VM 11.2). Por outro lado, a implementação de um regime monástico acarreta a necessidade do trabalho manual. Depois de escolher uma vida ascética, Macrina costumava fazer pão para a mãe com as próprias mãos (VM 5.3), aceitando assim um trabalho realizado por escravas. Macrina e a mãe decidiram expressamente assumir os trabalhos necessários. Na comunidade feminina fundada por Macrina, atribuía-se grande importância ao fato de não haver mais diferença de hierarquia, pois a mesa, a cama e todos os aspectos do cotidiano eram compartilhados (VM 11.1).


No final da infância, Macrina comprometeu-se em casamento. Para as meninas, a idade de 12 anos era o limite entre a infância e a idade adulta, e em Bizâncio elas geralmente se casavam aos 12 ou 13 anos (Clark, 1981, pp. 13-15, 76ss.; Elm, 1994, p. 141). O candidato selecionado para Macrina tinha concluído os estudos e estava no início da carreira de orador (VM 5), mas o casamento não se concretizou devido ao falecimento do jovem. Os pais tentaram persuadi-la a um novo noivado, mas sem sucesso: “ela, chamando de casamento a decisão do pai, e como se o que já estava decidido realmente tivesse acontecido, decidiu permanecer celibatária” (VM 5.1), ou seja, Macrina se considera viúva. Com esta decisão, Macrina não atingiu seu objetivo na vida, ao contrário, o verdadeiro caminho começa aí.
O curso posterior da Vida descreve-a como uma guia. A decisão de não se casar tornou-a uma virgem (parthénos), que de boa vontade dedica sua vida ao Senhor. A segunda decisão foi ficar com a mãe. Mãe e filha se cuidam mutuamente, a mãe desempenhava as tarefas educativas e a filha, tarefas manuais e domésticas, enquanto ainda moravam na casa da família (VM 5.3). A relação entre as duas se inverte quando Macrina consegue atrair sua mãe para sua orientação de vida, a filosofia. A fase de ascetismo familiar de Macrina pertence à primeira metade do século IV, enquanto a partida para o páramo, com o início da vida monástica, à segunda metade do mesmo século. Gregório apresenta a vida ascética de sua irmã como um progresso constante em direção ao objetivo, a união com Cristo. Mudanças internas e externas marcam o progresso. O plano de vida de Macrina adquire grande influência, pois as pessoas ao seu redor decidem se juntar a ela. Gregório se refere às mudanças externas a partir do exemplo dos servas e escravas que são libertados por Macrina, elevados a “irmãs e iguais” (VM 7.1), e compartilham o novo estilo de vida. O padrão social normal é simplesmente anulado, pois não vale mais lutar pela riqueza, mas sim tentar participar da vida dos pobres, do serviço mútuo, que ganha uma nova qualidade pelo fato de se tornar uma ajuda voluntária. Macrina executou a alforria de todos os empregados domésticos. Essa alforria ocorria de duas maneiras: como manumissio in ecclesia (promulgada por dois éditos Constantinianos de 316 e 323, um procedimento formalizado) ou como manumissio inter amicos (um escravo era declarado amigo, por carta – per epistulam – ou por convite para jantar na mesma mesa — per mesam). Provavelmente na comunidade de Anesi se praticava essa última forma de alforria (Elm 1996: 85 ss.). Isso representa um aspecto do impacto social que teve a implementação dessa nova forma de vida. Por outro lado, entre os membros da comunidade, foram admitidas muitas pessoas que sofreram da grande fome dos anos 368/369 (VM 12.3). Durante esta grande fome, os mosteiros masculinos e femininos no Íris forneciam grãos para a população circundante “de modo que o deserto parecia ter se transformado em cidade pelas multidões daqueles que se reuniam” (VM 12.3, Stathakopoulos 2004). Comunidades de mosteiros foram fundadas no deserto para escapar do barulho e da agitação da cidade; entretanto, se necessário, o páramo poderia se transformar em cidade. Segundo o que se sabe até hoje, o mosteiro fundado por Macrina é um dos mais antigos mosteiros femininos a surgir na Ásia Menor. Na capital, Constantinopla, não havia um único mosteiro antes de 384 (Albrecht, 1986, p.119). Os mosteiros de mulheres e homens eram próximos uns dos outros e tinham muitas conexões entre si, embora cada comunidade fosse organizada de forma independente. Das descrições feitas por Gregório, pode-se deduzir que os dois mosteiros de Anesi tinham uma igreja comum, onde se celebravam os serviços (VM 16.1; cf. Cadenhead, 2018, p. 87ss).


Gregório não informa a data exata do retiro para Ponto. O fato de Macrina continuar a sua vida ascética em Erémia é muito importante para ele, como se pode ver, por exemplo, na Carta 19, na qual, em primeiro lugar, diz que a sua irmã se encontra no deserto do Ponto (Carta 19.7). Em geral se aceitou que Basílio foi o primeiro a estabelecer a vida monástica masculina em Ponto e que Macrina mais tarde o seguiu (La Porte, 1982, p. 86; Lowther Clarke, 192, pp. 37-38). No entanto, a Vida nos ensina que aconteceu exatamente ao contrário. Basílio foi convertido ao ideal ascético de vida por Macrina (VM 6.1). A fundação do mosteiro de Macrina não responde aos movimentos anteriores da igreja, pelo contrário, a igreja teve que lidar com este despertar religioso das mulheres, que se desenvolveu de forma independente. Trata-se de um fenômeno altamente significativo do século IV: tanto no Oriente quanto no Ocidente, famílias aristocráticas inteiras se entregaram à vida ascética, uma transformação na qual as mulheres desempenharam um papel central (Giannerelli, 1989, p. 226; Serrato Garrido, 1999).


A principal característica da vida ascética pode ser resumida na ideia de “vida angelical” (bíos angelikós), ou seja, a imitação da vida dos anjos (VM 11.2; Frank, 1964). Esta vida na fronteira implica participação em ambos os mundos, no mundo da vida humana e no que está acima do humano. Gregório expressa a tensão desse contraste em um paradoxo, pois “mesmo vivendo na carne, em semelhança com as potestades incorpóreas, não estavam marcadas pelo peso do corpo, ao contrário, sua vida era elevada e tendia para cima, desdobrando-se nas alturas junto com as potestades celestiais ”(VM 11.3). Segundo Gregório, Macrina transcendeu a natureza humana comum porque não temia a iminência de sua morte (VM 18.1, 22.3; Frank 1964). Aqueles que vivem como parthénos já estão colhendo na vida presente o que foi prometido para a ressurreição. À medida que aumenta a assimilação aos seres sobrenaturais, a filosofia progride (VM 11.4). Aqui não há medida a ser alcançada, porém o esforço pela filosofia, que se realiza por meio do exercício das virtudes, só pode ir além superando o que já foi realizado. Esta descrição resume o que Gregório e Macrina entendem por filosofia (VM 11.2).


