O verbete desta semana nos apresenta a vida e a obra de Iris Murdoch, uma filósofa e escritora “conhecida por ter sido uma das filósofas-romancistas mais talentosas do século XX”, que nasceu em 1919, na Irlanda, e faleceu em 1999, na Inglaterra. Murdoch pertenceu a uma família de classe média alta, o que lhe possibilitou a formação em escolas que incentivaram sua aptidão para a atividade da escrita. Aos dezenove anos de idade ingressou no curso de filosofia no Somerville College, Oxford, onde pode estudar também grego, latim e literatura. Escreveu tanto obras filosóficas quanto literárias — as quais também são permeadas por elementos filosóficos —, especialmente romances, mas também ensaios e poesia. Foi influenciada por filósofos como Sartre, Platão, Wittgenstein e Heidegger. Em seus trabalhos filosóficos, as temáticas da perfeição e da soberania do bem ganham destaque. Já seus romances integram, segundo Mônica Stefani, ficção popular, questões morais e experimentação estilística.
Mônica Stefani é Professora Adjunta na Universidade Federal de Santa Maria na área de Literaturas de Língua Inglesa. Atua na pesquisa em Estudos de Tradução e em Literatura Australiana (Patrick White em tradução), Literatura Inglesa (Iris Murdoch), e Literaturas Africanas Anglófonas. No âmbito do projeto “Ampliando Horizontes: Literaturas de Quênia, Nigéria e África do Sul”, em parceria com a Universidade Federal do Paraná – UFPR, tem se dedicado à pesquisa da literatura sul-africana e à tradução do romance “Story of an African Farm”, da autora sul-africana Olive Schreiner. Além disso, tem trabalhado com os tópicos de ensino de literatura para EAD e letramento literário.
Ficou curiosa para saber mais a respeito das obras filosóficas e literárias de Iris Murdoch? Então leia o verbete aqui e acesse a entrevista com a autora aqui.
Iris Murdoch
(1919 – 1999)
por Mônica Stefani, professora adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DLTE)
– Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – Lattes
Jean Iris Murdoch mais conhecida como Iris Murdoch, ou Dame Iris (pois foi condecorada com a ordem do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 1987, por seus serviços à literatura), nasceu em Dublin, capital da República da Irlanda, no dia 15 de julho de 1919, e faleceu em Oxford em 9 de fevereiro de 1999, vítima do Mal de Alzheimer, pouco antes de completar 80 anos.
Nascida em família de classe média alta, Murdoch foi a única filha de Irene Alice (que era cantora antes de conhecer o esposo) e Wills John Hughes Murdoch (que era servidor público). Mudou-se para Londres ainda bebê, e contou com uma família amorosa, constituindo, nas suas palavras, uma “perfeita trindade de amor” (Dooley, 2003). Teve sua formação regular em escolas particulares, como aFroebel Demonstration School (em 1925) e a Badminton School (de 1932 a 1938), que estimularam seu talento, sua criatividade e sua imaginação para a escrita, manifestos desde criança. Iniciou seus estudos no Somerville College, Oxford, em 1938, onde optou pela área de filosofia, em que poderia estudar grego e latim e sua literatura, além de história antiga, tudo o que o curso de língua inglesa dificilmente ofereceria.
Após formar-se em Oxford, foi para Londres trabalhar no Tesouro britânico. Em seguida, trabalhou na Administração das Nações Unidas para Assistência e Reabilitação (UNRRA), tendo sido enviada para outras cidades europeias, como Bruxelas, Innsbruck e Graz, até 1946. Tendo filiado-se ao Partido Comunista no seu primeiro ano em Oxford, acabou por intensificar sua veia política nesse período de trabalho na Europa, atuando como uma espécie de espiã (fornecendo documentos, por exemplo), embora tivesse deixado o partido ainda em 1942. Essa ligação política ficou marcada em sua carreira, tanto que a impediu de conseguir uma bolsa de estudos na Vassar College nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, em 1946. No entanto, como toda paixão, sua desilusão com a política comunista chegou nos anos 1970, quando passou a defender posicionamentos ditos mais de direita, por estar preocupada com os rumos adotados pelo Partido Trabalhista na Inglaterra. Apesar de não gostar dos Tories, informações de pesquisadores dizem que ela teria votado nos conservadores na eleição geral de 1983. Ela continuou manifestando sua visão política em forma de cartas para sua amiga norte-americana Naomi Lebowitz até os anos 1990, quando o avanço do Mal de Alzheimer começou a afetar sua expressão oral e escrita. Foi ativista em questões pertinentes e vitais para a sociedade inglesa: foi a favor das leis relacionadas aos direitos dos homossexuais e fez forte oposição à participação do país na Guerra do Vietnã, entre outros tópicos, pois, no seu entendimento, manifestar-se na sociedade era o papel de qualquer intelectual (Rowe, 2019).
