O percevejo inseguro

 

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico.

 

– Sr. Zeus, já te expliquei que não atendo casais – Dizia a terapeuta.

– Dra. mas sou só eu que vou me consultar. Ela só precisa entrar comigo. – A Dra. sabia que era verdade, ainda que contrariada deixou-os entrar.

– Bom dia, como vão vocês hoje? – O casal de percevejos se sentou no divã, Sr. Zeus grudado à namorada.

– Estamos ótimos, não é mesmo meu bem? – A percevejinha apenas concordava com a cabeça, mas seus olhos compostos estavam fundos e ela estava magra, com um ar exausto.

– Sr. Zeus, sua namorada não é um muito jovem para o senhor? Que idade ela tem? Me parece ainda uma ninfeta de quinto ínstar! – A analista havia deixado de lado sua poltrona e ocupava uma cadeira de frente ao casal sentado no divã.

O Sr. Zeus pareceu intrigado com a pergunta. Olhou para a fêmea a seu lado como se a visse pela primeira vez.

– Claro que não! Essa daqui já está para se tornar uma mulher feita, estava na hora de arrumar um namorado e ela tem sorte de ter um homem como eu grudado ao seu pronoto. Jamais faria nada para prejudicá-la – O Sr. Zeus era todo sorriso enquanto retirava alguma secreção das costas da namorada e a levava à boca com ansiedade.

A dra. não respondeu. Limitou-se a olhar fundo dentro dos olhos do Sr. Zeus. Aquela profunda encarada parecia não acabar mais. O sorriso do percevejo foi se esvaindo, murchando, até virar uma careta e ele prosseguiu.

– Mas Dra. Isto é o melhor que podemos fazer. Todos os rapazes têm suas namoradas, não é fácil conseguir uma parceira interessante disponível. Se eu a deixo logo virá outro tomar o meu lugar, então é melhor grudar logo cedo. Além do que, somos tão apaixonados. Essa mulher me ama, não é, bem? – O aceno de cabeça da fêmea esquálida mal era perceptível.

– O senhor não vê  que está prejudicando a pobrezinha? Não larga das costas dela, fica se alimentando das secreções dela. Ela nem mocinha é ainda! – Enquanto a Dra. falava o percevejinho ia abaixando a cabeça, agora sua arrogância diminuíra proporcionalmente ao seu tamanho.

– Dra. sei que prejudico meu benzinho, mas não posso fazer nada. Há tantos machos e tão poucas fêmeas. Eles são mais fortes do que eu, ainda corro o risco de ficar sem meu bem mesmo grudando nela desse jeito. Não é minha intenção prejudicá-la. Mas tem homens muito piores do que eu, tomam a comida que suas namoradas capturam, já ouvi falar até em canibalizar as pobrezinhas! – Agora a máscara de arrogância do percevejo, que não atingia nem 70% do tamanho da parceira juvenil, havia caído e ele era só insegurança.

– E a maldade dos outros te dá o direito de ser mau também? As costas dela estão cobertas de cicatrizes e tem uma marca onde o senhor fica agarrado à coitada da moça! – A perceveja, com um sorriso nos lábios, olhava de esgueira para o namorado.

– Não, mas… Olha tenho certeza de que não a prejudico tanto quanto a Dra. está falando. Você precisava ver o estrago que meus colegas que namoram ninfas de quarto ínstar causam, essas marcas não são nada! – O percevejinho respondia, mas àquela altura desejava ter um élitro completo para se esconder atrás.

– Sr. Zeus. Já que o senhor continua negando terminamos por hoje. Tenham um bom dia e eu te vejo na próxima semana. APENAS o senhor, compreendeu? – A analista já havia aberto a porta e acompanhava o casal empurrando ligeiramente as costas do percevejo relutante.

– Mas… doutora! – Ele tentou protestar, mas a porta já estava fechada. Zeus ia embora cabisbaixo, ainda comendo da secreção da namorada.

