Paleontologia emocional
“…perfume que as senhoras de idade deixam nos elevadores, tão espesso que se pode cortar com uma faca e no qual se adivinham latas de biscoitos vazias, retratos de majores defuntos, colares de pérolas falsas, vestígios que, somados, e da mesma forma que a partir de um ossinho se consegue imaginar o esqueleto inteiro de um animal extinto, permitem reconstituir dinossauros de desilusão.”
António Lobo Antunes, “Terceiro Livro de Crónicas” (2006)
E eu que pensava que os artistas não percebiam a Paleontologia…
Divulgar Ciência
Hoje tive uma manhã diferente.
Não porque o que fiz seja raro.
Não é.
É frequente e comum.
O invulgar é fazê-lo para a faixa etária para a qual o fiz. 7 anos.
Os colegas biólogos, geólogos, químicos ou físicos perdoar-me-ão mas parto em vantagem.
Falar de e sobre dinossáurios, bem como de assuntos relacionados, é fácil.
Ou melhor, partimos em vantagem.
Porque as crianças bebem tudo o que dizemos.
Querem saber o como. O quem. O porquê.
Enfim, curiosidade na sua forma mais pura e elementar.
Mas falar e mostrar o que faço, porque tenho a mim apontado essa curiosidade bruta é igualmente penoso.
Porque a curiosidade não perdoa. Não tem contemplações. Não cede.
É fria, de tão pura.
Apenas quer saber.
Assim é a Ciência.
E deixou-me feliz.
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Destapar a poesia das coisas
Como (quase) todos os dias começo por me deleitar com as palavras e histórias do Fernando Alves no “Sinais” na TSF.
O Fernando tem o que é imprescindível a qualquer cientista – a curiosidade e o poder da observação.
Alia essas características ao dom de manejar as palavras numa teia que prende e vicia, conduzindo-nos a ela por voz reconhecível.
Quando uma vez quis falar comigo, por motivos profissionais, fiquei mais nervoso do que em muitos congressos.
Mas acabei por fazê-lo.
Hoje, uma vez mais, o destapar a poesia das coisas como só ele o faz.
(fotos – REUTERS/Stringer; site TSF)
Os Ossos do meu Ofício
Ao longo dos últimos anos parte do meu trabalho tem consistido em estudar as colecções de dinossáurios em diversos Museus de História Natural de vários países e continentes a fim de compreender a evolução daqueles animais.
Os objectos de estudo são assim ossos fossilizados que têm que ser observados, medidos, estudados, mexidos e remexidos.
Percorri uma parte substancial da China, desde Pequim às províncias de Chengdu e Yunnan. Neste última estive em Lufeng, uma pequeníssima cidade, para os standards chineses, com o objectivo de estudar os famosos exemplares do Triásico superior (há cerca de 200 milhões de anos).
As condições de trabalho não eram os habituais de forma que acabei digitalizar os exemplares em cima de uma mesa de pingue-pongue. Apesar do carácter pouco ortodoxo do equipamento, a estrutura funcionava tão bem como a melhor mesa de trabalho do Museu de História Natural de Nova Iorque!
Lá se foi a minha idealização da curiosidade científica da classe trabalhadora…
No início deste ano estive a estudar e digitalizar as colecções de dinossáurios do Museu de História Natural de Londres (MHNL).
Entre os exemplares estudados contavam-se alguns saurópodes procedentes das jazidas de Tendaguru, na actual Tanzânia. Já havia estudado parte destas colecções no Museu de História Natural de Berlim – o mais famoso representante daqueles dinossáurios é o Brachiosaurus, cujo úmero (osso que vai do obro ao cotovelo) tem mais de dois metros!
Foram os alemães nos anos 20 do séc. XX, em especial expedições lideradas por Janensch, os principais exploradores das jazidas da Tanzânia. Mas igualmente os ingleses, sensivelmente na mesma época, fizeram expedições paleontológicas naquela área.
Encontrava-me a preparar o digitalizador 3D para enfrentar um fémur de um Dicraeosaurus, na cave do Museu, quando entra a responsável (curadora) pelas colecções de répteis do museu londrino.
Para além do rotineiro discurso sobre as localizações e características do material diz-me:
“Os ossos para além de muito grandes são também radioactivos!”
Reparo agora que tinha entrado pelas colecções de contador Geiger na mão!