Foi em Oxford, em 1954, que Iris Murdoch conheceu o professor e escritor John Bayley, o qual viria a se tornar seu esposo em 1956. Essa união durou até o final de sua vida, mas não gerou descendentes.
Conhecida por ter sido uma das filósofas-romancistas mais talentosas do século XX, também foi alvo de atenção demasiada por parte da sociedade para sua vida pessoal, em especial enfatizando sua aparente “promiscuidade” e “bissexualidade”, expostas em sua biografia escrita por Peter Conradi em 2001, além de outros materiais particulares, como suas cartas (também publicadas recentemente em um volume organizado por Avril Horner e Anne Rowe em 2015). O enfoque estava no fato de Iris Murdoch ter revelado, por meio dessas cartas, seus casos amorosos com homens e também mulheres, o que começou a povoar o imaginário da crítica. Apesar de toda a badalação, a imagem de casamento perfeito ficou arranhada, embora Murdoch tenha permanecido casada.
Todos esses acontecimentos de alguma forma contribuíram para que ela cristalizasse seu pensamento acerca das liberdades (sexual e religiosa), tendo procurado demarcar claramente liberdade sexual e irresponsabilidade sexual tanto no seu pensamento quanto nos seus valores pessoais (Rowe, 2019). Murdoch vivia uma espécie de dilema, pois enquanto acompanhava o avanço da liberdade sexual nos anos 1960 na Inglaterra e louvava essa nova liberdade, ela observava que o desejo e o fascínio do sexo casual poderiam ser deletérios, portanto, temia os possíveis excessos advindos de uma liberdade sem algum tipo de autocontrole (ou pelo menos defendia que seria necessário algum tipo de autorresistência às tentações). Para ela, a liberdade sexual fazia parte de aspectos das liberdades sociais e políticas. Em suas cartas, desaprovava com veemência a promiscuidade; no entanto, como mulher casada, mantinha relacionamentos com pessoas de ambos os sexos, e isso gerava não apenas desconforto, mas a necessidade de reflexão filosófica, já que ela mesma lutava contra tendências sexuais não convencionais que a deixavam confusa. Alguns desses relacionamentos (principalmente com Raymond Queneau e Elias Canetti) foram fonte de inspiração e criatividade para muitas de suas obras, mas, ao mesmo tempo, causaram culpabilidade moral. Esse conflito se torna um tema importante abordado em algumas de suas obras, principalmente A Severed Head [A cabeça decepada] (1961). Quanto à sua sexualidade, ela mesma afirma em uma carta a Georg Kreisel, em 1967, “não ser de todo normal sexualmente” (Horner & Rowe, 2015).
Quanto a seu posicionamento religioso, a boa arte seria comparada ao sagrado, pois prestar atenção a obras de arte seria como fazer uma oração (Conradi, 1997, p. 452). Sua preocupação com episódios radicais envolvendo religiões ficou evidente quando a fatwa foi imposta em Salman Rushdie nos anos 1980. Como defensora das liberdades, esse evento a deixou preocupada, pois, na sua visão, o declínio da fé religiosa no Ocidente daria lugar a esse tipo de ação: a tensão entre fanatismo e ceticismo caracterizaria o início do século XXI, tomando a forma de extremismo. Nascida em uma família protestante vivendo na Irlanda majoritariamente católica, Murdoch seguiu cantando os hinos aprendidos até a adolescência, quando começou a questionar sua crença. Como universitária e então filiada ao partido comunista, acabou declarando seu ateísmo, o que até hoje leva muitos estudiosos a vê-la como uma “ateia santa”. Os motivos apontados por ela para essa mudança foram a perda de confiança a partir da ascensão de Hitler na Alemanha, o esfacelamento do capitalismo e a ciência. Isso não significava, porém, que ela tivesse perdido totalmente sua fé, a qual emergiu no final de sua vida, quando sua memória, já um tanto afetada pelo Mal de Alzheimer, ainda lembrava as canções protestantes aprendidas na infância. Na sua visão, conseguiríamos exercer a espiritualidade sem Deus, ou mesmo sem a adoração a alguma figura específica, embora tenha defendido, nos últimos anos de sua vida, a doutrina budista como forma de bondade e de prática religiosa.