A Vida relata dois milagres alcançados pelas orações de Macrina, ambos curas: da própria Macrina e de uma menina com uma doença ocular (VM 31.1, 36.2). Os milagres não eram entendidos como um sinal da própria perfeição no poder, mas como um testemunho do poder e da presença de Cristo. Através da sua fé e modo de vida, Macrina torna-se a verdadeira seguidora de Jesus e dos seus discípulos, recebendo os mesmos dons da graça que eles. Como mulher, ela participa da nova realidade testemunhada no Evangelho e a difunde por meio de milagres (Albrecht, 1986, pp. 100-101).

Em um ponto muito proeminente da Vida, são introduzidos termos e imagens do misticismo da noiva. Imediatamente antes de sua morte, Macrina revela aos que a cercam o que esconde no fundo do coração: “o amor divino e puro do marido invisível” (VM 22.4). O paralelismo com a ocultação do nome Tecla é significativo, pois esse amor de Macrina pelo noivo celestial fica oculto e só é comunicado antes da morte aos que a cercam. Para Macrina, a morte significa união com Cristo, o amado e desejado. Quanto mais sua vida se aproximava do fim, mais ela “contemplava a beleza do noivo” (VM 23.1). Este motivo, usado com moderação aqui, será uma imagem altamente desenvolvida em tempos posteriores. A introdução do topos da mística da noiva na Vida apresenta um paralelo marcante com o martírio de Perpétua e Felicidade. Em seu último dia, Perpétua é levada à arena com outros cristãos para lutar contra os animais e naquele momento, em face da morte, ela diz: “ela os seguia com o rosto iluminado e um passo tranquilo, como a noiva de Cristo” (Paixão, XVIII). Cristo como marido e seu seguidor como esposa não apenas simbolizam um relacionamento interno da alma humana com o divino, mas aparecem aqui como uma categoria que determina a vida real. Essa tendência aumentou ao longo do século IV, à medida que a vida ascética das mulheres era cada vez mais entendida como casamento com Cristo (De virg. XX 3 e segs.; Bjerre-Aspergen, 1977). O Tratado da Virgindade pode ser considerado uma reflexão teológica de Gregório sobre vidas tão amadas por ele: Macrina e Basílio (Völker, 1993, p. 228). A virgindade desempenhou um papel nas sociedades pagãs, e no cristianismo o motivo nupcial remonta a Paulo que, em 2 Coríntios 11: 2 entende a congregação como a esposa de Cristo. Além dessa interpretação, especialmente desde Orígenes, a consideração da alma individual como a esposa de Cristo se desenvolveu a partir da exegese do Cântico dos Cânticos.

Assim como no início da Vida Gregório relata a visão de Emélia antes do nascimento de Macrina, ao fim ele relata uma segunda visão que ele mesmo experimentou, intimamente relacionada à primeira. Quando ia visitar a irmã, depois de oito anos sem vê-la, Gregório teve um sonho (VM 15.2). Em suas mãos ele parece levar relíquias de mártires das quais emanam raios deslumbrantes. O paralelismo na descrição de ambas as visões é surpreendente: ambos, mãe e Gregório, carregam Macrina nas mãos, a mãe sua filha ainda não nascida e Gregório as relíquias, os restos mortais. O nascimento e a morte de Macrina são acompanhados por aparições simbólicas que iluminam seu caminho. Antes de ela nascer, sua mãe a viu e conheceu seu verdadeiro destino marcado em nome de Tecla e, antes de ela deixar o mundo, seu irmão viu o que ela realmente era: uma mártir. Desta forma, Gregório antecipa sua veneração, já que mártires e santos se tornavam tais em virtude das homenagens que recebiam, o que é corroborado na descrição do serviço fúnebre (VM 34.1).

O pensamento de Macrina
Gregório destacou a figura de sua irmã não só como mestra de vida, mas também como profunda pensadora e exegeta em Sobre a alma e a ressurreição (De anima et ressurrectione, doravante DAR). Esta obra expõe detalhadamente um evento da Vida (VM 18.1), na medida em que desenvolve as profundas discussões teológicas e filosóficas mantidas no encontro entre os irmãos nos últimos dois dias da vida de Macrina. Dado o tema e o contexto do diálogo, este foi denominado “Fédon Cristão” (Frede-Reis, 2007, p. 16). Por outro lado, também tem semelhança com Banquete, pois, assim como Diotima instrui Sócrates sobre a natureza do amor, Macrina ensina ao irmão a imortalidade da alma. Ressalte-se que o texto de Gregório é muito semelhante ao de Metódio – oponente de Orígenes – intitulado Da Ressurreição (Woods Callahan, 1967, p.195). A preocupação de Macrina com o estado de espírito de Gregório é assimilada ao primeiro livro da Consolação da Filosofia de Boécio, como também nos lembra as conversas entre Agostinho e Mônica em Ostia. Nesse diálogo, ao contrário do que se afirma sobre a formação de Macrina na Vida, o professor aparece como alguém competente em todos os problemas científicos, filosóficos e teológicos. Podemos supor que Gregório não apresentou ao acaso a figura de sua irmã como companheira nesses diálogos que tratam de temas tão importantes de seu pensamento (Daniélou 1940), mas que se valeu de experiências vividas com Macrina, e a delineou como uma mulher com uma formação completa dedicada a instruí-lo. Apresentaremos as ideias centrais trabalhadas nesta obra.

Gregório primeiro expõe a dor que sentiu pela morte de Basílio, e por isso se aproximou da irmã em busca de consolo. Refere que Macrina “como costumam fazer aqueles que têm muita experiência na arte de domesticar potros” permitiu-lhe expressar a sua dor e depois insistiu para que conseguisse conter as emoções (DAR 1.1, edição de Moreschini). Macrina traz assim a dor da perda humana para o campo da pedagogia do espírito. O remédio para essa dor desproporcional é aprender o que é a alma. Aqui, ao contrário do que acontece com Sócrates no Fédon, trata-se de agradar ou ceder à dor de outra pessoa. Deixar que outra pessoa experimente sua dor sem repreensão imediata é necessário para educá-la em uma percepção verdadeira da natureza da alma (Williams, 1993). Gregório refere que a dor e o medo da morte são típicos do ser humano. Macrina convida a uma avaliação racional desta situação e questiona o irmão sobre a sua dor, pois ela revelaria dúvidas sobre a crença na sobrevivência da alma para além da morte do corpo. No final desta introdução, Macrina esboça o argumento sobre a virtude e os sacrifícios que ela implica, o que só faz sentido se considerarmos a eternidade da alma. Na vida virtuosa, a morte é uma situação extrema que nos obriga a nos perguntar por que vivemos como vivemos. Gregório refere que há opiniões divergentes sobre o assunto, entre gregos e filósofos, e relembra opiniões de filósofos materialistas que entendem que, se a alma está nos elementos do corpo, quando ele se dissolve ao morrer, o mesmo acontece com a primeira (DAR 3.3). Macrina retoma esses argumentos e menciona os estóicos e os epicureus, enfocando a figura de Epicuro, e explica o erro de tais posições. Ensina como através das coisas visíveis podemos conhecer as não visíveis, como a existência de Deus, e através de uma citação do profeta: “os próprios céus cantam com vozes indizíveis a glória de Deus” (DAR 4.6, Salmo XVIII. 1) introduz a descrição da harmonia de todas as coisas¬ – incluindo uma série de considerações astronômicas – que nos obriga a pensar sobre a virtude divina primorosa e engenhosa que aparece em todas as coisas e se estende por meio delas.