Esperava ver quase tudo menos um contador de radioactividade.
“Agora põe estas luvinhas para manusear o material.”
Já estava eu agarrado literalmente ao osso quando a curadora me repete “Tem que pôr as luvas!”
Calma, disse de mim para mim.
“Madam, eu fumo mais de dois maços de tabaco, não sou abstémico nem vegetariano, estive dois meses na China e em Berlim trabalhei com o mesmo tipo de ossos, vivo em Portugal e respectiva crise económica…acha que é este mísero osso em que vou trabalhar na próxima meia-hora que me vai matar?!!?”
Senti uma pequena alteração comportamental na sua habitual calma, mas nada de especial. Que nos outros museus ela não tem nada com isso mas que ali são as normas, disse-me ela.
“Então já que tenho que usar as luvas ao menos quero ver esse brinquedo do meu imaginário funcionar! Pode ser?!”
Suspiro (dela, claro).
Baixa-se, começa a medir o fémur, e tudo abaixo do nível recomendado pelos britânicos (já de si ridiculamente baixos, citando um paleontólogo amigo, “tem mais radioactividade um pacote de amendoins…”).
“Muito bem…então agora meça-me a mim!”, disse-lhe, do alto da minha chica-espertice.
A fleuma britânica viu-se neste momento pois pressenti que por dentro do seu ar esfíngico pensava:
“Mas porque raio o comité científico atribuiu uma bolsa a este tipo?”
Começa a medir-me e, das duas uma, ou estou carregadinho de radiação ou os ossos são tão radioactivos como um esquilo siberiano a comer um chupa-chups!
“Minha senhora, o meu caso está encerrado. Posso trabalhar e tirar as luvas?”
E assim fiz.
Obviamente que não critico, antes pelo contrário apoio, as medidas de segurança adoptadas no NHML.
Neste momento penso que não deveria ter tido aquela atitude mas por vezes acho que os meus ossos são mais fortes que o meu ofício.
Espero.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 26/4/2007)
Imagens: Luís Azevedo Rodrigues
Todos os Nomes*
Nomear e classificar são actos intrinsecamente humanos. Chamamos as coisas pelos nomes para as discriminar, mas esse acto acrescenta algo mais do que a mera nomeação da coisa.
“Não me chames nomes!”, dizia-me um colega de escola para não ser ofendido; “Isso não se diz!”, corrigia a minha mãe quando eu apelidava, com várias intenções, alguém de quem não gostava.
A classificação dos seres vivos, quer actuais quer os do registo fóssil, obedece a regras precisas com o objectivo de não gerar equívocos e mal-entendidos na comunicação científica.
Utilizando várias fontes online, todas baseadas na “bíblia” da nomenclatura dos animais – o ICZN (International Code of Zoological Nomenclature), dediquei algum tempo à pesquisa de nomes inusitados com que alguns animais têm sido nomeados.
Não poderia deixar de começar com uma personagem fóssil que tem estado ligada à minha vida profissional – o Apatosaurus louisae. Este dinossáurio saurópode americano foi dos primeiros a ser descoberto e montado numa exposição, nos finais do séc. XIX. O mecenas das escavações e trabalho científico, Andrew Carnegie, tinha como esposa a senhora Louise, sendo esta a musa inspiradora para o nome do grande animal.
Mas a homenagem dos paleontólogos não se ficou pela patroa; também o senhor Carnegie teve direito ao seu quinhão – Diplodocus carnegii – outro saurópode, sendo assim apelidado para preservar o nome do chefe. Não morder a mão que nos alimenta e abençoar o seu nome devia ser a moral da história…
Ainda no mundo dos dinossáurios de referir o Masiakasaurus knopfleri, um carnívoro descoberto em Madagáscar. A história do baptismo é conhecida mas foi-me contada na primeira pessoa por um dos autores, Catherine Foster. Justificou-me ela que ouviam a música dos Dire Straits, cujo vocalista é Mark Knopfler, quando descobriram o sáurio. Espero estar ouvir Amália da próxima vez que estiver a escavar, pensei eu na altura. E não é que existem pelo menos 13 animais com o nome “amalia”, entre aves, moluscos e insectos?
Outro dos ícones portugueses, o Pantera Negra, entra no nome científico de dois animais – Libellula eusebioi (uma libélula fóssil) e um ácaro das Filipinas, Dolicheremaeus eusebioi.