Quanto aos principais interlocutores filosóficos, Jean Paul Sartre foi seu principal influenciador (tanto que vira tema de sua primeira publicação filosófica), junto com Platão, Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger.
Obra
Iris Murdoch passou grande parte dos seus estudos filosóficos pensando na ideia de perfeição e na soberania do bem (que inclusive é o título de um de seus mais importantes trabalhos filosóficos, A soberania do bem, e que foi traduzido para o português brasileiro em 2013).
Quanto à sua representatividade, seus romances de algum modo combinam a ficção popular com questões morais e experimentação estilística, enquanto sua filosofia parece contestar importantes conceitos filosóficos em voga nos seus dias, oferecendo alternativas de cunho mais empírico, prático, com enfoque em questões relacionadas à ética das virtudes, e empregando termos mais concretos (humildade, compaixão, justiça).
Autora de 26 romances, e de outros inúmeros ensaios e livros filosóficos, Iris Murdoch também investiu em poesia, mas esse gênero acabou não tendo tanta representatividade em sua carreira. A década de 1950 marcou o lançamento de seu primeiro romance, Under the Net [Sob a rede] (1954, que faz referência à analogia da caverna de Platão, enfatizando a jornada da ilusão à realidade por parte do protagonista, Jake Donaghue); seguido por The Flight from the Enchanter [Mischa, o encantador] (1956, que reflete as experiências de Murdoch quando trabalhava na UNRRA após a Segunda Guerra Mundial); The Sandcastle [O castelo de areia] (1957, que trata dos desejos conflitantes entre monogamia e liberdade sexual) e The Bell [O sino] (1958, que lida com questões acerca da legalização da homossexualidade na Inglaterra e demonstrando atos homossexuais quando isso ainda era ilegal no país). Em termos filosóficos, ela publica sua primeira obra, Sartre: Romantic Rationalist [Sartre: racionalista romântico], em 1953.
A década de 1960 foi a mais prolífica na sua carreira: além de acompanhar suas obras sendo adaptadas ao palco, ela tornou-se a primeira mulher a se apresentar na Philosophical Society do Trinity College em Dublin em 1964. Publicou oito romances, que exploram questões advindas da nova fase de liberação sexual na Inglaterra: A Severed Head (1961, que trata de temas como sadomasoquismo, violência e incesto), e An Unofficial Rose [Uma rosa provisória] (1962, que novamente aborda formas de atração sexual não convencionais). Além dessas temáticas sexuais, ela volta seu olhar a questões sociopolíticas de sua terra natal, a Irlanda, em dois romances: The Unicorn [O unicórnio] (1963, cuja simbologia alude à Irlanda) e The Red and the Green [O vermelho e o verde] (1965, que reconta a história da Revolta da Páscoa na Irlanda em 1916). Ela retoma as múltiplas formas de atração sexual em The Italian Girl [A moça italiana] (1964); The Time of the Angels [O tempo dos anjos] (1966) mostra como a perda da fé levaria à crueldade, já que Murdoch estava preocupada sobre onde ficaria a moralidade em um mundo sem Deus); The Nice and the Good [Ser bom não basta] (1968) aborda suas ideias ambivalentes acerca da revolução sexual; e Bruno’s Dream [O sonho de Bruno] (1969) traz reflexões acerca da morte, pois teria sido escrito após o falecimento de um de seus amigos de Oxford, Frank Thompson.
