por Maria de Lourdes Borges,
professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)/ CNPq – Lattes
PDF – Misoginia
Capa do livro Down Girl: The Logic of Misogyny, 2018
Utilizamos usualmente o termo misoginia para designar uma atitude hostil em relação às mulheres. Ainda que esse conceito tenha sido empregado por feministas como sinônimo de machismo ou sexismo, considero que a primeira filósofa que dedicou uma obra exclusivamente ao tema da misoginia tenha sido Katte Manne. Professora da Cornell University, treinada na filosofia analítica americana, ela se dedicou a esclarecer e elucidar o termo misoginia no livro “Down Girl, The logic of misogyny” [Down Girl, a lógica da misoginia], 2018. Neste verbete, vamos apresentar a concepção de misoginia de Kate Manne.
Manne inicia sua reflexão a partir de um aparente paradoxo. Se as mulheres, nas últimas décadas, fizeram um grande progresso no que toca à igualdade de gênero, do ponto de vista dos costumes e da legislação, as atitudes de hostilidade em relação às mulheres parecem estar aumentando. Ao mesmo tempo em que se admite que houve grande progresso em relação à situação das mulheres a partir de movimentos feministas, reconhece-se que a misoginia continua a existir. Ao falar dos avanços do que denomina de sociedades pós-patriarcais, afirma:
“Não há dúvida de que nesses meios muito progresso foi feito no que toca à igualdade de gênero, a partir do ativismo feminista, mudanças culturais, reformas legais (leis contra discriminação sexual) e mudanças nas políticas institucionais (ação afirmativa, cujas beneficiárias principais nos Estados Unidos tenderam a ser as mulheres brancas). Ganhos para meninas e mulheres na educação foram impressionantes. Contudo, a misoginia ainda está presente entre nós.” (Manne, 2018, p. xiv)
Manne faz então sua crucial pergunta: “Quando as mulheres serão humanas? Quando?” (Manne, 2018, p. xiv). Se examinarmos a violência psicológica e física a que as mulheres estão sujeitas, muitas vezes perpetradas por pessoas próximas, entendemos a radicalidade da pergunta. Alcançamos direitos iguais formalmente, mas ainda não somos tratadas como humanas.
Manne examina no seu livro vários episódios de misoginia, entre eles o estrangulamento e o assassinato em massa de mulheres. Em relação ao primeiro, a autora o considera como um tipo de prática paradigmática da misoginia, porque muitas vezes não deixa marcas visíveis, ainda que leve as mulheres à morte.
Em relação aos assassinatos em massa, ela analisa o que para muitas feministas é uma situação paradigmática de misoginia: o caso Isla Vista. Em maio de 2001, após avisar que iria se vingar das mulheres que o fizeram ter uma “vida de solidão e desprezo” e que exterminaria todas as garotas da sororidade Alpha Phi, Eliot Roger entra no campus da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, dirige-se à sede desta sororidade e atira em três estudantes, matando duas. Depois disso, ele sai com seu carro e continua atirando de forma caótica, ferindo muitos homens e mulheres. Ao final, ele se mata. (Manne, 2018, p. 36).
A realidade brasileira, por sua vez, nos apresenta números assustadores em relação a uma das mais graves expressões de misoginia: o feminicídio. No Brasil houve 1350 casos de feminicídio em 2020, um a cada seis horas e meia, sendo que a maioria era de mulheres negras (61,8%) (Correiro Braziliense, 17/07/2021). Três a cada quatro vítimas de feminicídio tinham entre 19 e 44 anos. Na grande maioria, o agressor era conhecido: 81,5% eram companheiros ou ex-companheiros.
O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Visível e invisível: a Vitimização das mulheres no Brasil, apresenta a pesquisa, realizada em maio de 2021, sobre a violência sofrida pelas mulheres nos 12 meses anteriores, durante a pandemia de COVID-19. Os resultados foram alarmantes: 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirmaram ter sofrido violência ou agressão nos últimos 12 meses. Tal significa que, em média, 17 milhões de mulheres sofreram violência baseada em gênero num período de um ano (Visível e invisível, p. 21).
Os números são impactantes, indicando uma agressão que nega a nossa humanidade. Como explicar racionalmente essa crueldade? O que é e de onde vem a misoginia?
