O dia em que conheci a Maria Gorda
- Maria Gorda
Maria Gorda é um baobá enorme que cresce em Paquetá, bucólica ilhota da Baía de Guanabara. Essa árvore centenária, personagem até do Pequeno Príncipe, cresça numa curva da praia dos Tamoios. Ela foi colocada na ilha pelo Dr. José Caetano de Almeida Gomes, médico e naturalista apaixonado pela botânica. A cinturinha da Maria Gorda já tem três metros (diâmetro de caule à altura do peito, uma medida comum em fitossociologia), outros baobás mais velhos chegam a até 8 m. Uma gordinha simpática e bonita de se admirar.

O baobá da Ilha de Paquetá
Sereias existem? O documentário
Meu padrasto é um homem muito inteligente e uma conversa sempre agradável. Parte dessas conversas, pelo menos comigo, tem por enredo documentários que ele adora assistir na TV a cabo. Esses tempos estávamos conversando e ele me contou de um documentário sobre sereias que o deixou muito intrigado.
No filme “Sereias, o corpo encontrado” o biólogo marinho Brian McCormick, funcionário da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), descobre um som diferente, que eles denominam bloop, através de microfones submarinos. Sua equipe sai então em busca de mais evidências quando começa a ter contratempos com a marinha americana em casos de encalhes de baleias. Na África do sul um animal não identificado é encontrado no conteúdo estomacal de um tubarão branco. McCormick não só relaciona esse corpo aos bloops que seu microfone gravou, mas também o identifica como uma sereia, um hominídio semi-aquático produtor de ferramentas e que se comunica usando sons, um canto, inclusive compreensíveis por outros mamíferos aquáticos.
Nunca fui muito fã de documentários de história natural, mas acho que o Discovery Channel exagerou dessa vez. O estilo tem até um nome: Mockumentary, uma fusão das palavras mock (imitar) e documentary (documentário); e não é o primeiro exibido pelo canal que já levou ao ar “Dragões, uma fantasia real”. O próprio canal deveria usar um disclaimer mais enfático avisando ser uma brincadeira (parece que no início do vídeo aparece algo avisando tratar-se de ficção científica). Fiz uma pesquisa mais aprofundada para apresentar a vocês. Vamos às minhas evidências:
1) Não há nenhum artigo científico sobre biologia marinha publicado por Brian McCormick.
2) Também não há nenhum artigo apresentando o Bloop produzido por qualquer mamífero marinho. Mas, como o Willy me alertou, o som existe e pode ser escutado aqui. Obrigado pelo comentário!
3) O IMDb traz a lista de atores que integram o elenco do filme, entre eles Sean Michael no papel de Brian McCormick. O ator também estrelou papéis importantes como o do policial em “Esqueceram de mim 4”!
4) A própria emissora emitiu uma nota de imprensa afirmando que o programa é de ficção científica baseada em alguns eventos reais e hipóteses científicas. A própria NOAA veio a público afirmar que sereias, até o momento, existem apenas no imaginário humano.
Desbancada a farsa, fica meu sentimento de que, com tanta realidade encantadora para descrever nesses canais, para que enganar a audiência? Ainda conhecemos muito pouco dos nossos oceanos e até hoje espécies novas de baleia são descobertas, então não me surpreenderia se um dia descobríssemos sim algo como uma sereia. Que fique claro, no entanto, que até o momento não existe evidência nenhuma da existência desses seres.
Os camundongos inconformados
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
A doutora aguardava dois clientes camundongos, mas estava preocupada mesmo era com a reação da secretária. Sua última ajudante ficou apavorada quando um cliente antigo, um ratão do banhado que tinha medo de água, entrou na sala de espera. Ela sempre achara simpática a cara daquele animal, mas concordava que o rabo era repugnante.
A primeira cliente já aguardava na antessala. Uma mãe de oito camundonguinhos de olhos fundos e mamas inchadas de devoção pelos seus filhotes se queixava do parceiro que não a ajudava.

Fêmeas de camundongo pedem ajuda para cuidar da prole a seus parceiros usando feromônios e ultrassons. Fonte: eurekalert.org
-Para mim, doutora, a demonstração maior da inutilidade dos machos são aqueles mamilos. Usaram tão pouco que perderam a função! Por mim eles todos podiam cair em desuso e desaparecer que não fariam falta.
-Não seja tão lamarckista. – Interpelou a doutora.
-Extremista?
-Lamarckista. Deixa para lá. Você já pediu a ajuda dele para cuidar das crianças?