Na década de 1970 Murdoch continuou vendo suas obras sendo adaptadas ao palco e ao cinema e produziu seus principais trabalhos filosóficos, como The Sovereignty of Good [A Soberania do Bem] (1970) e The Fire and the Sun: Why Plato Banished the Artists [O fogo e o sol: por que Platão bania os artistas] (1977). Publicou sete romances, que abordam inúmeras questões, por exemplo: como lidar com as novas liberdades sexuais e o amor verdadeiro; a ineficácia da filosofia moral contra os caprichos da natureza humana; até que ponto é possível considerar a natureza humana como maleável ou fixa; a necessidade de encontrar estratégias para enfrentar o sofrimento e a certeza da morte. Esses romances também possuem uma característica especial: Londres é apresentada como cenário principal. Em A Fairly Honourable Defeat [Uma derrota razoavelmente honrável] (1970) questões do mal e da autodecepção são abordadas; An Accidental Man [Um homem acidental] (1971) enfoca a imprevisibilidade da vida; The Black Prince [O príncipe negro] (1973), escrito à época da desconstrução — que defendia que a cultura humana seria entendida por meio de estruturas que não corresponderiam à realidade concreta, e questionava as concepções tradicionais sobre identidade e verdade, sugerindo que os textos literários subvertiam seus próprios significados — desafia essas noções; The Sacred and Profane Love Machine [A máquina do amor sagrado e profano] (1974) destaca estados de desilusão mental; A Word Child [Um filho da palavra] (1976) demonstra uma preocupação com problemas da época, enfocando a crueldade do destino e o reconhecimento de que, apesar do esforço humano, não seria possível eliminar traços psicológicos negativos; Henry and Cato [Henry e Cato] (1976) destaca a autodecepção como um elemento necessário à sobrevivência; em The Sea, The Sea [O mar, o mar](1978), o foco está em desnudar as ilusões, principalmente amorosas.
Na década de 1980, Murdoch sofreu uma crise de confiança em sua produção filosófica, em especial devido à recepção um tanto negativa de suas Gifford Lectures na Universidade de Edimburgo em 1982, que, durante dez dias, tentaram explicar como a metafísica requeriria a criação de conceitos imaginários e imagens que ajudariam a guiar a reflexão sobre a vida moral. Publicou cinco romances, que de certa maneira refletem sobre a impossibilidade de negar o destino e de superar traços de personalidade: Nuns and Soldiers [Freiras e soldados] (1980) e The Philosopher’s Pupil [O aluno do filósofo] (1983) abordam os conflitos entre “sagrado” e “mágico” e “sábios” e “discípulos”; The Good Apprentice [O bom aprendiz] (1985) enfoca o poder de salvação da arte; The Book and the Brotherhood [O livro e a irmandade] (1987) e The Message to the Planet [A mensagem para o planeta] (1989) buscam novas filosofias e respostas ao mistério da vida. Publicou também Acastos: Two Platonic Dialogues [Acastos: dois diálogos platônicos] em 1986, descrevendo, entre outros tópicos, o significado de bondade e o papel da fé.
Na década de 1990 Murdoch acaba publicando sua série de palestras em Edimburgo com o título Metaphysics as a Guide to Morals [Metafísica como guia para a moral] (1992). Além disso, dois romances foram lançados: The Green Knight [Cavaleiro Verde] (1993, que aborda temas como justiça, vingança, piedade) e Jackson’s Dilemma [O dilema de Jackson] (1995, que já demonstra o declínio mental de Murdoch por conta do Alzheimer e prenuncia o fim de sua trajetória).
Iris Murdoch foi filha do Império Britânico: assim como muitos outros autores conterrâneos seus, de alguma forma deixou transparecer em seus livros, principalmente em Under the Net [Sob a rede] e na novela Something Special [Algo especial], a relação tempestuosa com sua terra natal, a Irlanda, “a ilha de encantos”, bem como sua paixão pela cidade que captou suas emoções e criatividade, e que fez parte de sua vida, a Metrópole, a “cidade sagrada”, Londres.