 

Jones, T., Elgar, M., & Arnqvist, G. (2010). Extreme cost of male riding behaviour for juvenile females of the Zeus bug Animal Behaviour, 79 (1), 11-16 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.10.016

Pensamento de Segunda

“Não deve haver nenhuma barreira para a liberdade da pesquisa. Não há lugar para dogma na ciência. O cientista está livre, e deve estar livre para fazer toda pergunta, duvidar de qualquer afirmação, para procurar toda a evidência, para corrigir quaisquer erros.”
Robert Oppenheimer

Manchetes comentadas 24 – Suspeito de assassinar Glauco pode ter agido sob o efeito de chá alucinógeno

O Jornal Nacional de ontem à noite veiculou uma entrevista com o pai de Carlos Eduardo Sundfeld, o suspeito confesso do assassinato do cartunista Glauco Villas Boas e seu filho, Raoni. Na entrevista o pai de Cadu, como vem sendo chamado na mídia, afirma que o filho teve um surto psicótico que ele relaciona com o uso da ayahuasca, uma bebida ritualística e alucinógena usada pelos seguidores do Santo Daime (entre outras religiões).

psychotria  banisteriopsis

Chacrona (Psychotria viridis) e Caapi (Banisteriopsis caapi), os ingredientes do Santo Daime

Fontes: www.p-viridis.com e www.sacredearth.com

 

A ayahuasca é um preparado de dois vegetais, a folha da chacrona (Psychotria viridis, Rubiacea) e o caule macerado do cipó caapi (Banisteriopsis caapi, Malpighiacea) em água fervente. A ação deste chá provém dos princípios ativos das duas plantas. A Chacrona entra com o DMT (dimetiltriptamina), uma substância quimicamente semelhante à melatonina com alto poder alucinógeno, porém curta duração do efeito. Aparentemente é possível que o próprio corpo humano produza doses baixas e rapidamente degradadas de DMT, já que o aparato bioquímico para tal está presente, mas o órgão responsável por sua produção ainda não é conhecido. De qualquer forma, a DMT e seus metabólitos foram encontrados na urina de pacientes após surtos de esquizofrenia.

Já o caapi entra com harmalina, que atua como um inibidor da destruição dos neurotransmissores noradrenalina, serotonina e dopamina. Os impulsos nervosos (ou ondas de despolarização de membrana, para os já iniciados) não passam diretamente de um neurônio ao outro, elas são transmitidos no estreito espaço que separa dois neurônios por mensageiros químicos no processo chamado sinápse, após cumprir o papel de passar um impulso de um neurônio ao outro estes mensageiros são metabolizados, destruídos. Isso a menos que algo impeça sua degradação, algo como o princípio ativo do caapi. O resultado disso é um impulso mais persistente, principalmente no caso da harmalina que é pouco seletiva, mantendo altos os níveis de qualquer neurotransmissor em qualquer sinápse e podendo levar a uma intoxicação de neurotransmissores. Quer um resultado bacana? Junte o princípio ativo do caapi com bastante chocolate. Teremos então uma overdose de serotonina, culminando com efeitos que odem ir desde tremores e sedação até convulsões, alucinações e hemorragia cerebral. Terapeuticamente isto torna esta uma droga muito útil contra a depressão em concentrações muito bem calculadas.

quimicos ayahuasca

Estrutura dos fitoquímicos da ayahuasca e dos neurotransmissores

Figura gentilmente preparada pelo Roberto Berlinck do Química viva.

 

Nas primeiras vezes em que é consumido o chá frequentemente causa vômitos e diarréia. Bad trips também podem ocorrer com ataques de pânico, mas nos relatos de que o resultado foi conforme o esperado os usuários tiveram alucinações visuais, sinestesia, sensação de leveza e "consciência expandida". Lembro-me de um livro do J. J. Benítez em que ele relata sua experiência coma  ayahuasca. Ele conta que telefonou para casa e pediu que colocassem em seu quarto um objeto diferente sem, obviamente, contar-lhe o que seria colocado. Durante suas alucinações o escritor deixou seu corpo e foi até o quarto, a quilômetros de distância, onde viu o objeto e pode testar se o desdobramento causado pelo chá era real. Bem, ele jura que funcionou. Durante os rituais do Daime e outras seitas que usam o chá (como a União do Vegetal, a Natureza Divina e diversos cultos xamânicos indígenas) os fiéis narram ter incorporado o espírito da planta e rechaçam a denominação de alucinógeno, considerando a bebida um enteógeno, literalmente libertador da divindade interna.