Aproxima-se o importuno Dia dos Namorados mas nada como relembrarmos o Bela eva, um gastrópode de Moçambique. Que nome bonito e adequado para a nossa cara-metade. Bem, a menos que ela seja uma malacologista – estudiosa de gastrópodes e bivalves – pois nesse caso não achará grande originalidade ao nosso piropo conjugal. Mas podemos sempre atirar-lhe com Amoraster – ouriço-do-mar do Miocénico da Austrália. Quem feio escuta, bonito lhe parece, pelo menos nesta situação.
Há 470 milhões de anos, quando fossilizou, o equinoderme primitivo Delgadocrinus oportovinum mal imaginava que teria o seu baptismo científico associado ao produto agrícola mais famoso de Portugal – o Vinho do Porto. Pois foi isto que a equipa liderada por um paleontólogo da UTAD fez; a justificação para a designação da nova espécie assenta na sua morfologia já que esta faz lembrar um cálice do néctar duriense, sendo a primeira parte do nome uma “vénia” ao geólogo Nery Delgado, responsável pelas primeiras recolhas de material.
Se os paleontólogos puderem ter algum apoio do sector vinícola, é ouro sobre…um Porto de Honra!
” ****, seu **** “, são nomes que não posso repetir e que apelidam o senhor do apito que corre de calções, com outros senhores que pontapeiam uma bola; mas quando “joga” o Taedia benfica – insecto pertencente à família Miridae e descrita por cientistas brasileiros, não me parece que haja muitos protestos, salvo se estivermos para os lados das Antas ou Alvalade.
O prémio para nome contraditório poderia perfeitamente ser atribuído à Boa canina – um réptil da ordem Serpentes; esta besta, que mata por estrangulamento, de boa não tem nada, pelo menos para as suas vítimas; e de canino, talvez apenas a fidelidade ao seus instintos.
Já o Turanogryllus mau – um grilo africano – pode invocar que tem a reputação manchada pelo nome científico que lhe calhou na rifa…
O mundo da Internet já serviu igualmente de inspiração ao “negócio” de alcunhar animais. A Proceratium google é uma formiga de Madagáscar, descrita em 2005 e, justificam os investigadores, tem a particularidade de saber procurar muito bem as suas presas, tal como o seu homónimo informático.
A lista de nomes é imensa, mas finalizo com Libellago finalis – uma libelinha.
Assim, acho que ainda tenho tempo para agarrar La cerveza – uma traça norte-americana.
*Uma sincera homenagem à obra homónima de José Saramago.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 15/2/2007)
Mãe-galinha – o outro lado dos dinossáurios
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 12/01/2006)
Um destes dias conversava com uma amiga. Contava-me ela os seus problemas com a filha, das normais discussões e do seu mais que inquestionável amor maternal. “Porque eu sempre fui uma mãe-galinha e estas discussões custam-me tanto!”.
Sorri. Quem não teve discussões com os pais e quantas vezes não se ouviu esta expressão: é uma Mãe-galinha!
Esta expressão portuguesa resume um conjunto de comportamentos, a maioria racionais mas alguns perfeitamente irracionais, de afecto, protecção, conselho e sobretudo de muito amor.
Por defeito profissional, e depois desta conversa, não pude deixar de pensar nesta expressão, comum aos comportamentos humanos e aos dos seres que investigo – os dinossáurios.
As galinhas são aves. Como aves e, ao abrigo das mais actuais teorias evolutivas, são os actuais descendentes dos dinossáurios.
A tradicional visão dos dinossáurios, animais terríveis, enormes e desprovidos de qualquer comportamento maternal, contraria qualquer relacionamento com os comportamentos de uma mãe-galinha!
Tal não é verdade e podem ser apontados dois ou três exemplos que a paleontologia tem estudado e que vêm corroborar aquela expressão portuguesa.
Nos anos 70 do século passado, mais concretamente em 1978, o paleontólogo “Jack” Horner (conselheiro científico de Steven Spielberg no filme Jurassic Park) entrou numa loja de minerais no estado americano de Montana. O seu espanto foi imenso quando “deu de caras” com um esqueleto de um dinossáurio bebé. Após questionar os donos da loja onde tinha sido descoberto aquele fóssil, estes explicaram-lhe que o tinham feito numa área chamada “Egg Mountain” (montanha dos ovos). Disseram-lhe ainda que esta era uma zona rica em ossos de dinossáurios juvenis bem como de ovos – agora fazia sentido o nome da montanha.