Pensamento filosófico
Iris Murdoch teve sua formação acadêmica na Filosofia. Como romancista, afirmava categoricamente que as duas áreas, literatura e filosofia, não se confundem, pois isso resultaria em uma mistura perigosa. Ou, pelo menos, Murdoch não queria misturá-las em seu trabalho, devido às diferenças dos dois campos: a filosofia deveria clarificar e explicar; já a literatura seria para divertimento, deixando espaço para experimentação e brincadeiras; os filósofos, na sua visão, não poderiam deixar espaços em seu trabalho, enquanto a literatura seria repleta de truques, mágica e mistificação deliberada (Dooley, 2003). Nesse âmbito, o livro The Fire and the Sun: Why Plato Banished the Artists, publicado em 1977, traz reflexões importantes da autora sobre a visão de Platão — e de outros filósofos — em relação à missão dos artistas que, por ele, eram mais criticados do que tolerados. Murdoch menciona que, para Platão, a arte estaria distante da verdade, originando-se do conhecimento vicário e da parte inferior da alma, e causaria danos ao alimentar paixões que deveriam ser disciplinadas. Logo, a “arte é perigosa principalmente porque imita o espiritual e sutilmente o disfarça e o trivializa” (Murdoch, 1977, p. 65, tradução minha).
Quanto à contribuição de Murdoch para a filosofia no século XX, ela reconhece a impossibilidade de perfeição moral, e é justamente pela tentativa de alcançá-la, e não pelo sucesso em fazer isso, que suas personagens são lembradas e se consagram. Alguns estudiosos a criticam em termos filosóficos pois não haveria como atribuir qualquer validade para uma filosofia moral cuja própria autora se mostrava incapaz de seguir. No entanto, partindo-se da ideia de que ela mesma reconhece a impossibilidade de perfeição, sua incapacidade moral não seria de todo incompatível com sua tese filosófica.
Nos anos de 1960 e 1970, a academia parecia mais interessada em procurar as conexões entre sua filosofia e sua ficção. Segundo Justin Broackes, na introdução de seu livro Iris Murdoch, Philosopher [Iris Murdoch, filósofa] (2012), uma reunião de ensaios sobre sua obra filosófica, é nessa época que Murdoch podia ser considerada uma filósofa que escrevia romances, e não uma romancista que ensinava filosofia. Seu trabalho filosófico é classificado por Broackes como “importante, difícil e distinto”, enfatizando que um dos méritos de A Soberania do Bem (The Sovereignty of Good, 1970) foi ter conseguido recuperar o diálogo entre a arte e a moralidade na Inglaterra, além de ter contribuído para a discussão da ética e da própria teoria literária (Broackes, 2012).
Nesse livro, Murdoch nos presenteia com três ensaios escritos durante a década de 1960: ‘A ideia de perfeição’ (1964), em que ela explicita o embate com os filósofos, demonstrando que uma filosofia da mente inspirada em Wittgenstein não seria de todo suficiente para dar conta de muitas questões, ao mesmo tempo que entende a moral a partir das ações exteriores. Ela enfatiza também que o bem é real, e que os “corrompidos pela filosofia” não seriam capazes de vê-lo como real. Em relação a Ludwig Wittgenstein, por exemplo, o título do romance, “Under the Net”, origina-se de seu Tractatus (1921), ecoando sua visão de linguagem como uma rede de discurso por trás da qual estão escondidas as características do mundo, rede que é necessária para deduzir e descrever essas características: linguagem e teoria (constituintes da rede) revelam e ao mesmo tempo ocultam o mundo. Pensando na sua teoria pictórica, Wittgenstein concebe a linguagem como uma forma de representar os fatos do mundo e buscou investigar as condições lógicas de possibilidade de uma representação. Na sua Teoria Pictórica, diante do amplo repertório de sinais escritos e sonoros, suas ponderações se debruçam apenas naqueles que são representações (verdadeiras ou falsas) de fatos do mundo (interjeições, por exemplo, “ui”, não seriam representações de fatos do mundo).
No segundo ensaio, ‘Sobre ‘Deus’ e o ‘Bem’’, publicado em 1969, Murdoch explora a definição de “pecado original”, que seria importante ao se pensar em ética. No terceiro ensaio, ‘A soberania do Bem sobre outros conceitos’, publicado em 1967, o tópico de discussão é a arte, que “se opõe totalmente à pressão egoísta”, tendo a capacidade de desvendar o real e o verdadeiro no meio do despropósito. Nesse ensaio ela também chama a atenção para a aceitação da morte como um ato de proximidade com o bem.