Há grande probabilidade de que Carlos Eduardo Sundfeld, que segundo a entrevista já tem um histórico pessoal e farta genealogia de esquizofrenia na família, tenha experimentado um desencadeamento de um surto psicótico favorecido pela ação das substâncias presentes na bebida. Todo o quadro relatado na mídia de que o rapaz afirma ser Jesus Cristo e dizia ter uma missão divina no crime que cometeu corrobora isto. A ação de um bom psiquiatra forense e alguma perícia científica nos próximos dias irão certamente indicar se minhas previsões aqui estão corretas ou se toda essa relação com a igreja Céu de Maria na verdade foi uma grande desculpa para atenuar a pena. Mas o que de fato fica é a perda irreparável de um artista que conseguia sintetizar em três quadrinhos tanto humor de qualidade e crítica razoável.

 

glaucowww.uol.com.br/glauco

Pensamento de segunda

Meu objetivo de vida sempre foi simples: compreender todo o universo, por que ele é da forma que é e por que existe afinal.
Stephen Hawking

A Mariposa ninfomaníaca

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Naquela manhã no consultório psicanalítico

 

– Dra. não aguento mais me remoer de culpa.

– Culpa? – Disse a psicanalista.

– A verdade é que sou uma devassa, não só adoro sexo muitas e muitas vezes como meu negócio é variar sempre! Tendo a oportunidade escolho um novo rapaz a cada encontro. Não me contento com um só, não que isso seja da conta de ninguém. Mas sabe? Não deve ser certo, uma moça como eu. Esses mariposos machos. – A mariposa Ephestia kuehniella falava rápido, mal inflava suas traquéias entre uma frase e a outra.

– Mas isso não é bom, um monte de rapazes aos seus pés?

– Ah, Dra., você sabe como são os rapazes. Estão sempre à disposiçào de estar aos pés de quem lhes aceitar à cama! Para mim seria tudo muito natural se deixassem eu viver minha vida em paz. Se não ficassem me perguntando, falando por aí à boca miúda. Olha, Dra., a senhora nem imagina o que essasinhas dizem por aí, viu. Mas todos se metem tanto que acabo dando desculpas esfarrapadas.

– Desculpas esfarrapadas? – Com este novo eco Ephestia começava a procurar em qual das paredes do consultório escuro, mas aconchegante, estaria se refletindo o som.

– É. Digo que eles não largam do meu pé. Que me vencem pelo cansaço. Que dá tanto trabalho rejeitar as investidas de meus pretendentes que por fim cedo. Sabe, é isso que eu digo para as minhas amigas. As mais próximas, é claro, né. Também porque eu não fico por aí falando dessas coisas com qualquer uma. Já me bastam todas as que cuidam da minha vida sem eu precisar dar satisfações.

– Mas não é verdade. – A voz da Dra. deixou em suspenso se aquilo fora uma pergunta ou uma afirmação.

– É. Não. Mais ou menos. Olha, eles são sim insistentes, mas eu sei dizer “não” quando quero. Na verdade eu gosto do esporte, Dra.  Me diga, eu sou normal?

– Por que você quer ser normal? Você se acha normal?

– Não! Nem um pouco. – Disse a mariposa com as antenas mais pinadas do que de costume.

– O que você acha que as outras meninas da sua espécie fazem em relação aos rapazes? – A analista se retraiu um pouco mais à sombra da luminária alta para a mariposa se sentir mais a sós.

– Não sei, ué. Isso não é coisa que se fique falando por aí. Você acha que elas também fazem… isso!?