Gregório objeta sobre a relação desse argumento sobre o mundo com a alma humana. Macrina responde com a ideia do homem como um microcosmo (DAR 4.7), que não é apenas um reflexo do cosmos maior, mas, por um lado, reproduz a harmonia e, por outro, constitui um elo entre o mundo sensível e o inteligível. A relação entre o macrocosmo e o microcosmo, portanto, não se limita a uma relação entre o maior e o menor, mas enfoca no microcosmo o elo entre os dois planos da realidade, o inteligível e o sensível. Essa ideia está presente em outra obra de Gregório (De hom. opif. cap. 1 e 8), o que nos faz pensar na importância de sua irmã em relação às formulações centrais de seu pensamento, uma vez que as expressa por meio de Macrina.


Gregório exige uma definição de alma, à qual Macrina responde:

A alma é uma essência gerada, uma essência viva, intelectual, que por si mesma infunde em um corpo dotado de instrumentos e sensações uma força vital e capaz de perceber coisas que caem sob os sentidos, enquanto se mantém em vida a natureza capaz de percebê-las. (DAR 5).

Dessa forma, Macrina apresenta dois aspectos centrais relacionados à sua concepção de alma: o relativo ao vivente e o caráter intelectual. Durante toda a primeira seção do diálogo, a ênfase é colocada no traço racional da alma, guia das coisas que são percebidas pelos sentidos para penetrar nas coisas não perceptíveis. Da mesma forma que o mundo inteiro é governado pela inteligência divina, no ser humano a inteligência governa como aspecto central da alma. Diante disso, Gregório objeta que assim chegamos a algo absurdo, já que nossa mente seria a mesma coisa que a natureza divina (DAR 6.15). Macrina corrige o irmão, já que não se trata do mesmo, mas sim da semelhança, pois a humanidade foi criada à imagem e semelhança. Assim como a “sabedoria arcana e inefável de Deus” (DAR 7.16) brilha em todas as coisas, mas é diversa das coisas singulares, também a alma simples, indivisível e sem forma por natureza não é o mesmo que a coagulação e o agrupamento dos corpos, por isso não duvidamos da eficácia vital da alma, que se mistura e se difunde nos elementos do corpo. A alma infunde os elementos com sua força vital e, uma vez dissolvido o agrupamento que compõe os corpos, aquela natureza simples e não composta permanece presente nas partes. Em outras palavras, nas palavras de Macrina: “porque o composto se dissolve, não necessariamente se segue que o que não é composto também se dissolve” (DAR 7.16). Desta forma, defende-se a ideia de que a alma permanecerá unida aos elementos que formaram o corpo após a sua desintegração pela morte. No momento da ressurreição dos corpos, a alma mais uma vez informará o corpo ressuscitado. Interpretou-se que se trata aqui de um vínculo com a doutrina estóica segundo a qual o princípio divino, imanente ao universo, está intrinsecamente ligado ao material, embora se denomine espírito e seja racional (Moreschini, 2014, p. 372).

Gregório questiona novamente sua mestra, com o problema das paixões da alma, pois são o desejo e a raiva os geradores dos movimentos (DAR 8.19). Macrina responde que as paixões estão na alma, mas não são a alma, pois ela é semelhante a Deus e não há paixões nela. Aqui se retoma uma imagem desde o início, pois ela argumenta que é necessário “ignorar a carruagem de Platão e o tronco dos cavalos atrelados a esta carruagem […] e deixar de lado o que ensina aquele filósofo que veio depois de Platão” (DAR 8.20, cf. Fedro 246a-254e, República 441e-442b) para procurar o fundamento nas Escrituras. O que Macrina rejeita é a noção de uma canga de cavalos diferente entre si em seus impulsos, ou seja, ela desconfia do chamado problema do homúnculo que trata as partes ou poderes da alma como quase-sujeitos (Annas, 1981, pp. 150-151). O que se segue na exposição de Macrina é, de fato, uma eliminação cuidadosa de qualquer independência para a vida afetiva, ao mesmo tempo que nega que seja intrínseca à alma. As Escrituras ensinam que tudo o que é estranho a Deus, visto que a alma é criada à imagem e semelhança, não pertence à definição da alma. Essas paixões também são constituintes de naturezas não racionais, portanto não caracterizam o que é próprio da alma racional, não são a natureza da alma, mas afetos e perturbações “como verrugas que surgem da parte pensante da alma. Essas partes são consideradas coisas da alma, porque estão relacionadas, mas não como aquilo que por sua essência e natureza é a alma” (DAR 8.24). Esta afirmação é fundamental para a psicologia de todo o pensamento niceno e se conecta com sua antropologia, que segue a doutrina bíblica do homem criado à imagem de Deus: como imagem de Deus, o homem foi inicialmente desprovido de paixão, que se agarrou à sua alma como um resultado do pecado, sem deixar de ser algo intrinsecamente estranho a ele. A essência da alma, portanto, não está aprisionada na irracionalidade. Gregório novamente se opõe a Macrina, neste caso seguindo exemplos bíblicos em que as paixões cumprem uma função no desenvolvimento da virtude. Macrina aceita a objeção e se ocupa dessa confusão. Ele expõe, a fim de esclarecer o assunto, uma interpretação da ordem da criação encontrada nas Escrituras. Desejo e raiva não são características essenciais da alma, mas, em uma escala de realidade que vai do grau mais baixo (a planta e seus movimentos indicam a natureza animada em seu estado essencial) ao mais alto (a alma racional no homem), constituem um série de qualidades que são adicionadas à própria alma:

O numen divino chegou à criação do homem seguindo um determinado caminho e uma coerência que tem sua própria ordem. Porque, como nos diz a história, após a criação do universo, o homem não esteve imediatamente na terra, ao contrário, ele foi precedido pela natureza daqueles que não têm razão, assim como, antes destes, existiam as plantas. A Sagrada Escritura mostra com isso, a meu ver, que a força vital se une à natureza corporal seguindo seu próprio processo, penetrando e infundindo-se primeiro naqueles que não têm os sentidos, depois alcançando aqueles que os têm e, finalmente, ascendendo até aqueles que são dotados de mente e inteligência e participam da razão (DAR 10.25).