Como Murdoch rejeitava os dois movimentos filosóficos predominantes da época, a “filosofia analítica” anglo-americana — com sua ênfase na linguagem e no comportamento — e o “existencialismo continental” — com sua ênfase na escolha individual como um caminho para a liberdade —, ela pensou em abrir uma terceira via, que seria uma forma de realismo moral combinado com o que ela denominava “psicologia moral”, ou “naturalismo inclusivo não dogmático”. Na sua visão, a filosofia deveria contribuir não apenas para o debate abstrato mas para questões práticas — por exemplo, para saber como podemos nos tornar moralmente melhores.
Nos anos 1980, o foco estava na sua “psicologia moral”, incorporando a exploração da vida interior dos indivíduos. Foi nessa década que seus romances começaram a ser excluídos das ementas nas universidades, principalmente britânicas, devido ao advento do estruturalismo e do pós-estruturalismo, enfoques que, no campo literário, buscavam desconstruir absolutos e ignorar a ideia de que os textos literários possuem um significado intrínseco moral e estável. Murdoch era contrária a essas ideias pós-estruturalistas, e nos anos 1980 e 1990, sua firme defesa do valor dos absolutos, como o amor e o bem, fez a crítica considerar seu trabalho literário como “fora de alcance”. No entanto, a partir dos anos 1990, houve uma retomada da discussão de seus romances, acompanhando de certa forma o movimento acadêmico de reconsideração das implicações morais dos textos literários, que acabou por acomodar suas obras em uma espécie de “virada ética” na crítica, garantindo sua importante contribuição ao desenvolvimento da literatura inglesa no século XX devido à sua profunda psicologia moral e sua predisposição filosófica. A busca pela verdade, pelo amor e pela bondade é o elemento capaz de juntar a filosofia e a ficção, porém essa busca é realizada de formas que ora se contradizem, ora se complementam. Para Murdoch, a filosofia seria um convidado invisível, mas ao mesmo tempo um elemento onipresente em qualquer obra de ficção, constituindo o debate entre o determinismo e o destino que permeia sua ficção (Rowe, 2019, p. 45). Nesse sentido, seria natural considerar que, por ser filósofa de formação, a inclusão do tópico em suas obras se torna algo simples, natural, assim como alguém que conhece barcos se sentiria confortável ao integrar elementos desse conhecimento em alguma obra de arte (literária ou não). Outra possibilidade quando nos deparamos com suas narrativas é considerar suas personagens como filósofas em ação: tanto na expressão de suas crenças e pensamentos quanto na posição de quem dá conselhos ou oferece uma “mão amiga”. Para Murdoch, “a arte vai mais fundo do que a filosofia” (Conradi, 1997, p. 21, tradução minha).
Murdoch queria que a filosofia moral com a qual seus romances se preocupavam tivesse algum tipo de relevância para os dilemas morais da vida real, daí o caráter prático de seu trabalho filosófico. O romance, na sua visão, deveria se aproximar “da vida comum que é saturada com reflexão moral” (Murdoch, 1992, p. 89, tradução minha). Murdoch ficava alarmada com o quanto a filosofia ignorava as compulsões sombrias que influenciam o comportamento humano. Para ela, cada romance é um campo de tensão entre o empurrão (impulso) mecânico, obsessivo da mente inconsciente (o id freudiano) e o desejo platônico (superior) da anamnese platônica, isto é, da quebra do véu da fantasia por meio do qual os seres humanos tendem a perceber o mundo. Em O mar, o mar, por exemplo, Murdoch trabalha com a tensão entre Freud e Platão, ou entre o que ela denomina eros baixo e alto. Murdoch defende, em termos filosóficos, que, em vez da escolha existencial, é a experiência interior não observável que molda o comportamento humano, e que sua moral demanda olhar para fora, e não para dentro, a fim de superar nossos próprios demônios. A filosofia moral de Murdoch se insere no romance O mar, o mar já no fato de o protagonista, Charles Arrowby, demonstrar sua predisposição a ver as mulheres apenas como projeções de seus medos e fantasias inconscientes. A demanda moral sobre ele, e sobre os leitores, é por uma claridade de visão (platônica) que vem de um ato dedicado de atenção para uma realidade que está fora do ser, um ato que, na filosofia de Murdoch, seria semelhante ao ato da oração.