Horner, após campanhas de prospecção e escavação no local, descobriu cerca de onze esqueletos de dinossáurios bebés, de um grupo de dinossáurios herbívoros chamados bicos-de-pato, os hadrossáurios. Os juvenis tinham cerca de 1m de comprimento. Na proximidade dos restos ósseos descobriu uma série de estruturas que veio a constatar serem de ninhos. As estruturas circulares tinham 2m de diâmetro e cerca de 70 cm de profundidade no centro estando a área coberta por pequenas cascas de ovos, em sedimentos do Cretácico superior (há cerca de 75 milhões de anos).
“Jack” Horner reconheceu um padrão no posicionamento e distribuição dos ninhos – tinha descoberto uma colónia de dinossáurios!
A MATERNIDADE NOS DINOSSÁURIOS
Até essa época pensava-se que os dinossáurios colocavam os seus ovos e os abandonavam de seguida, tendo as crias que sobreviver sozinhas. Com esta descoberta constatou-se que afinal os dinossáurios apresentavam um comportamento semelhante ao das aves e crocodilos – elaboravam construções onde as crias eram alimentadas e protegidas até terem atingido um determinado grau de desenvolvimento, ou seja construíam “ninhos”. Provas paleontológicas da alimentação dos juvenis são, por exemplo, fósseis de plantas regurgitadas encontrados nas imediações dos ninhos.
Horner baptizou esta espécie de dinossáurio de Maiasaura (Maia – boa mãe + sáuria – réptil) ou seja o dinossáurio boa-mãe! Estes dinossáurios atingiriam (quando adultos) cerca de 7m de comprimento
Tal como as aves altriciais (aquelas que precisam da protecção e alimentação parental até determinado grau de desenvolvimento) também os juvenis de Maiasaura (e outro dinossáurios entretanto descobertos) precisariam destes cuidados.
Mesmo não sabendo muito de paleontologia e evolução, a cultura popular portuguesa não deixa de ter razão quando uma mãe é extremosa nos seus cuidados, tal como os dinossáurios – é uma mãe-galinha!
E ainda bem!
Mundial de Futebol – cangurus, coalas e extinções?
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 10/06/2006)
O Campeonato do Mundo de futebol que se avizinha será um palco de intensos combates. Ao longo de Junho e parte de Julho assistiremos a confrontos entre intervenientes que terão o mesmo objectivo e jogarão com as mesmas regras.
Dos confrontos que se avizinham sairão sobreviventes e extintos; adaptados e inadaptados; momentos de sorte e azar; e, sobretudo, intervenientes que lograrão atingirem os seus objectivos e outros…que nem por isso.
Acima de tudo será um período em que tudo se decidirá e nada ficará como dantes.
O acontecimento que é o Mundial de futebol, pode apresentar algumas analogias, umas mais lineares que outras, com um dos processos fundamentais na História da Terra e dos seres vivos – a Evolução.
Encarando cada selecção como um organismo perceber-se-á que poderemos corresponder os jogadores aos órgãos ou estruturas dos organismos. Cada jogador é especializado numa determinada função e, no Mundial, teremos os melhores para um papel específico em campo – ou talvez não, já sei que falta o Quaresma…
Assumindo esta comparação poderemos então entrar neste momento “evolutivo” que é o Mundial.
“Mundiais” na História da Terra?
Existem momentos na História da Vida na Terra em que se alteram as condicionantes do meio ambiente (alterações climáticas; vulcanismo; impacto de objectos extraterrestres; etc.) ou mesmo as relações estabelecidas entre os próprios seres vivos.
Genericamente esses momentos conduzem a extinções que, em maior ou menor grau, conduzirão ao desaparecimento de espécies animais e vegetais. Para além do efeito directo sobre aquelas que desaparecem, existe igualmente um efeito sobre as que ficam – podem explorar e ocupar mais nichos ecológicos, inclusive os daquelas que foram extintas.
Um destes exemplos foi o que se passou no final do Cretácico com a extinção de muitas espécies, entre as quais os famosos dinossáurios (pelo menos os não-avianos).