-É claro que sim.
-Mostre para mim como você falou com ele. Finja que sou seu marido e me peça ajuda. – Sugeriu a terapeuta usando a técnica do espelho.
-Ora, doutora. Eu pedi. Ah, não sei. Falei mais ou menos assim… Bom, ele nãos está vendo como estou sobrecarregada? Não acho que eu precisasse falar. O que é? Ele queria participar só na hora de fazer a ninhada? Não é justo! Ele fica lá só metido nas coisas de macho dele e não olha para mim. Não colabora. Esquece as minhas necessidades e as dos filhos dele. Nem parece que moramos na mesma cuba do mesmo biotério.
– Você tem razão, mas se não contar para ele que precisa de ajuda não pode exigir que ele adivinhe. Machos são menos inclinados a cuidar da prole mesmo, especialmente em mamíferos como você. Você tem que pedir ajuda do jeito certo.
-Que jeito é esse? – Perguntou a roedora arregalando os olhinhos escuros, mexendo de leve as orelhinhas arredondadas e eriçando as vibrissas.
-Bom, primeiro você precisa liberar feromônio e então emitir vocalizações ultrassônicas. Uns 38 kHz são suficientes.
-ASSIM?!?-Gritou estridentemente a Sra. Mus fazendo tremer os vidros do consultório e levando a analista a tampar os ouvidos, mas num tom que você e eu não escutaríamos.
-Isso, mas não precisa ser tão alto, só agudo. Agora vá para casa e semana que vem você me conta no que deu. – A doutora encerrou a seção encaminhando a primeira cliente até a porta e já chamando o segundo, um camundongo macho de outra espécie. Ao se cruzarem na sala de espera a cliente anterior lançou-lhe um olhar cheio de ressentimento que a ela pareceu cabido contra camundongos machos, mas deixou-o sem entender nada.
-Doutora, toda minha vida imaginei a casa dos meus sonhos. A mais linda da ravina. Localização e tamanho de cada cômodo, portas, janelas e corredores amplos. Sonhava em deixar aquelas tocas tradicionais para trás, viver numa casa aconchegante e cheia de personalidade, a minha personalidade. Desde que me lembro vivo em tocas exatamente iguais, um longo corredor de entrada, uma câmara central e um corredor de fuga quase até a superfície para o caso da invasão de um predador. Meus pais vivam assim, meus avós paternos e maternos viviam assim. Queria sair desse ciclo. – Queixava-se o camundongo deitado no divã. – O problema é que, agora que chegou a minha hora de realizar o sonho, fazer minha própria toca, não consigo abandonar o paradigma. Estou construindo os mesmos túneis estreitos e longos, câmaras e saídas de emergência de meus ancestrais.
-É comum reencenarmos coisas do passado, Sr. Peromyscus…
-Eu sei, doutora. É aquela história freudiana de recordar, repetir e elaborar os traumas. Né? – interrompeu o roedor.
-Não exatamente. Aí o que está acontecendo é que suas tocas são influenciadas pelos genes. Você herdou essa conformação de toca de ambos os seus pais, portanto tende a repeti-la.
-Mas, doutora, os genes controlam até isso? Não é determinismo demais? – Perguntou o cliente franzindo as sobrancelhas e apertando a boca até quase fazer sumir os longos incisivos.
-Compreendemos ainda muito pouco sobre o papel dos genes no comportamento e sua modulação, mas parece que no caso da sua toca você está geneticamente condenado a repetir a morada dos seus pais. Até as três sequências genéticas que indicam o comprimento do túnel de entrada e a sequência que indica a presença da saída de emergência são conhecidas para a sua espécie. – Sentenciou a psicóloga.
Despediram-se na porta do elevador, o camundongo se esgueirando ligeiro pelo canto do corredor, resignado e mudo. Enquanto isso a doutora pensava como todos nós temos dificuldade de lidar com a realidade. Dois camundongos tão diferentes, mas tão semelhantes. Um quer mudar o parceiro, o outro o lar. Somos todos inconformados. O que não é de todo mau, já que esse inconformismo nos move.