O homem abrange todas as espécies vitais. A força dotada de razão não pode estar na vida corporal se não for pela mediação dos sentidos, e a comunhão se dá pelos afetos ou paixões, que são movimentos da alma que podem estar a serviço da virtude ou do vício, de acordo com o uso que a vontade e o livre arbítrio fazem deles. Aqui Macrina apresenta mais uma vez a imagem do cocheiro, que representa a razão que deve reger o movimento irracional das paixões dos cavalos. Isso implica uma concepção que não concorda com a ideia origeniana da pré-existência das almas (Karamanolis, 2020). O racional cresce a partir do mais elementar. O poder de animação move-se lentamente através dos diferentes níveis da vida material, do vegetal ao animal e do animal ao racional, o nível em que é mais plenamente ativo precisamente como razão. No entanto, mesmo neste estágio, ele não pode ser separado da matéria, porque a razão requer experiência sensorial para operar. Ou seja, aqui a definição é centrada em termos da força motriz: a alma é o que efetua o movimento e, portanto, é um termo aplicável a tudo o que, em um determinado nível de existência, produz e sustenta o movimento próprio desse nível. Nos seres humanos, então, a alma é um conceito complexo porque o movimento próprio para os humanos é complexo: a alma humana é criada, viva e inteligente ¬– como vimos na primeira definição – mas também é uma força vital ou poder de animação que trabalha em conjunto com a vida sensível. Em geral, podemos traçar a distinção entre essência (ousía) da alma, para a referência à alma como distintamente ativa e inteligente, e natureza (phýsis) da alma, para a realidade mais complexa da alma como animadora de um corpo. Nossa animalidade pode se tornar uma virtude quando a razão dirige o desejo e a raiva, que não são ruins em si. Esta história de inteligência animada fornece uma ferramenta para lidar com o problema de como vincular a unidade psíquica ao conflito psíquico.

Gregório objeta mais uma vez que, se a purificação das almas implica que não há movimento destituído de razão, na alma perecerá a faculdade do desejo e com ela todo desejo para o bem (DAR 15.42). Macrina responde com outra ideia central para o pensamento niceno. Com efeito, indica que a alma de alguma forma imita a natureza celeste e, tendo alcançado a tranquilidade, o apaziguamento e o fim de todas as coisas que agora são almejadas como boas, encontrará a única coisa que não tem fim: o amor e a caridade, que nunca perecem. A ação do amor não tem limites porque o que é belo ou bom em si não tem limites. Desta forma, o mal será expulso do que existe. Assim, dois conceitos centrais estão ligados: a epéktasis e a apokatástasis. A epéktasis implica aquele desejo constante, típico de uma vida destinada ao crescimento infinito na contemplação de Deus e na virtude, visto que o amor e o desejo da alma não têm limites na capacidade de crescimento, com a concepção paradoxal de uma perfeição que consiste em um progresso que não tem fim (Daniélou, 1944, p. 291ss). Por isso, poderíamos argumentar que o texto toma a dor humana comum pelo luto, compreensível e permissível, como paradigma do desejo, ou seja, da fixação em um objeto: a dor que é moldada ou sintonizada pela mente deve, presumivelmente , ser capaz de ver o outro como algo mais do que o mero objeto de apego. A crença de que a vida eterna da alma é o crescimento eterno é uma das contribuições mais conhecidas e distintas de Macrina-Gregório para a espiritualidade cristã: o objetivo não é a plenitude atemporal, mas uma expansão constante da consciência amorosa, até mesmo uma renovação do deslumbramento (Williams, 1993, p. 241). A ideia origineana da apokatástasis entende que, no final dos séculos, todas as coisas serão restauradas em Cristo e o mal deixará de existir, um estado de retorno à santidade original anterior ao pecado, uma restauração universal de modo definitivo.

Uma última reflexão. Ao longo deste diálogo, a alma é vista como essencialmente sem gênero, e uma igualdade espiritual fundamental é mantida entre homens e mulheres, que não são determinados simplesmente por sua oposição / complementaridade: eles são precisamente iguais como mentes corporificadas, lutando da mesma forma com a tarefa de tornar a existência animal uma vida significativa. Há quem tenha feito leituras muito críticas sobre a figura de Macrina em Gregório, pois interpretam que se trata, em última instância, de estratégias que fortalecem o discurso universalizante masculino (Clark, 1998; Burrus, 2005; Halperin, 1990). No entanto, devemos considerar que a teologia de gênero de Gregório não se concentra na diferença, mas na unidade (a confluência de masculino e feminino em um estado sem gênero), que desestabiliza o gênero por meio da transposição anagógica para um estado angelical sem gênero (Boersma, 2013, pp.110 -111). A figura de Macrina representa uma alteração nos papéis usuais, tanto femininos quanto masculinos, uma vez que ela adota os dois tipos de papéis e assim os transforma (Cadenhead, 2018).