Da mesma forma as equipas de futebol, em especial em momentos como o Mundial, também sofrem pressões do seu meio envolvente – desgaste físico; desgaste psicológico; lesões – e terão que gerir as tensões com as suas “armas” – capacidade técnica; rigor táctico; capacidade de se adaptar ao adversário.
Apesar de tecnicamente muito dotadas (por ex. o Brasil), tecnicamente disciplinadas (por ex. a Alemanha) e mentalmente fortes (aqui é mais difícil…), algumas selecções apresentam, por isso, um tipo de jogo muito especializado, por vezes sem capacidade de adaptação ao adversário e/ou às condições ambientes (apoio dos adeptos; temperatura; pressão dos media).
Normalmente estas equipas saem derrotadas em fases de eliminação pois não têm tempo ou engenho para se adaptarem, para corrigirem o que estava menos bem.
Na História Natural existem equivalentes.
A maioria das pessoas já ouviu falar, pelo menos uma vez, em marsupiais – por exemplo o canguru e o coala.
Este grupo de mamíferos, distingue-se, dos mamíferos placentários, de que nós humanos fazemos parte, por os seus descendentes se desenvolverem externamente, numa bolsa da fêmea – o marsúpio.
Os marsupiais surgiram no mesmo momento em que os mamíferos placentários, competindo com estes por nichos ecológicos semelhantes.
A América do Sul apresentou uma fauna variada e diversificada de marsupiais até ao instante geológico em que o Istmo do Panamá se formou – há cerca de 3 milhões de anos, no Pliocénico.
Esta estrutura geográfica permitiu que os mamíferos placentários do norte, até aí isolados dos “primos” meridionais, migrassem para sul. Deste confronto evolutivo ganharam em larga maioria os placentários tendo a maioria dos marsupiais existentes na América do Sul sido extinta – hoje em dia a larga maioria dos marsupiais existentes é proveniente da Austrália, que funcionou como refúgio para este grupo de animais.
Apesar de altamente especializados, os marsupiais não estavam preparados para o “combate evolutivo” com os placentários do norte.
Da forma semelhante, algumas selecções apresentam um “fio” de jogo bonito, tecnicamente muito desenvolvido mas sem capacidade adaptativa para confrontos com equipas tecnicamente menos desenvolvidas. Umas conseguem adaptar-se e superar o adversário. Outras e por diversos motivos não o conseguem.
Há quatro anos atrás encontrava-me em Madrid quando decorreu o jogo EUA-Portugal. A nossa selecção era tecnicamente mais forte; éramos favoritos. Mas tal como os marsupiais do sul, Portugal foi incapaz de se adaptar à mudança; perdemos porque fomos mais fracos fisicamente; porque menosprezámos o adversário; porque, enfim, não fomos capazes de nos adaptar ao “ambiente”.
Esperemos que a espécie “Selecção”, neste Mundial, consiga superar o momento de intensa pressão “evolutiva” a que estará sujeita, e que, após a “extinção” que se avizinha, possa transmitir a sua herança aos descendentes…
Referências: Erwin, D.H. 2001 Lessons from the past: Biotic recoveries from mass extinctions. PNAS vol. 98 no. 10 5399-5403
Imagens – Veer
Grand Canyon e a Arte
É lugar comum em conversas de café discutir-se pintura, música, literatura ou história. Normalmente emitem-se opiniões e confrontam-se gostos. Digladiam-se conhecimentos mais ou menos fundamentados sobre vários campos do conhecimento.
Normalmente não se confundem tendências artísticas nem épocas históricas; arrumam-se os vários artistas nos movimentos e séculos respectivos.
Beethoven foi influenciado na sua produção artística pelo papel histórico e social de Napoleão Bonaparte e não por Átila, o Huno.
Picasso apesar de o poder ter feito (como seria?) não pintou o tecto da Capela Sistina.
Os Medici não patrocinaram a obra literária de Samuel Beckett.
Estes exemplos, que roçam o absurdo, servem apenas para ilustrar que, e bem, a literacia artística e histórica têm um papel nos acto sociais que não tem a literacia científica.
É socialmente reprovado se alguém comete um dos deslizes atrás mencionados; mas um deslize equivalente é desculpável se esse mesmo alguém afirmar que no Marão existem pegadas de dinossáurio, que o Jurássico é um título de um filme ou que nós somos o píncaro da Evolução.