Liu, H., Lopatina, O., Higashida, C., Fujimoto, H., Akther, S., Inzhutova, A., Liang, M., Zhong, J., Tsuji, T., Yoshihara, T., Sumi, K., Ishiyama, M., Ma, W., Ozaki, M., Yagitani, S., Yokoyama, S., Mukaida, N., Sakurai, T., Hori, O., Yoshioka, K., Hirao, A., Kato, Y., Ishihara, K., Kato, I., Okamoto, H., Cherepanov, S., Salmina, A., Hirai, H., Asano, M., Brown, D., Nagano, I., & Higashida, H. (2013). Displays of paternal mouse pup retrieval following communicative interaction with maternal mates Nature Communications, 4 DOI: 10.1038/ncomms2336
e
Weber, J., Peterson, B., & Hoekstra, H. (2013). Discrete genetic modules are responsible for complex burrow evolution in Peromyscus mice Nature, 493 (7432), 402-405 DOI: 10.1038/nature11816
Mate de tonel
Sempre amei o mate vendido em tonéis metálicos nas praias do Rio de Janeiro tanto quanto sempre fui avisado de sua qualidade microbiológica duvidosa. Posso estar sendo injusto e ignorar os procedimentos sanitários aplicados por esses comerciantes, mas preciso considera-los nulos para esse post sobre imunologia que explica por que continuo consumindo esse mate em vez dos de copinho, selado e industrializado.
A alimentação é uma via de entrada de infecções em nosso organismo, pela boca ingressam vários microrganismos que podem ser prejudiciais a nós. Uma informação surpreendente para muitos é que o controle sanitário de vários itens alimentares trabalha com quantidades limites de bactérias fecais nos alimentos, por exemplo, e não com sua total ausência. Mesmo produtos certificados pela ANVISA vêm com algum grau de contaminação (até 102 bactérias por grama de carne), e isso não é um problema porque nosso corpo acaba dando um jeito.
Quando um patógeno desses invade nosso corpo ele eventualmente esbarrará em linfócitos B e T, células de defesa do sangue que circulam pelo corpo como que fazendo rondas. Essas células identificam patógenos e convocam reforços, através de comunicação celular química, para ataca-los. A identificação de um patógeno é possível quando o corpo já teve contato com ele, a chamada memória imunológica, mais ou menos da mesma forma que uma ficha policial com fotografia e digitais faria pela polícia. Desde que já tenha contatado um patógeno específico presente no mate de tonel, nosso corpo saberá responder a ele mantendo seu equilíbrio interno.
Não sei se é fantasia minha, mas sinto até que esse mate de tonel tem um gosto diferente. Dizem que é gosto de água podre. Pode ser. Não sei, mas confio no meu sistema imune para dar conta dos germes e quem sabe até aprender umas coisas novas com os patógenos dessa dose. Mate de tonel faz bem para seu sistema imune.
Tendo dito tudo isso, refuto-me a mim mesmo. Imunidade que nada, tomo esse mate porque é muito mais gostoso!
Sugestão de natal – A verdade sobre cães e gatos
Você que é biólogo e está sem ideias para o presente de natal, minha sugestão é “A verdade sobre cães e gatos”, do meu vizinho de Scienceblogs Mauro Rebelo. O livro traz um pouco do cotidiano desse carioca irreverente à luz da Biologia que ele conhece tão bem. As discussões vão desde por que fazemos sexo oral ou qual a quantidade ideal de convidados para uma festa até por que sentimos raiva. A narrativa despe a Biologia de seus jargões (que até dão as caras, mas apenas como coadjuvantes) e apresenta o que há de mais legal: ideias.
O livro pode ser adquirido pelo facebook nesse link.
Culpa
Desde o ciclo do ouro não se via festa igual na Igreja de São Francisco de Assis. Do alto do pórtico desciam fios ornados com bandeirolas coloridas agitadas pelo vento alegre. Todo o clero, reunido no alto da escadaria nas mais festivas vestes, margeava à esquerda e à direita o Cardeal Dom Antônio Pacheco Filho. Ao fundo, o coral de coroinhas bochechudos como anjos barrocos tornava a atmosfera ainda mais celestial. Havia sido agendada naquela manhã de festa a devolução da cruz empunhada por São Luís Rei de França, roubada 60 anos antes por um ladrão arrependido. Em uma carta entregue algumas semanas antes pelo carteiro o ladrão narrava a subtração que nem havia sido percebida pela diocese, marcando data e hora da devolução: aquela manhã.
A excitação da antecipação contagiara a paróquia. Noviças românticas idealizavam um senhor pio e arrependido de suas aventuras de rapazola ou já livre dos anos de necessidade que o levaram ao crime. Madres e Bispos, taciturnos e tão céticos quanto cabe a um religioso, apostavam num velho decrépito que, à beira da morte e temendo a pena que lhe caberia pela vilania, decidiu redimir-se esperando o perdão celestial. As beatas temiam pelo pior, uma manhã desperdiçada à espera de um falso arrependido que jamais viria. Oculto de longe se riria dos presentes.