– Olha, aqui no consultório passa muita gente, você sabe. Temos a ética profissional, mas acho que poderia lhe falar sobre alguns casos. Este hábito é muito comum para muitas fêmeas. Para algumas aranhas, por exemplo, variar de namorado significa ganhar mais alimento, na forma de presentes. Para as chimpanzés, significa que seus filhos serão melhor tolerados no bando. E, esquecendo as suas desculpas esfarrapadas, por que você procura novos amantes?

– Ai Dra., para te falar a verdade, não tem um só rapaz que eu diga: “esse é o tal”, parece que serei eternamente uma aventureira em busca de diversidade. Ora, quem garante que o primeiro amante que for para meus lençóis será o príncipe encantado, aquele sem nenhuma doencinha familiar esperando há gerações para se manifestar justo nos meus filhos? Na verdade, isso que minhas colegas intrigueiras chamam de safadeza é como aumento a chance de sucesso dos meus filhos. Olha só, na semana passada um dos rapazes com quem saí era um verdadeiro gênio, o outro era o macho mais sarado e atlético que já vi, corpo de jogador de volei, o último por ter um rostinho de comercial de barbeador e lindos olhos compostos azuis. Convenhamos, achar um só com tudo de bom assim está difícil hoje em dia, né.

– E essa diversidade de tipos não é a diversidade genética que faria seus descendentes tão saudáveis, sua prole tão garantida? – Perguntou a Dra.

– Diversidade o que, Dra.? Perguntou a mariposa franzindo o escutelo.

– Nada não, teorias. Apenas teorias. Prossiga.

– Então, tenho mais é que diversificar, menina. Me  distrair. Assim aumento as chances dos meus pimpolhos se darem bem na vida também, podendo nascer geniais, lindos ou fortões. Não sou interesseira, sou uma amante do amor livre de verdade. Só o que busco é diversidade. E que me deixem em paz!

– Pois deixe de se preocupar com as más línguas e vá curtir teus instintos. Nosso tempo acabou.

 

Xu, J., & Wang, Q. (2009). A polyandrous female moth discriminates against previous mates to gain genetic diversity Animal Behaviour, 78 (6), 1309-1315 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.09.028

O peixe que enrubesce

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Naquela manhã no consultório psicanalítico…

 

– Dra., sou um peixe muito tímido, não gosto de ficar nadando por aí aos cardumes. Meu negócio é o meu território, quieto e reservado. – Disse o peixinho que atendia pelo nome de Apistogramma hippolytae com seus olhos escuros e uma longa linha preta desde a cabeça até uma pinta na cauda.

– E isso te incomoda? – A voz era doce, mas vinha de algum ponto invisível, ligeiramente escuro atrás do divã.

– Não, de forma alguma. O que me incomoda é que vivem a me tirar sarro porque meus colegas de igarapé dizem que sou um transparente!

– Transparente? – Ecoou a analista.

– Não é que eu seja de fato transparente, antes o fosse. É justo o contrário! Sou transparente nas emoções, só de me olhar qualquer um já sabe o que se passa na minha alma. Se estou com preguiça todo mundo sabe, se me interesso por uma garota ou fico bravo com alguém já me dizem que está na cara.

– Entendo – prosseguiu a voz – Você é transparente porque é colorido.

– Isso! Quer dizer, não. Ah, Dra. não queria me expor tanto. Mas o que posso fazer? – Agora o peixinho, visivelmente irritado, tinha os olhos claros e listras verticais meio azuladas.

– E porque você muda de cor então? – disse a Dra. com sua voz mais suave.

– Ora, não mudo de propósito, simplesmente não posso fazer nada. É como se eu precisasse sair por aí alardeando meus sentimentos. Eu suponho que deixar claro para os outros o que sinto pode me ser útil de vez em quando.

– Como assim?

– Bom, se entro em um debate com outro peixe e de repente começo a me irritar, mudo de cor e ele logo percebe. Aí, se não quiser briga, ele pode parar de me encher e evitar levar umas bolachas. Assim ninguém se machuca, né. – disse o peixe, agora novamente mais pálido.