As obras de arte exercem em nós o despertar de emoções mas queremos sempre complementá-las com um background de conhecimento (quem fez, quando fez, etc.). As duas componentes completam-se, permitindo desfrutar de uma forma mais completa aquilo que foi produzido. Ou não, dirão alguns puristas…
Duas realidades – obra de Arte vs Paisagem Natural – como ponto de partida para sublinhar que a Cultura Científica, em geral, e a História Natural, em particular, não têm na população uma tão forte influência como outra áreas do conhecimento.
Nunca fui ao Grand Canyon.
Devido à minha formação científica e à minha vivência pessoal, reconheço que essa maravilha da morfologia geológica tem um efeito tremendo em quem a observa pela primeira vez. No filme homónimo de Lawrence Kasdan, o Grand Canyon é utilizado como a manifestação telúrica da insignificância do Homem, quer temporal quer física.
Qualquer pessoa, diante daquele enorme desfiladeiro, sente que tudo é relativo. Insignificante. E gosta do que vê. Memoriza.
Apesar do inquestionável prazer provavelmente é apenas o fruir dos sentidos, não sendo mais completa a experiência devido à iliteracia científica do que se vê.
Se o turista souber que as centenas de metros de altura de rochas que observa foram o resultado de milhões de anos de sedimentação geológica talvez o efeito seja diferente. Se souber que os sulcos quilométricos que ornamentam o grande desfiladeiro são o resultado da lenta erosão levada a cabo pelo rio Colorado ao longo de milhões de anos, talvez ficasse mais deslumbrado.
Para apreciar algo de belo não é fundamental conhecer como se chegou até ele mas que ajuda a melhor o apreciar, ajuda!
O prazer que algumas obras de arte nos oferecem poderão não necessitar da Teoria; mas sem ela não a gozaremos por completo, ficando quase empurrados aos “Gostei ou não gostei”.
De maneira análoga uma paisagem natural pode ser apreciada meramente ao nível imediatista. Mas a emoção que essa paisagem desencadeia em nós pode ser trabalhada pela educação científica.
Melhor sentida?
De certo melhor protegida.
A literacia científica é fundamental como mais-valia para vermos e apreciarmos a Natureza que nos rodeia.
E, já agora, donde vem o nome Jurássico?
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 20/04/2006)
O Falso Culpado
A cultura cinematográfica está repleta de ambientes de presídio.
Lugar-comum recorrente – o prisioneiro inocente. Vítima de uma qualquer trama mais ou menos maquiavélica, de um erro do sistema judicial, estes injustiçado faz tudo para se libertar daquela condição.
Recentemente a revista National Geographic publicou o estudo de manuscritos coptas que revelavam a remição do mais famoso dos traidores – Judas. Segundo os investigadores, Judas teria tido um papel essencial, a pedido de Jesus, no processo que levou à condenação de Cristo.
Este reescrever da história é fundamental não só para a própria compreensão dos fenómenos em jogo, como também para que se entenda que as realidades não são sempre como nos as “pintam”, nem tudo é preto-e-branco.
Na maioria das vezes vemos o que queremos ver.
Um dos objectivos do paleontólogo é descobrir os verdadeiros papéis de cada um dos “actores” do “filme” que é a História da Vida.
No século passado o Museu Americano de História Natural de Nova Iorque levou a cabo diversas expedições paleontológicas e antropológicas à Mongólia, mais concretamente ao deserto de Gobi. Descobrir vestígios de mamíferos primitivos e, em última análise, a origem do próprio Homem eram os seus intuitos.
Em 1923 (numa das várias campanhas do MAHN à Mongólia) foi descoberto um esqueleto quase completo de um dinossáurio carnívoro com características excepcionais – apresentava um crânio com mandíbula semelhante a um bico de papagaio.
Este dinossáurio foi encontrado sobre um ninho com ovos, que os paleontólogos pensavam ser de Protoceratops (dinossáurio herbívoro). Devido a associação do dinossáurio carnívoro com os ovos fossilizados, este foi baptizado de Ovirator (“ladrão de ovos”).
Estava descoberto um dinossáurio que se dedicava a roubar ovos!
A verdade científica diz-nos que existiram duas imprecisões nas inferências paleontológicas estabelecidas: a primeira que os ovos eram de Protoceratops e a segunda que o Oviraptor os estaria a roubar.