À hora marcada ouviram-se os passos lentos do cavalo contornando a Sé. Saltou do alto do Alazão oum senho, sim, mas ágil e forte como ninguém previra. Subiu aos saltitos a longa escadaria com a pesada cruz envolta em veludo carmim nos braços e entregou ao cardeal.
-Aqui está, lamento o inconveniente.
-Não há o que lamentar, irmão. O importante é que você ouviu a voz de Deus nosso Senhor. Foi iluminado e desfez, ainda que tardiamente, seu erro. Sua fé e arrependimento o levarão ao reino dos céus. Graças a Deus.
-Amém! – Entoou a multidão.
O ex-criminoso se virou para descer as escadas, mas foi interrompido pelo clérigo.
-Não quer entrar, se confessar e comungar? Livrar-se completamente do peso desse pecado do passado? Vamos, eu providencio tudo.
-Muito obrigado, mas não. Sou ateu. – Respondeu já de partida o herói.
Essa crônica foi fruto da oficina de Produção Textual dos Professores Roney Barreto da Silva e à Priscila Quintino da Silva no III CILE, a quem eu agradeço a inspiração e os ensinamentos.
Técnica de pesquisa – Profissão Biólogo
Arodí Prado Favaris
Sou técnica de pesquisa do laboratório de Entomologia, onde trabalho em especial com comportamento animal e ecologia química na ESALQ/USP. O mercado dos técnicos tem bastante espaço para biólogos. Na área em que atuo, o objetivo principal é ter uma aplicação na Agricultura, uma solução mais sustentável para o manejo de pragas agrícolas. O biólogo é importante não apenas por se interessar em uma aplicabilidade de sua pesquisa, mas também pelos estudos mais básicos, não menos importantes.
Conhecimentos básicos de química, cromatografia, capacidade de observação detalhada do comportamento animal foram algumas das habilidades que precisei desenvolver para exercer minha função. Estou envolvida no desenvolvimento de projetos de pesquisa, treinamento de pessoal (estágio, pós-graduação), suporte técnico de aulas práticas e administração de verbas por 40 horas semanais, 8h/dia. O Ambiente é tranquilo para se trabalhar, porém movimentado de alunos, principalmente os de pós-graduação.
Embora não tenha pós, precisei me especializar. Não tive preparo na área de cromatografia na faculdade. Precisei fazer cursos para aprender seu uso e aplicação. Sempre me interessei pelas disciplinas que envolviam química, tanto que meu desejo era trabalhar com plantas medicinais. Gostava também das aulas de fisiologia animal, botânica e comportamento animal. No trabalho hoje uso, sem dúvida, Química Analítica, Inorgânica e Química Orgânica.
Não tive oportunidades para trabalhar em empresas privadas, nem mesmo como trainee, pois a preferência delas é para os engenheiros. Então, decidi estudar para concursos voltados para a área que estudei. No primeiro deles que fui chamada foi para ser professora do Ensino Fundamental. Dei aulas durante seis meses, mas não me identifiquei com essa profissão. Logo em seguida, surgiu um concurso na ESALQ, para técnico de nível médio, no qual fui aprovada para trabalhar na área de criação de insetos visando ao controle biológico. Então surgiu outro concurso, no mesmo departamento, para técnico de nível superior na área de ecologia química e comportamento de insetos. Também fui aprovada e pretendo ficar no cargo em que me encontro hoje, aprimorando cada vez mais na área.
O que me motiva a exercer minha profissão é o fato dela valorizar a minha formação enquanto bióloga. Desenvolver atividades para as quais não tive preparo na faculdade, como, por exemplo, a cromatografia que já comentei são, por outro lado, meus desafios cotidianos.
Penso que é preciso ter foco. Depois que me formei, não encontrei uma razão firme de que deveria continuar estudando. Além disso, eu nunca tive o desejo de trabalhar com insetos. O meu objetivo foi de prestar concursos na área da biologia e, para isso, me dediquei estudando muito. Muitas pessoas fazem pós-graduação por falta de opção, infelizmente. Viver de bolsa de estudos é passageiro, mas se aqueles que continuam estudando têm um objetivo firme de seguir carreira como mestre ou doutor, então, não há dúvidas de que será bem sucedido.