– E você é o único a mudar de cor? – Perguntou a Dra.

– Não, na verdade, sabe que adoro quando estou com uma garota e percebo que ela está toda listradinha de amor, piscando para mim seus olhinhos escuros. Me faz ter mais confiança de que o meu xaveco está colando. – O peixinho agora sorria com uma tonalidade amarelada com uma pinta na cauda, os olhos escuros continuados até o queixo em uma linha.

– Então essa história de mudar de cor não é assim tão ruim? – Perguntou também com um sorriso sensual a Dra.

– É, acho que não. Obrigado, Dra.

 

Rodrigues, R., Carvalho, L., Zuanon, J., & Del-Claro, K. (2009). Color changing and behavioral context in the Amazonian Dwarf Cichlid Apistogramma hippolytae (Perciformes) Neotropical Ichthyology, 7 (4) DOI: 10.1590/S1679-62252009000400013

 

peixe enrubesce

Tudo bem, enrubescer era só uma metáfora

Fonte: http://www.scielo.br/pdf/ni/v7n4/a13v7n4.pdf

Nova série de Posts

Esta semana o Ciência à Bessa inaugura uma nova série de posts. Ela é uma homenagem à Bióloga e excelente divulgadora científica Olivia Judson, ex-aluna de Bill Hamilton e colunista do New York Times. Olivia Judson escreveu em 2004 o “Consultório da Dra. Tatiana para toda a criação”, excelente livro. Também referenciarei todos os posts através do research blogging, já que esta série pretende ser uma revisão do que tem saído de mais novo em etologia, principalmente na Animal Behaviour.

Pensamento de segunda

Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
Arthur C. Clarke

Entrevista com John Alcock

Enfim esse post que eu estava devendo desde o encontro de etologia em Novembro do ano passado. Espero que vocês apreciem a simpatia desta personalidade da etologia. Meus agradecimentos especiais à camera-woman de emergência, Lucélia Nobre Carvalho.

 

 

Ciência à Bessa – Prof. Alcock, obrigado por esta oportunidade ótima de se dispor a conversar conosco, assim como por vir produzindo este livro texto maravilhoso há tantos anos e que vem inspirando tantas gerações de etólogos pelo mundo. Então vamos começar perguntando o que te fez escrever este livro? O que te levou a deixar de lado um pouco do seu trabalho no laboratório e investir tanto esforço em um livro para estudantes? E quanto você acha que este livro contribuiu para o ensino da etologia?

John Alcock – Antes de qualquer coisa, eu gostaria de agradecer o seu interesse em traduzir meu livro e o esforço em me trazer para participar deste evento grande e bem sucedido. A respeito da produção do livro, eu vinha ensinando em um curso de comportamento animal, entre outras coisas, e os únicos livros-texto disponíveis para nós eram livros sobre etologia clássica, que não traziam em seu conteúdo os conceitos mais novos da ecologia comportamental. Então, para oferecer aos meus estudantes este material mais novo eu decidi escrever o livro-texto. Naquele momento eu não fazia idéia de quanto trabalho daria, mas à medida que eu trabalhava percebi que se você escrever algumas páginas por dia, eventualmente o trabalho fica pronto. E foi um grande sucesso! O livro foi usado por meus alunos e muitos outros. Na mesma época outro título muito bom foi produzido, de qualquer forma nossos dois livros lançados em 1975 foram os dois primeiros livros a apresentarem o conteúdo novo da ecologia comportamental aos estudantes. Então, olhando para trás, a importância desse trabalho, independente do trabalho que deu, hoje me parece bastante óbvia.

CAB – Bom, outra coisa sobre a qual você escreveu, além do Comportamento Animal: uma abordagem evolutiva, foi sobre sociobiologia. Quanto tempo faz mesmo que você escreveu?

JA – Eu não me lembro direito, acho que foi em 2003, por aí. Já faz alguns anos que escrevi esse livro.