A misoginia como reação à recusa do papel de subordinada amorosa
O que é a misoginia? Manne indaga qual seria a base para a hostilidade e agressão dirigidas às mulheres devido ao seu gênero. A autora sugere uma resposta a essa pergunta a partir da consideração dos papéis que a mulher assume numa sociedade patriarcal como subordinadas atentas e amorosas ao gênero masculino:
“A percepção de resistência feminina ou violações das normas que governam esses papéis sociais naturalmente tenderiam a provocar esse tipo de reação. O que poderia ser a base mais natural para a hostilidade e agressão do que a defecção em relação ao papel de uma subordinada devotada e amorosa? É esperado que isso deixe os beneficiários dessa submissão (no caso, os homens), sentindo-se usurpados e negligenciados.” (Manne, 2018, p. 50)
Os homens têm uma expectativa em relação às mulheres de que elas assumam o papel de subordinadas e que, além disso, elas sejam amorosas, delicadas e atentas às suas necessidades. Quando esse papel é recusado, tal é compreendido como uma violação da norma vigente, que deve ser controlada através da agressão.
Para entender em que consiste a hostilidade como reação à recusa das normas vigentes, Manne faz uma analogia com uma pessoa num restaurante que espera ser servida, não apenas com deferência, mas também de forma atenta e com um sorriso. Imaginemos que esse cliente não está sendo servido de forma satisfatória: a garçonete não lhe está servindo, ainda que sirva outras mesas, ou talvez esteja apenas andando pelo restaurante, ignorando-o. Imagine algo pior para o nosso cliente, que a garçonete espera ser servida por ele, numa reversão de papéis. É fácil imaginar, nesse exemplo, que ele comece a bater com a colher no prato, ou que acabe explodindo devido à sua frustração.
Esse modelo nos ajuda a entender a atitude de hostilidade dirigida ao gênero feminino, como uma percepção da violação das normas e expectativas patriarcais. Também nos auxilia a perceber que a misoginia não necessita ser pensada como uma agressividade em relação a todas as mulheres, mas em relação àquelas que ferem as normas. Podemos também entender porque a misoginia e o desejo sexual não são incompatíveis. No caso Isla Vista, o desejo do assassino Rodger tinha um papel crucial no seu ressentimento: ela desejava as garotas da Alpha Phi, desejava que elas o desejassem, e o que era percebido como não desejo era sentido como humilhação e despertava um ressentimento, assim como o cliente que não é bem servido no restaurante.
É esperado também um comportamento feminino de admiração, aprovação e respeito, que constitui uma relação de apoio moral assimétrico. Os homens contariam com a ausência de críticas femininas e com seu apoio moral incondicional. Quando esse apoio e aprovação não se verificam, tal é sentido como uma traição. A hostilidade aparece então como um retorno, uma vingança, pois críticas morais ou acusações das mulheres poderiam ser sentidas como uma quebra das regras pelos homens:
“Foi exigido historicamente das mulheres, postas numa relação de apoio moral assimétrico com os homens, que lhes mostrassem respeito, aprovação, admiração, deferência e gratidão, assim como atenção moral, simpatia e preocupação. Quando ela lhe dirige críticas morais ou acusações ela está recusando a ele a boa vontade que ele está acostumado a receber. Ele pode até ser, de certa forma, dependente da sua boa vontade para manter seu tênue senso de valor próprio. O ressentimento ou crítica, por parte dela, pode ser sentido como uma traição, uma reversão das relações apropriadas entre eles, e isso pode fazê-lo “dar o troco”, buscando vingança ou retribuição.” (Manne, 2018, p. xxi)
A partir do momento em que as mulheres começam a se sentir humanas, elas também adquirem um senso de moralidade e enfrentam os homens em posição de igualdade. Elas dirigem a eles críticas morais em relação ao seu comportamento e eles perdem aquilo com o que estavam acostumados: a aprovação de suas condutas machistas, a admiração e respeito mesmo quando eles não agem moralmente. A reprovação feminina às suas condutas passa a ser vista como uma traição à sua superioridade moral, ao seu costume de dar as regras e ser obedecido sem questionamento. Ele deixa de contar com o que estava acostumado e essa perda é sentida como uma traição, que será retribuída com uma vingança.