Profissão Biólogo – Jogos biológicos
Nurit Bensusan, fundadora da biolúdica
Dizer em que área trabalho é até um pouco difícil, pois minha atuação profissional envolve várias áreas. Uma resposta seria popularização da ciência e conservação da biodiversidade. Isso porque eu venho escrevendo livros, blogs, criando jogos e inventando outras modas para popularizar os temas biológicos, principalmente os ligados à conservação da biodiversidade. Hoje, tenho uma empresa que cria jogos com temas biológicos, mas continuo escrevendo livros, fazendo pesquisas e inventando moda. Eu trabalho na minha própria empresa, a Biolúdica. Nessa área de popularização da ciência tem espaço sim, mas para biólogos que gostam de divulgação científica e valorizam o contato com o público leigo.
No meu caso específico, a habilidade mais necessária é a criatividade. A popularização da ciência bem sucedida precisa ser instigante e deve, se possível, colaborar ampliando as interfaces entre a ciência e a cultura. Assim, conhecimento, mesmo fora da área biológica, é bastante importante também. Em meu trabalho eu escrevo, crio jogos, pesquiso, realizo oficinas para crianças e adultos com os jogos. Trabalho em média umas 8 a 9 horas por dia, de uma forma muito disciplinada, pois tenho um escritório em casa. Nos fins de semana, só trabalho se houver necessidade. Como trabalho no meu escritório em casa, fico muito tempo sozinha, mas tenho contato sempre com profissionais das mais diversas áreas, desde meus pares biólogos, até designers, artistas plásticos, professores, educadores e jornalistas. Esses contatos são muito gratificantes e enriquecedores.
Por opção, eu estudei história e filosofia da ciência, na Universidade Hebraica de Jerusalém, e acho que isso, hoje, me ajuda muito, principalmente na construção da abordagem que eu adoto de popularização da ciência. Fiz, também, um doutorado em educação, abordando museus de ciência. Mas acho que seria possível desenvolver meu trabalho sem essa formação. Eu sempre gostei das disciplinas ligadas à evolução. Eram as mais interessantes e as que permitiam algum espaço de reflexão. Infelizmente, as outras eram apresentadas como técnicas ou como realidades da ciência, sem espaço para entendermos o quanto daquilo que estávamos estudando era resultado de escolhas de abordagens e até mesmo de opções ideológicas. Eu me lembro de disciplinas com professores instigantes. Uma delas era Ecologia do Cerrado, ministrada pelo professor Bráulio Dias, hoje Secretário Executivo da Convenção da Biodiversidade, em Montreal. Ele obrigava os alunos a pensar, ao contrário de muitos outros que se sentiam incomodados com as perguntas e as colocações dos estudantes. Disciplinas que conectavam a biologia a outros conhecimentos eram as minhas favoritas.
Eu comecei minha carreira como bolsista de um programa de biogeografia do Cerrado. Depois, fiz concurso para perita do Ministério Público Federal, onde trabalhei por dois anos. Nessa época, meados da década de 1990, eu estava convencida que era necessário um engajamento na questão das políticas públicas para que conseguíssemos algum resultado em conservação da biodiversidade. Saí do Ministério Público e fui trabalhar no WWF-Brasil, em projetos ligados à implementação da Convenção da Biodiversidade no Brasil. Depois de alguns anos, fui trabalhar numa outra ONG, o Instituto Socioambiental, (ISA) onde coordenei a área de biodiversidade. Depois de uma breve volta ao WWF-Brasil, em meados da década de 2000, fui para uma terceira ONG, o IEB onde trabalhei até 2009. Em 2010, criei a Biolúdica que colocou seus primeiros jogos no mercado no final de 2011.
Além de ser fascinada pela própria biologia, hoje estou convencida da importância da participação e do engajamento do público em geral nos processos de tomada de decisão ligados à agenda de ciência e tecnologia. Nesse caminho, a popularização da ciência desempenha um papel fundamental e isso me motiva sobremaneira. Se a gente pensar nos jogos da Biolúdica, jogos de cartas com temas biológicos para crianças com mais de 7 anos, o maior desafio é o mercado, ou seja, colocar esses produtos no mercado, competindo com o que existe. Minha recomendação para aspirantes a trabalhos como o meu é que a combinação de conhecimento, criatividade e iniciativa é imbatível. Apostando nela, a chance de sucesso é significativa.