CAB – Pelo que você acha que a sociobiologia tem passado ultimamente? Quer dizer, as pessoas têm muito interesse nesta área. Será que elas também estão mais tolerantes com a idéia da sociobiologia, o público em geral, digo?

JA – Acho que ainda há resistência entre o público geral e os cientistas sociais sobre as idéias da sociobiologia. Mas são umas idéias meio batidas que foram emprestadas dos críticos da sociobiologia que eram muito veementes no começo deste campo. Veementes, mas incorretos. Então eu escrevi meu livro para tentar, junto com muitos outros, defender a sociobiologia. Eu honestamente acho que, apesar de ser menos discutida nos dias de hoje, ela está sempre em pauta atualmente na forma da ecologia comportamental. Então, todas as pessoas que tem usado os princípios da teoria evolutiva para estudar o comportamento social, que originalmente se intitulavam sociobiólogos, atualmente continuam usando os princípios da teoria evolutiva para estudar o comportamento e se chamam de ecólogos comportamentais. Então o campo de estudo floresceu!

CAB – Um outro termo que foi muito criticado, embora seja uma constante no seu livro, é o programa adaptacionista. Qual parte da teoria evolutiva não é adaptacionista? Já que tudo o que tem inspirado as idéias sobre evolução são adaptações.

JA – Bem, eu acho que tudo na teoria evolutiva, como Darwin nos explicou de forma muito astuta e precisa, é o programa adaptacionista tentando explicar como adaptações complexas e altamente funcionais surgiram. E as afirmações de Darwin, baseadas na teoria evolutiva, eram de serem produtos da seleção natural. Mas havia este outro componente da teoria evolutiva de Darwin que era a descendência com modificação no qual ele argumentava que, ao compreender o histórico de características que encontramos hoje em termos de uma cadeia de pequenas modificações ligando o que havia no passado com o que há no presente. Isto de certa forma é a responsável pelas coisas serem como são. Então eu sinto que a teoria darwinista é de fato dividida em duas partes. Uma parte é adaptacionista e a outra parte é a história evolutiva. É claro que elas estão correlacionadas, mas o programa adaptacionista é a abordagem fundamental baseada na teoria da evolução por seleção natural. Os adaptacionistas são os verdadeiros darwinistas!

CAB – O que te chamou tanto a atenção para o comportamento animal? Por que estudar comportamento?

JA – Hum, eu sou um biólogo essencialmente de campo. Eu comecei minha carreira no campo fazendo observação de aves, eu adoro observação de aves. Então eu comuniquei meus amigos em uma idade bem tenra de que eu seria um observador de aves profissional. De fato eu conheço vários etólogos que muito cedo decidiram que observação de aves, ou algo do gênero, seria a profissão deles…

CAB – Pode me incluir nessa lista, mas com observação de peixes.

JA – Ok, Observação de peixes, observação de aves, o que quer que seja, observação de morcegos. O que quer que tenha levado as pessoas para o campo e tenha lhes dado contato com os animais é muito gratificante, mesmo que para uma minoria. Então, assim que eu descobri que havia uma maneira de me tornar um observador de aves profissional, sim, porque meus primeiros trabalhos foram feitos sobre aves. Assim que eu descobri isso eu me dediquei a tornar-me um professor em comportamento animal.

CAB – Muito obrigado pela atenção.

JA – Obrigado, Eduardo.

 

Alcock e Bessa

Eduardo Bessa de mediador e o tradutor Max em excelente companhia, Bill Hamilton (no slide) e John Alcock

Diário de Viagem – 4 de março, terremoto no Chile

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Chegamos no aeroporto e enquanto esperava a bagagem na esteira me chegavam apressadamente as notícias do grande terremoto através de um funcionário. Em Concepción não se via uma casa em pé, setenta aldeias haviam sido destruídas e uma onda gigante havia varrido as ruínas da cidade. Logo o boato tornou-se real com provas em abundância, toda a costa estava coberta de móveis, destroços flutuantes, eletrodomésticos, como se as Casas Bahia houvessem sido abduzidas por alienígenas e depois disppersas na praia. O comércio também perecia, sendo saqueado e arrombado, nas ruas jaziam sacos de mantimentos rasgados, mercadorias valiosas no chão. Passeando próximo à orla percebi fragmentos de rochedos onde estavam aderidos seres de mais de 1,80 m que certamente haviam emergido das profundezas.