A misoginia como uma manifestação da ideologia patriarcal
Manne compreende a misoginia como uma manifestação da ideologia patriarcal, ao invés de um fenômeno misterioso e psicológico, de motivação inacessível. Além disso, evita pensá-lo como um fenômeno que não seja político. Ela afirma que devemos entender a misoginia como um sistema que controla e torna obrigatórias as normas e expectativas de uma ordem social patriarcal. Segundo ela, essa visão nos permite:
“Entender a misoginia como um fenômeno social sistemático, através do foco nas reações hostis que as mulheres encontram ao navegar no mundo social, ao invés das bases psicológicas para essas reações. Tal hostilidade não necessita de forma alguma ter uma base imediata nas psicologias dos agentes individuais. Instituições e outros ambientes sociais podem ser proibidores, frios e hostis em relação às mulheres.” (Manne, 2018, p. 21)
A atribuição da misoginia ao patriarcado tem o objetivo de ressaltar que os comportamentos hostis em relação às mulheres não se originam de uma patologia psíquica daquele que comete a violência, mas são gerados numa sociedade que deseja submeter as mulheres a padrões pré-estabelecidos. Nesse sentido, a autora defende que a misoginia num ambiente social é essencialmente dependente de normas e expectativas de natureza patriarcal. (Manne, 2018, p. 66).
Machismo, sexismo e misoginia
Qual a diferença entre machismo e misoginia? Muitas vezes esses termos são tomados como sinônimos. Em outras, a misoginia aparece como uma forma de machismo que envolve atitudes agressivas, verbais ou corporais. Um homem que não é agressivo com as mulheres pode ser percebido como tendo algumas atitudes machistas ou sexistas, mas não misóginas.
Tenderíamos a denominar de machista um homem que, ao escolher seu cirurgião, prefere um homem a uma mulher, baseado em estereótipos de gênero tais como: “os homens têm mais sangue frio”, “as mulheres são mais emocionais, indecisas” etc. Ou o homem que declara que a maternidade é o papel mais importante da mulher. Poderíamos chamar esses homens de machistas ou sexistas, mas certamente sua ação de escolher um homem cirurgião, ao invés de uma mulher, ainda que preconceituosa, não seria tão grave quanto uma agressão física dirigida a uma mulher. Da mesma forma, o marido que afirma que o papel mais importante de sua esposa é o de mãe reforça o preconceito em relação ao gênero feminino, mas não necessariamente demonstraria uma hostilidade em relação a ela. O mesmo poderia ser dito do homem que decide os horários que pode encontrar a sua namorada levando apenas em consideração a sua agenda e nunca a agenda dela, ainda que ela tenha um trabalho tão exigente ou de tanto prestígio quanto o dele. Podemos perceber essas atitudes como machistas ou sexistas, mas seriam elas atitudes misóginas? A misoginia parece mais ligada ao ódio à mulher, como o termo sugere, a atitudes hostis e por vezes violentas em relação a elas.
A separação entre o machismo e a misoginia é tênue. Num recente editorial de um jornal de grande visibilidade acerca da morte trágica da excelente cantora Marília Mendonça, é dito que “ela não era uma grande cantora”, ainda que tenha 12 milhões de seguidores no Spotify. Além disso, o jornalista escreve que “Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança”, expressando sua inegável gordofobia. Poderíamos pensar que esse editorial expressava apenas o machismo do autor; entretanto, ao publicá-lo no momento trágico da morte da cantora, exibe um quê de crueldade indisfarçável, que o aproxima da misoginia.
Katte Manne nega que a diferença entre machismo e misoginia seja uma questão de grau. Ela afirma que a diferença seria entre princípios e um sistema, baseado na força, que obrigaria as pessoas a agirem segundo aqueles princípios. O sexismo ou machismo diria respeito às normas da sociedade patriarcal, enquanto a misoginia faria as vezes de um sistema coercitivo de cumprimento dessas regras:
“A misoginia deve ser compreendida como o braço de coerção da sociedade patriarcal, o qual tem a função de policiar coercitivamente a aplicação de suas normas e expectativas, enquanto o sexismo deve ser entendido principalmente como o campo que justifica a ordem patriarcal, que consiste numa ideologia com a função de racionalizar e justificar as relações sociais patriarcais.” (Manne, 2018, pp.78 e 79)
O machismo seria uma ideologia sexista que consiste em crenças, teorias, estereótipos e narrativas que representam homens e mulheres de formas distintas. Quando aceitos, fariam com que as pessoas ficassem inclinadas a agir de forma a apoiar e participar das estruturas sociais patriarcais. Tais estruturas seriam representadas como mais desejáveis ou menos frustrantes do que elas são na verdade. A misoginia, por sua vez, seria o braço da força coercitiva desse sistema, que pune com agressão e hostilidade aqueles que não seguem as normas.