A partir disso, podemos considerar alguns termos importantes para identificar e entender melhor a sua filosofia. Um deles é justamente “atenção”, que expressaria o ato de “um olhar justo e de amor sobre uma realidade individual”, que seria a “característica e marca apropriada do agente moral ativo”. Essa atenção geraria “amor”, que, na sua relevância terminológica, significaria “a percepção extremamente difícil de que algo além de nós mesmos é real” (Conradi, 1997, p. 327, tradução minha). Outra definição para atenção é apresentada a seguir, cuja influência é atribuída à filósofa francesa Simone Weil (1909-1943): “técnicas para purificação de uma energia que é naturalmente egoísta” (idem, p. 54, tradução minha).
Alusões filosóficas, quando não criam um diálogo com o leitor, de alguma forma colocando-o na posição do personagem e questionando seus dilemas morais, também oferecem espaços para debater grandes tópicos do final do século XX. No romance Under the Net [‘Sob a rede’, em tradução para o português de Portugal] o protagonista Jake Donaghue está na frente da fonte de Médici, em Paris, e pensa o seguinte: “há algo atraente sobre o som de uma fonte em um local deserto. Ela murmura sobre o que as coisas fazem quando ninguém está as observando. É o ouvir de um som não ouvido. Uma refutação gentil de Berkeley” (Murdoch, 1954, p. 208, tradução minha).
O filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753) é famoso por sua doutrina de que não há substância material e que as coisas são coleções de ideias ou sensações que podem existir apenas na mente humana pelo tempo em que elas forem percebidas. É nesse romance — muito influenciado em sua escrita por Raymond Queneau, sabidamente uma de suas grandes paixões — que Murdoch também, de certo modo, nos remete à analogia da caverna de Platão, pois acompanhamos a jornada do narrador entre a ilusão e a realidade, além de percebermos as visões existencialistas de Sartre acerca da liberdade, bem como a preocupação com as ideias de Wittgenstein sobre a instabilidade da linguagem e a relação entre o que pode e o que não pode ser colocado em palavras (o personagem Jake Donaghue é tradutor na história e várias vezes precisa responder a quem pergunta sobre sua profissão que ele não é um dicionário ambulante).
A partir dessa leitura, também percebemos uma das preocupações da própria Iris Murdoch e que talvez caracterize sua filosofia: o temor de que o excesso de dependência de teorias poderia distorcer a verdade. Todas essas alusões servem a diferentes propósitos: elas podem permanecer espectrais, facilmente ignoradas, como uma brincadeira; ou representar tópicos filosóficos mais desafiadores. A decisão, sempre soberana, é do leitor.
Referências Bibliográficas
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Traduzidas
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Ainda não traduzidas
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Obras de Murdoch – Romances
Traduzidas – Português do Brasil
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Murdoch, I (1977). Mischa, o encantador. Tradução de Hindemburgo Dobal. Rio de Janeiro: Artenova.
Murdoch, I. (1980). O mar, o mar. Tradução de Théa Fonseca e Luiz Carlos de Azevedo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Murdoch, I. (1963). O unicórnio. Tradução de Théa Fonseca. Rio de Janeiro: Artenova.
Traduzidas – Português de Portugal
Murdoch, I. (2001). Algo de especial. Tradução de Maria João Bento. Lisboa: Publicações Europa América.
Murdoch, I. (2004). A máquina do amor: sagrado e profano. Tradução de Fernanda O’Brien. Lisboa: Relógio d’Água.
Murdoch, I. (1993). Cavaleiro Verde. Tradução de Luís Serrão. Lisboa: Publicações Europa América.
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Murdoch, I. (1996). O dilema de Jackson. Tradução de Georgina Segurado. Lisboa: Publicações Europa América.
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Ainda não traduzidas
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Sobre a vida e obra de Murdoch
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