A própria ilha que eu olhava agora havia sido consideravelmente encolhida pela terrível força do terremoto, a praia devorada pela imensa onda resultante. Formavam-se fendas no sentido Norte-Sul que atingiam 1 m de largura. Enormes massas de terra já haviam desmoronado sobre a praia e os habitantes estavam certos de que assim que chovesse massas ainda maiores desmoronariam. Mais impressionante ainda era a quantidade de fraturas em rochas extremamente duras, elas deveriam ser restritas à camada mais superficial ou neste momento em todo o Chile não restaria uma rocha inteira. Tenho certeza que este tremor de alguns instantes foi mais responsável pela diminuição da ilha de Quiriquina do que séculos de erosão pela água e pelo tempo.

No dia seguinte tomei uma van para Telcahuano e Concepción. As duas cidades apresentavam o espetáculo mais horrível e, ainda assim, o mais interessante que meu espírito naturalista poderia conceber. Os escombros estavam na mais completa confusão e era difícil acreditar que outrora aquele fosse um local habitável. Caso o terremoto tivesse ocorrido à noite, e não às 16 h, em lugar de menos de mil, haveria morrido a maior parte da população, salvou muitos o gesto instintivo de sair à rua ao primeiro sinal de tremor. Em Concepción enxergava-se fileiras do que antes foram casas, mas em Telcahuano, devido à onda, nada mais se enxerga do que um tapete de telhas e tijolos. O primeiro abalo foi logo o mais drástico, o funcionário do aeroporto que veio conversar comigo reportava que a primeira coisa que lhe ocorreu após o início do terremoto foi ver a si e sua moto derrubados imediatamente no asfalto. Levantava-se apenas para ser novamente atirado ao chão. Foi o pior terremoto que o Chile jamais registrou, e inúmeros tremores menores se seguiram ao principal, somaram-se 300 de diferentes magnitudes e em diferentes locais nos dias subsequentes.chile2

O tsunami me foi descrito como uma linha de até 6 km de comprimento e até 7 m de altura que varreram as praias arrancando tudo à sua frente. Um carro forte de 4 toneladas foi arrastado por 5 m e diversos barcos do atracadouro foram parar no seco. No entanto, a onda deve ter avançado lentamente, já que muitos habitantes fugiram dela a pé para as áreas mais altas da cidade. Era possível identificar a direçào de onde haviam vindo as vibrações pelas paredes que haviam ruído ou ficado de pé e pelas estantes que haviam perdido seu conteúdo ou não.

A Ilha de Santa Maria, que se localiza mais ou menos sobre o centro dos abalos, está agora situada cerca de três vezes acima do resto do litoral que a cercava. O efeito mais surpreendente do terremoto foi este, a elevação do terreno entre 60 e 90 cm. Quem sabe esse não seja um efeito, mas a causa do terremoto. Na Ilha de Santa Maria, por exemplo, a marca da maré foi parcialmente apagada pelo tsunami, mas habitantes locais podiam me jurar que a rocha costeira estava elevada. Mais relevante do que isso foi que conchas que só existem na linha d’água, conchas de fato muito semelhantes a outras encontradas fossilizadas em picos a 3900 m nos Andes, foram encontradas após os tremores a 3 m da linha d’água pelo Capitão Fitzroy, Aparentemente pequenas alterações acumuladas por intervalos longos de tempo podem resultar em mudanças dramáticas na paisagem.

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Tradução poetica e livremente alterada dos diários de Charles Darwin a bordo do Beagle, a 4 de março de 1835, mas bem que poderia ter sido escrito dia 4 de março de 2010 por alguém visitando exatamente a mesma região.

Crédito das imagens: www.lanacion.cl e www.cepresperu.org