A misoginia se diz de várias formas
A misoginia não se expressa apenas na conduta explicitamente violenta de um agente, podendo assumir várias formas. Manne aponta esses diversos modos nos quais a misoginia pode se manifestar. A hostilidade misógina, que teria um papel punitivo, dissuasivo, ou uma função de advertência, engloba uma variedade de atitudes, tais como infantilizar, ridicularizar, humilhar, demonizar e atacar a reputação de mulheres, assim como silenciar, ter atitudes paternalistas ou condescendentes. A violência contra a mulher ou atitudes de ameaça são apenas uma forma da variedade dos comportamentos misóginos. (Manne, 2018, p. 68)
A pluralidade de comportamentos e atitudes misóginas indicam, segundo Manne, que elas não provêm de concepções específicas psicológicas em relação às mulheres, como considerá-las como objetos sexuais ou possuindo uma essência sub-humana:
“Esses vários movimentos de subordinação e hostilidade podem não refletir como as mulheres são vistas na maior parte do tempo, com exceção talvez do resultado de uma ilusão ou negação intencional. Eles são dinâmicos, ativos e se constituem em manobras contundentes. Eles colocam as mulheres no seu lugar quando elas parecem ter “ideias acima da sua posição”. Eu penso que a misoginia de agentes individuais é menos uma questão de crenças do que desejos — desejos e outros estados mentais que querem que o mundo permaneça ou seja alinhado com uma ordem patriarcal.” (Manne, 2018, p. 69)
A misoginia não são crenças ou formas como as mulheres são vistas. São sobretudo desejos que levam a ações que colocam as mulheres de volta ao seu lugar de submissão. Podemos citar como forma de manobras contundentes de misoginia, além da violência física, o gaslighting/ abuso psicológico, o mansplaining/ machoexplicação e o manterrupting/ machointerrupção. No mansplaining, o homem explica para a mulher coisas básicas, que ela já sabe. É o conhecido “eu vou te explicar”, dito com uma entonação condescendente e paternalista de quem está explicando algo a alguém que ele toma como incapaz de entender aquilo que, na verdade, ela já sabe. No manterrupting, o homem interrompe a fala da mulher e inicia a sua fala, mostrando um desdém pela opinião feminina. No gaslighting/ abuso psicológico, o homem faz com que a mulher pense estar ficando louca, ou com problemas psiquiátricos, expressando uma forma mais violenta e cruel da misoginia masculina, porque alia o preconceito à crueldade. A crueldade está presente em várias formas de agressão misóginas e pode ser pensada como um certo refinamento da maldade e da hostilidade.
Quando denominar alguém de misógino?
Ainda que a misoginia possa ser considerada, nas suas várias manifestações, como uma forma de força coercitiva da sociedade patriarcal, seria interessante analisarmos em que medida o agente deve ser responsabilizado pelos seus atos. Dizer que a misoginia é dependente da sociedade patriarcal não teria como consequência dissolver a ideia do agente moral que comete a ação misógina? Faria sentido chamarmos um homem de misógino e quando devemos fazê-lo?
Segundo Manne, esse rótulo deve ser empregado para pessoas cujas atitudes são particularmente e consistentemente misóginas, a fim de evitar a atribuição de misoginia a atitudes ou traços de caráter que são quase universais:
“Indivíduos contam como misóginos se e apenas se suas atitudes e/ou ações misóginas são de forma significativa (a) mais extremas ou (b) mais consistentes do que as atitudes da maior parte das outras pessoas numa classe de comparação relevante (outras pessoas do mesmo gênero, ou classe, idade, num contexto social similar).” (Manne, 2018, p. 66)
Assim, o termo misógino deve ser tratado como um conceito comparativo, ou uma forma de alerta, ainda que Manne não pretenda dar uma definição dos conceitos de significativo ou relevante.