Tradução de Carolina Araújo

Bibliografia
Edições e traduções
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Informações sobre sua vida
O Léxico dos Nomes dos Santos (Lexikon der Namen und Heiligen) diz sobre Macrina, a jovem: “ela nasceu por volta de 327 em Cesareia, na Capadócia (leste da Ásia Menor). Ela era a irmã mais velha de Basílio de Cesárea e de Gregório de Nisa. Após a morte de seu noivo, ela se retirou com sua mãe Emélia e alguns ex-criados para uma fazenda da família no rio Íris perto de Anesi, onde viveu uma vida de contemplação, oração e penitência. Gregório de Nisa elogia-a como uma mulher com formação teológica. Ele morreu em cerca de 379-380. Comemoração: 19 de julho”(Wimmer, Melzer, Gelmi, 2002). Esta breve informação destaca aspectos centrais da vida de Macrina, de quem não temos seus próprios escritos, mas seu modo de vida e pensamento nos foi transmitido. A principal fonte de informação a este respeito é a Vida de Macrina (doravante VM), escrita por Gregorio de Nisa em 381-382. A Carta 19 e o diálogo Sobre a alma e a ressurreição de Gregório também fornecem informações, junto com alguns depoimentos de Basílio e um epigrama de Gregório Nacianceno (Silvas, 2008, p. X). Em geral, Macrina é conhecida como irmã de Basílio e Gregório, dada a importância desses dois padres capadócios, mas não foi suficientemente considerada com base em seu próprio perfil intelectual e espiritual e no legado que deixou para a posteridade cristã. A Vida de Macrina foi caracterizada como uma “biografia filosófica” (Maraval, 1971, pp. 21-23). Gregório refere que se trata de uma carta que se estendeu, dirigida a alguém que permanece anônimo, companheiro de longas reflexões, várias delas centradas na memória da irmã. Ele escreve esta obra com a esperança de que “uma vida dessa natureza não seja esquecida com o passar do tempo” (VM 1.3, trad. Mateo Seco), desejo que podemos considerar realizado. Gregório entendeu a vida da irmã como um modelo a seguir. Ela “ascendeu à mais alta virtude humana por meio da filosofia” (VM 1.3). Essas duas palavras, virtude e filosofia, tinham uma relação especial para os cristãos do século IV, uma vez que, na Antiguidade tardia, os filósofos eram entendidos como aqueles que defendiam suas ideias com a sua forma de vida como um todo. A obra está dividida nas seguintes seções: prólogo, informações biográficas, encontro, sepultamento, milagres e epílogo. O prólogo levanta a questão central de como é possível para uma mulher levar uma vida tão perto de Deus. Gregório tratou do lugar das mulheres no movimento ascético do século IV. Afirma no prólogo: “uma mulher era o tema de nosso relato, se é que ela pode ser chamada de mulher, porque não sei se convém designar com uma qualidade pertencente à natureza a alguém que veio a estar acima da própria natureza” (VM prol.). Este lema de Gregório está muito próximo da fórmula de Gálatas 3:28 “não há mais homem nem mulher”, ideia que representa a antítese escatológica de Gênesis 1:27 (Deus aos seres humanos à sua imagem, à imagem de Deus, criou, macho e fêmea os criou).
Na seção de dados biográficos, Gregório destaca os seguintes eventos: o sonho da mãe pouco antes do nascimento de Macrina, sua educação, seu noivado, a decisão de continuar uma vida ascética, a transformação de seu estilo de vida, a influência sobre seus irmãos Basílio e Pedro, a força em face da adversidade. Entre essas passagens narrativas, são incorporadas descrições do ideal ascético de vida que, juntamente com eventos externos, esclarecem a figura de Macrina. Gregório vê o estilo de vida de Macrina como um progresso constante em direção a uma santidade cada vez maior, onde as crises e golpes do destino representam oportunidades para se provar e seguir por esse caminho. Ele enumera três figuras femininas que vão moldar a vida de Macrina: Macrina, a anciã (avó paterna), Emélia (mãe) e Tecla (discípula de Paulo). A anciã Macrina sofreu a última perseguição aos cristãos no início do século IV (VM 2.1) e teve seus bens confiscados (VM 20.2). Ela fugiu da perseguição com sua família para as florestas montanhosas de Ponto e passou sete anos ali, sofrendo com o clima severo. Duas gerações depois, seus netos escolheram um estilo de vida muito semelhante, mas voluntariamente. Por outro lado, Macrina, a anciã, era muito admirada em sua família por ter recebido formação de Gregório Taumaturgo, por sua vez instruído por Orígenes. A importância dos ensinamentos de Gregório Taumaturgo é ilustrada na obra que Niceno lhe dedicou (Vida de Gregório Taumaturgo). Macrina leva o nome desta avó e o da discípula de Paulo, seus nomes públicos e secretos, respectivamente. O nome secreto é revelado a Emélia em uma visão, em que alguém de porte mais majestoso do que um homem lhe diz para chamar sua filha por nascer de Tecla (VM 2.3). Como em todas as religiões, sonhos e visões desempenham um papel importante no Cristianismo como meio de transmissão da vontade divina. Tecla foi a discípula de Paulo cuja história foi registrada nos Atos de Paulo e Tecla, apócrifos do século II, e no Simpósio ou Sobre a virgindade de Metódio de Olímpia, o texto que provavelmente mais influenciou a caracterização de Macrina por Gregório (Wilson Kastner, 1979, p. 110). Tecla pregou o Evangelho como apóstola e se tornou modelo para todas as mulheres ascetas (Davies, 2001). Gregório, Basílio e Gregório de Nazianzo referem-se em várias ocasiões a Tecla e suas virtudes. Segundo Gregório, esse nome secreto tem a ver com o modo de vida que sua irmã escolheu, já que os nomes são entendidos como portadores de símbolos e significados.
Quanto à educação de Macrina, embora não se afirme que tenha aprendido a ler e a escrever, é muito provável que o tenha feito. Na Vida descreve-se o cotidiano monástico: todas as atividades da Macrina, desde levantar-se até deitar, eram acompanhadas pelo canto de salmos (VM 11.2). Por outro lado, a implementação de um regime monástico acarreta a necessidade do trabalho manual. Depois de escolher uma vida ascética, Macrina costumava fazer pão para a mãe com as próprias mãos (VM 5.3), aceitando assim um trabalho realizado por escravas. Macrina e a mãe decidiram expressamente assumir os trabalhos necessários. Na comunidade feminina fundada por Macrina, atribuía-se grande importância ao fato de não haver mais diferença de hierarquia, pois a mesa, a cama e todos os aspectos do cotidiano eram compartilhados (VM 11.1).
No final da infância, Macrina comprometeu-se em casamento. Para as meninas, a idade de 12 anos era o limite entre a infância e a idade adulta, e em Bizâncio elas geralmente se casavam aos 12 ou 13 anos (Clark, 1981, pp. 13-15, 76ss.; Elm, 1994, p. 141). O candidato selecionado para Macrina tinha concluído os estudos e estava no início da carreira de orador (VM 5), mas o casamento não se concretizou devido ao falecimento do jovem. Os pais tentaram persuadi-la a um novo noivado, mas sem sucesso: “ela, chamando de casamento a decisão do pai, e como se o que já estava decidido realmente tivesse acontecido, decidiu permanecer celibatária” (VM 5.1), ou seja, Macrina se considera viúva. Com esta decisão, Macrina não atingiu seu objetivo na vida, ao contrário, o verdadeiro caminho começa aí.
O curso posterior da Vida descreve-a como uma guia. A decisão de não se casar tornou-a uma virgem (parthénos), que de boa vontade dedica sua vida ao Senhor. A segunda decisão foi ficar com a mãe. Mãe e filha se cuidam mutuamente, a mãe desempenhava as tarefas educativas e a filha, tarefas manuais e domésticas, enquanto ainda moravam na casa da família (VM 5.3). A relação entre as duas se inverte quando Macrina consegue atrair sua mãe para sua orientação de vida, a filosofia. A fase de ascetismo familiar de Macrina pertence à primeira metade do século IV, enquanto a partida para o páramo, com o início da vida monástica, à segunda metade do mesmo século. Gregório apresenta a vida ascética de sua irmã como um progresso constante em direção ao objetivo, a união com Cristo. Mudanças internas e externas marcam o progresso. O plano de vida de Macrina adquire grande influência, pois as pessoas ao seu redor decidem se juntar a ela. Gregório se refere às mudanças externas a partir do exemplo dos servas e escravas que são libertados por Macrina, elevados a “irmãs e iguais” (VM 7.1), e compartilham o novo estilo de vida. O padrão social normal é simplesmente anulado, pois não vale mais lutar pela riqueza, mas sim tentar participar da vida dos pobres, do serviço mútuo, que ganha uma nova qualidade pelo fato de se tornar uma ajuda voluntária. Macrina executou a alforria de todos os empregados domésticos. Essa alforria ocorria de duas maneiras: como manumissio in ecclesia (promulgada por dois éditos Constantinianos de 316 e 323, um procedimento formalizado) ou como manumissio inter amicos (um escravo era declarado amigo, por carta – per epistulam – ou por convite para jantar na mesma mesa — per mesam). Provavelmente na comunidade de Anesi se praticava essa última forma de alforria (Elm 1996: 85 ss.). Isso representa um aspecto do impacto social que teve a implementação dessa nova forma de vida. Por outro lado, entre os membros da comunidade, foram admitidas muitas pessoas que sofreram da grande fome dos anos 368/369 (VM 12.3). Durante esta grande fome, os mosteiros masculinos e femininos no Íris forneciam grãos para a população circundante “de modo que o deserto parecia ter se transformado em cidade pelas multidões daqueles que se reuniam” (VM 12.3, Stathakopoulos 2004). Comunidades de mosteiros foram fundadas no deserto para escapar do barulho e da agitação da cidade; entretanto, se necessário, o páramo poderia se transformar em cidade. Segundo o que se sabe até hoje, o mosteiro fundado por Macrina é um dos mais antigos mosteiros femininos a surgir na Ásia Menor. Na capital, Constantinopla, não havia um único mosteiro antes de 384 (Albrecht, 1986, p.119). Os mosteiros de mulheres e homens eram próximos uns dos outros e tinham muitas conexões entre si, embora cada comunidade fosse organizada de forma independente. Das descrições feitas por Gregório, pode-se deduzir que os dois mosteiros de Anesi tinham uma igreja comum, onde se celebravam os serviços (VM 16.1; cf. Cadenhead, 2018, p. 87ss).
Gregório não informa a data exata do retiro para Ponto. O fato de Macrina continuar a sua vida ascética em Erémia é muito importante para ele, como se pode ver, por exemplo, na Carta 19, na qual, em primeiro lugar, diz que a sua irmã se encontra no deserto do Ponto (Carta 19.7). Em geral se aceitou que Basílio foi o primeiro a estabelecer a vida monástica masculina em Ponto e que Macrina mais tarde o seguiu (La Porte, 1982, p. 86; Lowther Clarke, 192, pp. 37-38). No entanto, a Vida nos ensina que aconteceu exatamente ao contrário. Basílio foi convertido ao ideal ascético de vida por Macrina (VM 6.1). A fundação do mosteiro de Macrina não responde aos movimentos anteriores da igreja, pelo contrário, a igreja teve que lidar com este despertar religioso das mulheres, que se desenvolveu de forma independente. Trata-se de um fenômeno altamente significativo do século IV: tanto no Oriente quanto no Ocidente, famílias aristocráticas inteiras se entregaram à vida ascética, uma transformação na qual as mulheres desempenharam um papel central (Giannerelli, 1989, p. 226; Serrato Garrido, 1999).
A principal característica da vida ascética pode ser resumida na ideia de “vida angelical” (bíos angelikós), ou seja, a imitação da vida dos anjos (VM 11.2; Frank, 1964). Esta vida na fronteira implica participação em ambos os mundos, no mundo da vida humana e no que está acima do humano. Gregório expressa a tensão desse contraste em um paradoxo, pois “mesmo vivendo na carne, em semelhança com as potestades incorpóreas, não estavam marcadas pelo peso do corpo, ao contrário, sua vida era elevada e tendia para cima, desdobrando-se nas alturas junto com as potestades celestiais ”(VM 11.3). Segundo Gregório, Macrina transcendeu a natureza humana comum porque não temia a iminência de sua morte (VM 18.1, 22.3; Frank 1964). Aqueles que vivem como parthénos já estão colhendo na vida presente o que foi prometido para a ressurreição. À medida que aumenta a assimilação aos seres sobrenaturais, a filosofia progride (VM 11.4). Aqui não há medida a ser alcançada, porém o esforço pela filosofia, que se realiza por meio do exercício das virtudes, só pode ir além superando o que já foi realizado. Esta descrição resume o que Gregório e Macrina entendem por filosofia (VM 11.2).
A Vida relata dois milagres alcançados pelas orações de Macrina, ambos curas: da própria Macrina e de uma menina com uma doença ocular (VM 31.1, 36.2). Os milagres não eram entendidos como um sinal da própria perfeição no poder, mas como um testemunho do poder e da presença de Cristo. Através da sua fé e modo de vida, Macrina torna-se a verdadeira seguidora de Jesus e dos seus discípulos, recebendo os mesmos dons da graça que eles. Como mulher, ela participa da nova realidade testemunhada no Evangelho e a difunde por meio de milagres (Albrecht, 1986, pp. 100-101).
Em um ponto muito proeminente da Vida, são introduzidos termos e imagens do misticismo da noiva. Imediatamente antes de sua morte, Macrina revela aos que a cercam o que esconde no fundo do coração: “o amor divino e puro do marido invisível” (VM 22.4). O paralelismo com a ocultação do nome Tecla é significativo, pois esse amor de Macrina pelo noivo celestial fica oculto e só é comunicado antes da morte aos que a cercam. Para Macrina, a morte significa união com Cristo, o amado e desejado. Quanto mais sua vida se aproximava do fim, mais ela “contemplava a beleza do noivo” (VM 23.1). Este motivo, usado com moderação aqui, será uma imagem altamente desenvolvida em tempos posteriores. A introdução do topos da mística da noiva na Vida apresenta um paralelo marcante com o martírio de Perpétua e Felicidade. Em seu último dia, Perpétua é levada à arena com outros cristãos para lutar contra os animais e naquele momento, em face da morte, ela diz: “ela os seguia com o rosto iluminado e um passo tranquilo, como a noiva de Cristo” (Paixão, XVIII). Cristo como marido e seu seguidor como esposa não apenas simbolizam um relacionamento interno da alma humana com o divino, mas aparecem aqui como uma categoria que determina a vida real. Essa tendência aumentou ao longo do século IV, à medida que a vida ascética das mulheres era cada vez mais entendida como casamento com Cristo (De virg. XX 3 e segs.; Bjerre-Aspergen, 1977). O Tratado da Virgindade pode ser considerado uma reflexão teológica de Gregório sobre vidas tão amadas por ele: Macrina e Basílio (Völker, 1993, p. 228). A virgindade desempenhou um papel nas sociedades pagãs, e no cristianismo o motivo nupcial remonta a Paulo que, em 2 Coríntios 11: 2 entende a congregação como a esposa de Cristo. Além dessa interpretação, especialmente desde Orígenes, a consideração da alma individual como a esposa de Cristo se desenvolveu a partir da exegese do Cântico dos Cânticos.
Assim como no início da Vida Gregório relata a visão de Emélia antes do nascimento de Macrina, ao fim ele relata uma segunda visão que ele mesmo experimentou, intimamente relacionada à primeira. Quando ia visitar a irmã, depois de oito anos sem vê-la, Gregório teve um sonho (VM 15.2). Em suas mãos ele parece levar relíquias de mártires das quais emanam raios deslumbrantes. O paralelismo na descrição de ambas as visões é surpreendente: ambos, mãe e Gregório, carregam Macrina nas mãos, a mãe sua filha ainda não nascida e Gregório as relíquias, os restos mortais. O nascimento e a morte de Macrina são acompanhados por aparições simbólicas que iluminam seu caminho. Antes de ela nascer, sua mãe a viu e conheceu seu verdadeiro destino marcado em nome de Tecla e, antes de ela deixar o mundo, seu irmão viu o que ela realmente era: uma mártir. Desta forma, Gregório antecipa sua veneração, já que mártires e santos se tornavam tais em virtude das homenagens que recebiam, o que é corroborado na descrição do serviço fúnebre (VM 34.1).