Cinquenta tons de cinza, uma abordagem evolutiva
O inegável fenômeno editorial Cinquenta tons de cinza, de E. L. James, tem batido recordes de vendas. Seu sucesso, em especial entre as mulheres, é, no entanto, previsível. Ele reflete a natureza humana com precisão. O livro é recheado do que há de mais adequado ao papel sexual feminino desde muito antes do surgimento do Homo sapiens.
Sempre me interessei por literatura erótica, descobrir um título novo me chamou a atenção logo no início. Me adiantei e baixei na Amazon a amostra grátis para Kindle, ainda em inglês. Para quem ainda está por fora, a narrativa descreve o romance entre o bilionário-poderoso-autoritário-lindo-bem sucedido-e-perturbado Christian Grey e a jovem atrapalhada e inexperiente Anastasia Steele. Desde muito cedo na trama a jovem se sente atraída pelo galã, com quem inicia um relacionamento sadomasoquista cheio de reservas, mistérios e clichês.
Não sei se diria que se trata de um livro erótico, essa foi a primeira coisa que me surpreendeu. O livro começa em ritmo de comédia romântica à la Marian Keyes sobre o interesse crescente de Anastasia e suas dúvidas sobre a reciprocidade de Grey. Li até o sétimo capítulo, terminou a amostra à qual tinha direito no Kindle e nada da ação esperada para um livro dito erótico. Fiquei entre o desapontamento e a curiosidade (o primeiro mais forte do que o segundo, claro, senão teria comprado o e-book inteiro) até pegar emprestado com uma aluna a versão traduzida, aí tive minha segunda surpresa.
Surpreendi-me em seguida porque, depois de quarenta anos de revolução sexual, esperava que um livro erótico com tanto apelo para o público feminino tivesse sintonizado com as conquistas feministas. Cinquenta tons de cinza não relata aspirações feministas. Relata, sim, aspirações femininas. De todas as fêmeas, inclusive as que eu julgo entender melhor, que são as fêmeas não-humanas.
Anastasia Steele é uma fêmea jovem e fértil, apesar de ter dúvidas sobre sua qualidade enquanto parceira reprodutiva. Ela sabe do valor de seus gametas. Ah sim, óvulos preciosos e raros. Por isso, até os 21 anos, guardou-os muito bem, não confiando a nenhum macho de sua espécie a mais remota possibilidade de aproveitar-se deles. Ana sabia que seus óvulos valiam algo mais, eles deveriam trazer benefícios a ela. Foi aí que a mocinha conheceu Christian Grey.
Christian é um macho alfa: Poderoso, bilionário e sedutor. Ao primeiro contato ela percebe que aquele macho pode lhe prover todo o valor de seus caros óvulos. Ele sim tem muito mais a trocar do que os irrisoriamente baratos espermatozoides oferecidos pelos colegas de subemprego ou de faculdade. Fêmeas de babuíno trocam seus óvulos pela proteção do macho alfa contra agressões. Fêmeas de alguns algumas aranhas trocam seus óvulos por alimento de qualidade oferecido pelo macho. Fêmeas do peixe joaninha trocam seus óvulos por um lar que o macho construiu. Anastasia Steele trocaria os seus por tudo isso!

Presente nupcial, o objeto branco no abdômen da fêmea é um alimento nutritivo dado pelo macho que, assim, aumenta suas chances de acasalar. Fonte: abc.net.au
No entanto, machos opressores não são opressores só com os outros. Essa dominação se repete na alcova. Pássaros caramanchão repetem para suas fêmeas durante a corte o mesmo tipo de movimento agressivo que usam para intimidar rivais. Tubarões brancos mordem suas parceiras para se segurar a ponto de deixar lacerações profundas no dorso. Patos imobilizam a fêmea antes de copular. Bandos de golfinhos nariz de garrafa encurralam uma fêmea e se alternam em copular com ela. Christian Grey, quando finalmente começam as passagens picantes do livro lá pela centésima página, se diverte causando dor e subjugando suas parceiras. Ok, ela adora e consente tudo no clima de envolvimento em que se encontra. Ainda assim o custo da segurança que Grey oferece a Ana é a agressão.
Igualdade entre os sexos, qual o que? A Anastasia Steele que existe em cada leitora quer o mesmo príncipe encantado de sempre: poderoso, provedor e que a admira, mesmo que a subjugue de alguma maneira. Assim como todas as fêmeas do mundo animal, as de nossa espécie também buscam o merecido valor por seus caros gametas femininos, custe o que custar. Se animais pudessem ler, Cinquenta tons de cinza venderia muito mais, porque sua narrativa vai direto ao que as fêmeas esperam dos machos em qualquer espécie.