Ainda que a misoginia se relacione com mecanismos sociais de hostilidade em relação às mulheres, ela não exclui a possibilidade de agentes individuais serem denominados de misóginos. Manne rejeita dois extremos: de um lado, a ideia de que misóginos devem ser vistos como “bad apples”, maçãs podres; de outro, pensar a misoginia como puramente social e estrutural, excluindo o aspecto do agente. (Manne, 2018, p.74). A referência a quem poderia ser denominado de misógino fica mais clara nessa exclusão dos dois extremos:
“Misóginos podem simplesmente ser pessoas que são consistentemente muito empenhadas em contribuir para o ambiente social misógino. (…) De forma alternativa, misóginos podem ser pessoas que foram influenciadas fortemente por uma atmosfera social misógina em suas crenças, desejos, ações, valores, fidelidades, expectativas, retórica etc.” (Manne, 2018, p. 74)
Os homens misóginos são aqueles que são mais influenciados por uma estrutura social misógina e que mais reproduzem essa estrutura, contribuindo para reforçá-la. Por que alguns homens seriam mais influenciados por uma estrutura misógina? Por que alguns estariam mais dispostos a contribuir para um ambiente social misógino? Há aqui um componente do agente que não poderia ser desprezado, sob pena de reduzir tudo ao ambiente e às estruturas sociais. Ainda que Manne não tenha propriamente usado esse termo, considero que podemos dizer que há uma escolha do agente em adotar comportamentos misóginos, ou, ao menos, em ser mais ou menos misógino.
Há falsas dicotomias que devem ser evitadas. Não há contradição entre um homem ser inseguro e sensível e ser um misógino, pois a vulnerabilidade pode ser um gatilho para tal comportamento. Não há contradição tampouco em termos um progresso na situação da mulher e a misoginia, pois há um ressentimento exatamente no fato de que as mulheres têm sucesso em papéis antes considerados masculinos, pois a misoginia provém do desejo de colocar novamente as mulheres na sua posição de subordinadas e submissas. A misoginia pode ser considerada como uma retaliação a esse sucesso social feminino.
Misoginia como retaliação
Diante do progresso que as mulheres realizaram em várias áreas, como a profissional e a legal, pode-se pensar inicialmente que a misoginia seria algo do passado. Podemos até mesmo considerar que as pessoas tornaram-se menos sexistas, no sentido de já não acreditarem em estereótipos que desconsideram as habilidades intelectuais ou de liderança das mulheres. A misoginia acompanharia essa diminuição do sexismo?
“Ao contrário, a misoginia que estava latente ou adormecida pode se manifestar quando as capacidades das mulheres parecem mais destacadas, logo mais ameaçadoras. E isso pode resultar em formas mais ou menos ameaçadoras de ataques, moralismo, ilusão e negação, assim como uma forma de ressentimento que inflama.” (Manne, 2018, p.101)
Muitas vezes é dito que as mulheres deveriam ser duas vezes melhores do que os homens para serem bem sucedidas. Ainda que não possamos dizer ao certo se isso é verdadeiro ou não, em várias ocasiões o que ocorre é exatamente o oposto: a competência e destaque das mulheres é um gatilho para a hostilidade e para que elas sejam penalizadas exatamente pela sua excelência.
Tal ocorre, por exemplo, em mulheres que se destacam em cargos públicos de grande relevância. Manne dá o exemplo da primeira mulher a ocupar o cargo de primeira ministra da Austrália, que foi chamada de bruxa, mentirosa, vaca (bitch). Julia Gibbard foi atacada por um assédio misógino cruel que fez com que perdesse o cargo. Pode-se dizer que algo parecido aconteceu com a presidenta Dilma Rousseff, cujo impeachment foi precedido por ataques misóginos, que a apresentavam como descontrolada, alguém cuja expressão emocional dificultaria o controle eficaz do governo. Manne considera que a derrota de Hillary Clinton por Trump também apresentou esse viés discriminatório.
Como as pessoas julgam a competência de mulheres em campos considerados masculinos? Essa foi a pergunta que norteou a pesquisa de Madeleine Heilman descrita por Manne: quando a evidência de competência feminina em campos dominados por homens é inequìvoca, elas ainda são sujeitas à discriminação? (Manne, 2018, pp. 252-253 ). Na pesquisa, foram apresentados currículos para o cargo de vice-presidente de uma indústria normalmente dominada por homens. Um dos currículos era de um homem, James, e o outro de uma mulher, Andrea. As informações dos currículos que eram associadas aos candidatos eram alternadas, de forma que um currículo era associado a James para metade dos participantes e à Andrea para a outra metade. Foram testadas duas situações. Uma primeira na qual não havia evidências de que nenhum dos dois era excelente, o que foi denominado de sucesso incerto. Nessa pesquisa, 86% dos entrevistados consideraram James mais competente do que Andreia. Na segunda situação, denominada de “claro sucesso”, era adicionada informações que tornavam a competência de ambos inquestionável. Nesta, eles eram julgados como igualmente competentes, mas James foi considerado mais simpático, e Andrea foi tida como mais hostil no trato interpessoal.