O pensamento de Macrina
Gregório destacou a figura de sua irmã não só como mestra de vida, mas também como profunda pensadora e exegeta em Sobre a alma e a ressurreição (De anima et ressurrectione, doravante DAR). Esta obra expõe detalhadamente um evento da Vida (VM 18.1), na medida em que desenvolve as profundas discussões teológicas e filosóficas mantidas no encontro entre os irmãos nos últimos dois dias da vida de Macrina. Dado o tema e o contexto do diálogo, este foi denominado “Fédon Cristão” (Frede-Reis, 2007, p. 16). Por outro lado, também tem semelhança com Banquete, pois, assim como Diotima instrui Sócrates sobre a natureza do amor, Macrina ensina ao irmão a imortalidade da alma. Ressalte-se que o texto de Gregório é muito semelhante ao de Metódio – oponente de Orígenes – intitulado Da Ressurreição (Woods Callahan, 1967, p.195). A preocupação de Macrina com o estado de espírito de Gregório é assimilada ao primeiro livro da Consolação da Filosofia de Boécio, como também nos lembra as conversas entre Agostinho e Mônica em Ostia. Nesse diálogo, ao contrário do que se afirma sobre a formação de Macrina na Vida, o professor aparece como alguém competente em todos os problemas científicos, filosóficos e teológicos. Podemos supor que Gregório não apresentou ao acaso a figura de sua irmã como companheira nesses diálogos que tratam de temas tão importantes de seu pensamento (Daniélou 1940), mas que se valeu de experiências vividas com Macrina, e a delineou como uma mulher com uma formação completa dedicada a instruí-lo. Apresentaremos as ideias centrais trabalhadas nesta obra.
Gregório primeiro expõe a dor que sentiu pela morte de Basílio, e por isso se aproximou da irmã em busca de consolo. Refere que Macrina “como costumam fazer aqueles que têm muita experiência na arte de domesticar potros” permitiu-lhe expressar a sua dor e depois insistiu para que conseguisse conter as emoções (DAR 1.1, edição de Moreschini). Macrina traz assim a dor da perda humana para o campo da pedagogia do espírito. O remédio para essa dor desproporcional é aprender o que é a alma. Aqui, ao contrário do que acontece com Sócrates no Fédon, trata-se de agradar ou ceder à dor de outra pessoa. Deixar que outra pessoa experimente sua dor sem repreensão imediata é necessário para educá-la em uma percepção verdadeira da natureza da alma (Williams, 1993). Gregório refere que a dor e o medo da morte são típicos do ser humano. Macrina convida a uma avaliação racional desta situação e questiona o irmão sobre a sua dor, pois ela revelaria dúvidas sobre a crença na sobrevivência da alma para além da morte do corpo. No final desta introdução, Macrina esboça o argumento sobre a virtude e os sacrifícios que ela implica, o que só faz sentido se considerarmos a eternidade da alma. Na vida virtuosa, a morte é uma situação extrema que nos obriga a nos perguntar por que vivemos como vivemos. Gregório refere que há opiniões divergentes sobre o assunto, entre gregos e filósofos, e relembra opiniões de filósofos materialistas que entendem que, se a alma está nos elementos do corpo, quando ele se dissolve ao morrer, o mesmo acontece com a primeira (DAR 3.3). Macrina retoma esses argumentos e menciona os estóicos e os epicureus, enfocando a figura de Epicuro, e explica o erro de tais posições. Ensina como através das coisas visíveis podemos conhecer as não visíveis, como a existência de Deus, e através de uma citação do profeta: “os próprios céus cantam com vozes indizíveis a glória de Deus” (DAR 4.6, Salmo XVIII. 1) introduz a descrição da harmonia de todas as coisas¬ – incluindo uma série de considerações astronômicas – que nos obriga a pensar sobre a virtude divina primorosa e engenhosa que aparece em todas as coisas e se estende por meio delas.
Gregório objeta sobre a relação desse argumento sobre o mundo com a alma humana. Macrina responde com a ideia do homem como um microcosmo (DAR 4.7), que não é apenas um reflexo do cosmos maior, mas, por um lado, reproduz a harmonia e, por outro, constitui um elo entre o mundo sensível e o inteligível. A relação entre o macrocosmo e o microcosmo, portanto, não se limita a uma relação entre o maior e o menor, mas enfoca no microcosmo o elo entre os dois planos da realidade, o inteligível e o sensível. Essa ideia está presente em outra obra de Gregório (De hom. opif. cap. 1 e 8), o que nos faz pensar na importância de sua irmã em relação às formulações centrais de seu pensamento, uma vez que as expressa por meio de Macrina.
Gregório exige uma definição de alma, à qual Macrina responde:

A alma é uma essência gerada, uma essência viva, intelectual, que por si mesma infunde em um corpo dotado de instrumentos e sensações uma força vital e capaz de perceber coisas que caem sob os sentidos, enquanto se mantém em vida a natureza capaz de percebê-las. (DAR 5).

Dessa forma, Macrina apresenta dois aspectos centrais relacionados à sua concepção de alma: o relativo ao vivente e o caráter intelectual. Durante toda a primeira seção do diálogo, a ênfase é colocada no traço racional da alma, guia das coisas que são percebidas pelos sentidos para penetrar nas coisas não perceptíveis. Da mesma forma que o mundo inteiro é governado pela inteligência divina, no ser humano a inteligência governa como aspecto central da alma. Diante disso, Gregório objeta que assim chegamos a algo absurdo, já que nossa mente seria a mesma coisa que a natureza divina (DAR 6.15). Macrina corrige o irmão, já que não se trata do mesmo, mas sim da semelhança, pois a humanidade foi criada à imagem e semelhança. Assim como a “sabedoria arcana e inefável de Deus” (DAR 7.16) brilha em todas as coisas, mas é diversa das coisas singulares, também a alma simples, indivisível e sem forma por natureza não é o mesmo que a coagulação e o agrupamento dos corpos, por isso não duvidamos da eficácia vital da alma, que se mistura e se difunde nos elementos do corpo. A alma infunde os elementos com sua força vital e, uma vez dissolvido o agrupamento que compõe os corpos, aquela natureza simples e não composta permanece presente nas partes. Em outras palavras, nas palavras de Macrina: “porque o composto se dissolve, não necessariamente se segue que o que não é composto também se dissolve” (DAR 7.16). Desta forma, defende-se a ideia de que a alma permanecerá unida aos elementos que formaram o corpo após a sua desintegração pela morte. No momento da ressurreição dos corpos, a alma mais uma vez informará o corpo ressuscitado. Interpretou-se que se trata aqui de um vínculo com a doutrina estóica segundo a qual o princípio divino, imanente ao universo, está intrinsecamente ligado ao material, embora se denomine espírito e seja racional (Moreschini, 2014, p. 372).
Gregório questiona novamente sua mestra, com o problema das paixões da alma, pois são o desejo e a raiva os geradores dos movimentos (DAR 8.19). Macrina responde que as paixões estão na alma, mas não são a alma, pois ela é semelhante a Deus e não há paixões nela. Aqui se retoma uma imagem desde o início, pois ela argumenta que é necessário “ignorar a carruagem de Platão e o tronco dos cavalos atrelados a esta carruagem […] e deixar de lado o que ensina aquele filósofo que veio depois de Platão” (DAR 8.20, cf. Fedro 246a-254e, República 441e-442b) para procurar o fundamento nas Escrituras. O que Macrina rejeita é a noção de uma canga de cavalos diferente entre si em seus impulsos, ou seja, ela desconfia do chamado problema do homúnculo que trata as partes ou poderes da alma como quase-sujeitos (Annas, 1981, pp. 150-151). O que se segue na exposição de Macrina é, de fato, uma eliminação cuidadosa de qualquer independência para a vida afetiva, ao mesmo tempo que nega que seja intrínseca à alma. As Escrituras ensinam que tudo o que é estranho a Deus, visto que a alma é criada à imagem e semelhança, não pertence à definição da alma. Essas paixões também são constituintes de naturezas não racionais, portanto não caracterizam o que é próprio da alma racional, não são a natureza da alma, mas afetos e perturbações “como verrugas que surgem da parte pensante da alma. Essas partes são consideradas coisas da alma, porque estão relacionadas, mas não como aquilo que por sua essência e natureza é a alma” (DAR 8.24). Esta afirmação é fundamental para a psicologia de todo o pensamento niceno e se conecta com sua antropologia, que segue a doutrina bíblica do homem criado à imagem de Deus: como imagem de Deus, o homem foi inicialmente desprovido de paixão, que se agarrou à sua alma como um resultado do pecado, sem deixar de ser algo intrinsecamente estranho a ele. A essência da alma, portanto, não está aprisionada na irracionalidade. Gregório novamente se opõe a Macrina, neste caso seguindo exemplos bíblicos em que as paixões cumprem uma função no desenvolvimento da virtude. Macrina aceita a objeção e se ocupa dessa confusão. Ele expõe, a fim de esclarecer o assunto, uma interpretação da ordem da criação encontrada nas Escrituras. Desejo e raiva não são características essenciais da alma, mas, em uma escala de realidade que vai do grau mais baixo (a planta e seus movimentos indicam a natureza animada em seu estado essencial) ao mais alto (a alma racional no homem), constituem um série de qualidades que são adicionadas à própria alma:

O numen divino chegou à criação do homem seguindo um determinado caminho e uma coerência que tem sua própria ordem. Porque, como nos diz a história, após a criação do universo, o homem não esteve imediatamente na terra, ao contrário, ele foi precedido pela natureza daqueles que não têm razão, assim como, antes destes, existiam as plantas. A Sagrada Escritura mostra com isso, a meu ver, que a força vital se une à natureza corporal seguindo seu próprio processo, penetrando e infundindo-se primeiro naqueles que não têm os sentidos, depois alcançando aqueles que os têm e, finalmente, ascendendo até aqueles que são dotados de mente e inteligência e participam da razão (DAR 10.25).

O homem abrange todas as espécies vitais. A força dotada de razão não pode estar na vida corporal se não for pela mediação dos sentidos, e a comunhão se dá pelos afetos ou paixões, que são movimentos da alma que podem estar a serviço da virtude ou do vício, de acordo com o uso que a vontade e o livre arbítrio fazem deles. Aqui Macrina apresenta mais uma vez a imagem do cocheiro, que representa a razão que deve reger o movimento irracional das paixões dos cavalos. Isso implica uma concepção que não concorda com a ideia origeniana da pré-existência das almas (Karamanolis, 2020). O racional cresce a partir do mais elementar. O poder de animação move-se lentamente através dos diferentes níveis da vida material, do vegetal ao animal e do animal ao racional, o nível em que é mais plenamente ativo precisamente como razão. No entanto, mesmo neste estágio, ele não pode ser separado da matéria, porque a razão requer experiência sensorial para operar. Ou seja, aqui a definição é centrada em termos da força motriz: a alma é o que efetua o movimento e, portanto, é um termo aplicável a tudo o que, em um determinado nível de existência, produz e sustenta o movimento próprio desse nível. Nos seres humanos, então, a alma é um conceito complexo porque o movimento próprio para os humanos é complexo: a alma humana é criada, viva e inteligente ¬– como vimos na primeira definição – mas também é uma força vital ou poder de animação que trabalha em conjunto com a vida sensível. Em geral, podemos traçar a distinção entre essência (ousía) da alma, para a referência à alma como distintamente ativa e inteligente, e natureza (phýsis) da alma, para a realidade mais complexa da alma como animadora de um corpo. Nossa animalidade pode se tornar uma virtude quando a razão dirige o desejo e a raiva, que não são ruins em si. Esta história de inteligência animada fornece uma ferramenta para lidar com o problema de como vincular a unidade psíquica ao conflito psíquico.
Gregório objeta mais uma vez que, se a purificação das almas implica que não há movimento destituído de razão, na alma perecerá a faculdade do desejo e com ela todo desejo para o bem (DAR 15.42). Macrina responde com outra ideia central para o pensamento niceno. Com efeito, indica que a alma de alguma forma imita a natureza celeste e, tendo alcançado a tranquilidade, o apaziguamento e o fim de todas as coisas que agora são almejadas como boas, encontrará a única coisa que não tem fim: o amor e a caridade, que nunca perecem. A ação do amor não tem limites porque o que é belo ou bom em si não tem limites. Desta forma, o mal será expulso do que existe. Assim, dois conceitos centrais estão ligados: a epéktasis e a apokatástasis. A epéktasis implica aquele desejo constante, típico de uma vida destinada ao crescimento infinito na contemplação de Deus e na virtude, visto que o amor e o desejo da alma não têm limites na capacidade de crescimento, com a concepção paradoxal de uma perfeição que consiste em um progresso que não tem fim (Daniélou, 1944, p. 291ss). Por isso, poderíamos argumentar que o texto toma a dor humana comum pelo luto, compreensível e permissível, como paradigma do desejo, ou seja, da fixação em um objeto: a dor que é moldada ou sintonizada pela mente deve, presumivelmente , ser capaz de ver o outro como algo mais do que o mero objeto de apego. A crença de que a vida eterna da alma é o crescimento eterno é uma das contribuições mais conhecidas e distintas de Macrina-Gregório para a espiritualidade cristã: o objetivo não é a plenitude atemporal, mas uma expansão constante da consciência amorosa, até mesmo uma renovação do deslumbramento (Williams, 1993, p. 241). A ideia origineana da apokatástasis entende que, no final dos séculos, todas as coisas serão restauradas em Cristo e o mal deixará de existir, um estado de retorno à santidade original anterior ao pecado, uma restauração universal de modo definitivo.
Uma última reflexão. Ao longo deste diálogo, a alma é vista como essencialmente sem gênero, e uma igualdade espiritual fundamental é mantida entre homens e mulheres, que não são determinados simplesmente por sua oposição / complementaridade: eles são precisamente iguais como mentes corporificadas, lutando da mesma forma com a tarefa de tornar a existência animal uma vida significativa. Há quem tenha feito leituras muito críticas sobre a figura de Macrina em Gregório, pois interpretam que se trata, em última instância, de estratégias que fortalecem o discurso universalizante masculino (Clark, 1998; Burrus, 2005; Halperin, 1990). No entanto, devemos considerar que a teologia de gênero de Gregório não se concentra na diferença, mas na unidade (a confluência de masculino e feminino em um estado sem gênero), que desestabiliza o gênero por meio da transposição anagógica para um estado angelical sem gênero (Boersma, 2013, pp.110 -111). A figura de Macrina representa uma alteração nos papéis usuais, tanto femininos quanto masculinos, uma vez que ela adota os dois tipos de papéis e assim os transforma (Cadenhead, 2018).

Tradução de Carolina Araújo

Bibliografia
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