Esse e outros estudos mostraram que há penalidades sociais para mulheres que competem e chegam a um maior status em posições que são consideradas masculinas. Além disso, mulheres em tais posições, que são competentes, assertivas e confiantes tendem a ser percebidas como arrogantes e agressivas. Essa visão negativa em relação às mulheres que ocupam espaços considerados masculinos reforça a ideia de que a misoginia se mostra mais contundente na medida em que espaços são ocupados por mulheres, ao invés de tornar-se mais fraca.
As pesquisas mostraram também que a presunção de que os millennials, pessoas que nasceram depois de 1980, eram imunes às diferenças de gênero não se confirmaram. Esse é um aspecto surpreendente, pois poderíamos pensar que os mais jovens, nascidos numa época onde as mulheres conquistaram vários direitos, não seriam misóginos. Um outro aspecto digno de nota é que não houve diferença de respostas por gênero, mostrando que as mulheres também podem se engajar em posições de controle de outras mulheres, quando essas não estão adequadas às normas de submissão. As mulheres que direcionam forças misóginas contra outras mulheres tendem a ser extremamente moralistas em relação àquelas que não aderem às normas e expectativas patriarcais.
Rejeição social mediada pelo sentimento de repugnância
A fim de explicar como a misoginia opera na rejeição social a mulheres que aspiram a cargos normalmente ocupados por homens, Manne utiliza-se de algumas pesquisas segundo as quais o sentimento de repugnância tem o papel de regular a aderência de pessoas a normas sociais, convenções e hierarquias (Manne, 2018, p. 257). A repugnância parece que se alastra por associação, ou seja, aqueles que se relacionam com aquilo que nos causa repugnância se tornam repugnantes para nós também. Dessa forma, o risco de ser repugnante a outros ao ter um comportamento que seja tabu pode servir como motivação para não agir dessa forma, devido a uma aversão universal à vergonha e a ser expulso de sua comunidade.
Manne analisa a situação de Hillary Clinton nas eleições americanas de 2016, na qual não havia apenas desconfiança em relação a ela, mas igualmente repugnância. Parte dessa repugnância era causada por uma fixação em relação à sua saúde, que servia como pretexto para ela ser considerada frágil, fraca e velha. Essa repugnância estimula o desejo de que essas mulheres que se arriscam em territórios masculinos sejam punidas e banidas. Ao mesmo tempo, elas são sempre sujeitas à suspeição moral, como no caso da primeira-ministra australiana, Julia Gillard, que era chamada de Ju-Liar. Podemos citar também o caso da Presidenta Dilma Rousseff, que sofreu impeachment por uma suposta pedalada fiscal, sendo que essa era uma manobra contábil usual em outros governos. A rejeição à Dilma Rousseff também envolvia esse fator emocional da repugnância que sustenta a misoginia.
As mulheres boas e as mulheres más
A misoginia envolve distinguir entre as mulheres boas e más, de acordo com a sua conformidade às normas patriarcais. As mulheres que aspiram a serem boas têm um incentivo social a se distanciarem das más. Manne dá o exemplo da eleição americana, onde metade das mulheres brancas votaram em Trump contra Clinton.
No Brasil, podemos dar como exemplo a mulher do ex-presidente Michel Temer, Marcela Temer, que foi chamada de “bela, prendada e do lar”, em oposição a Dilma Rousseff, cujo poder ele havia tomado. Podemos dar também como exemplo as mulheres que se distanciaram das “mulheres más” após a passeata do “Ele não” em 2018. As mulheres prendadas e do lar criticavam em redes sociais as manifestações e até mesmo a aparência daquelas que protestavam, consideradas feias, malcuidadas, gordas e malvestidas.
Manne nos alerta que “uma mulher que não fez nada errado moral e socialmente pode ser sujeita à suspeição moral e consternação por violar os éditos do livro de regras do patriarcado.” (Manne, p. 271). Como tal, ela é considerada má e desperta rejeição e repugnância. Como tal, ela desperta hostilidade e é punida.
Referências bibliográficas
Borges, M. (2021) Mal e Misoginia In: AGGIO, Juliana et alli. Filósofas. Curitiba: Kotter Editorial, 2021.
Brasil registra um caso de feminicídio a cada 6 horas. Correio Braziliense, 17/07/2021. Consultado 05/11/2022.
Jeffreys, S. (2015) Beauty and Misogyny. New York: Routledge.
Manne, K. (2018) Down girl, the logic of misogyny. New York: Oxford University Press.
Visível e invisível: a vitimização das mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 3ª edição, 2021.