A primeira inferência, que condiciona a segunda, baseou-se na enorme quantidade de restos fósseis de Protoceratops encontrados no deserto de Gobi. Se foram encontradas enormes quantidades de vestígios ósseos de dinossáurios herbívoros porque não pertencerem os ovos àquela mesma espécie?
A segunda inferência é mais linear – dinossáurio carnívoro encontrado perto de ovos…havia um “crime” a acontecer!
Tínhamos o criminoso e tínhamos o motivo. Víamos o que queríamos ver.
O futuro reservaria um “apelo” neste tribunal paleontológico que absolveria o nosso ladrão-de-ovos.
Nos anos 90 do século passado, Phillip Currie do Museu Royal Tyrrel, descobriu novos ninhos de dinossáurio na Mongólia. Tal como nas primeiras descobertas também desta vez foi possível observar que o Oviraptor estava sobre um ninho. Ovos iguais aos conhecidos em 1923 jaziam nesse ninho. Mas desta vez um dos ovos tinha preservado um embrião. Era um embrião, não de Protoceratops, mas de…Oviraptor!
Estudos posteriores permitiram completar este puzzle – uma mãe (ou pai) Oviraptor havia sido surpreendida por uma tempestade de areia que a havia soterrado e aos ovos.
Desta forma o Oviraptor foi absolvido do seu “crime” – de ladrão de ovos passou a mãe/pai extremosos.
O caso do Oviraptor não foi um erro de casting. Foi apenas uma interpretação apressada, condicionada por aquilo que se queria ver.
Era um guião demasiado complexo para uma única leitura – a História da Vida na Terra.
Tal como o culpado nem sempre é o mordomo, também muito menos o foi o Oviraptor…
P.S.- o título remete para o filme de 1956 Wrong man (“O Falso Culpado”) de Alfred Hitchcock.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 20/04/2006)
9 Mitos/Confusões sobre Dinossáurios/Paleontologia
Tal como temos ideias pré-concebidas em relação à política, ao futebol e à vida em geral, também no campo da Paleontologia é habitual termos concepções que não correspondem ao que a Ciência conhece.
Porque a literacia científica é importante.
1-Os dinossáurios eram animais “estúpidos” – este conceito é, erroneamente, apoiado pelo facto de que se extinguiram. A paleontologia sabe que o grupo de animais designados de dinossáurios foi, em maior ou menor grau, dominante em diversos ecossistemas durante mais de 170 milhões de anos; em termos comparativos o Homem, como espécie, habita o nosso planeta há uns míseros milhões de anos…estúpidos?
Não.
Cumulativamente conhecem-se hoje restos fossilizados de dinossáurio – Troodon – em que a relação tamanho corporal/tamanho craneal é bastante elevada levando os paleontólogos a especular se aquele grupo de animais não possuiria padrões de comportamento bastante desenvolvidos.
2-Steven Spielberg no “Parque Jurássico” foi o primeiro a “utilizar” os dinossáurios no cinema – ao contrário do que geralmente se pensa, a utilização dos enormes animais do Mesozóico não foi uma ideia original de Hollywood. O primeiro filme de animação tinha como personagem principal um dinossáurio saurópode, ou melhor uma “menina” saurópode de nome Gertie. Foi realizado em 1914 por Winsor McCay (também autor da famosa obra “O pequeno Nemo); McCay foi influenciado por uma visita que efectuou ao Museu de História Natural de Nova Iorque, tendo ficado tão impressionado com o Brontosaurus (hoje designado Apatosaurus) em exposição que o decidiu “utilizar” no primeiro filme de animação.
Ao longo da história do cinema contam-se imensos exemplos que integram como personagens os dinossáurios; apenas dois exemplos: “O Mundo Perdido” de 1925 e “Quando Os Dinossauros Dominavam a Terra” de 1970.
3- Os arqueólogos estudam os dinossáurios e os fósseis – tal como não são os paleontólogos que estudam os vestígios da Humanidade em Foz Côa ou no Egipto, também não são os arqueólogos que estudam as formas de vida preservadas sob a forma de fósseis – esse é o trabalho do paleontólogo.
4- Na linguagem do dia-a-dia a utilização das palavras “dinossauro” e “fóssil” estão associados a conceitos ultrapassados – televisão, rádio, jornais e mesmo nas conversas quotidianas veiculam as palavras dinossáurio e fóssil associadas a conceitos de objectos, ideias ou pessoas que estão ultrapassadas, velhas e antiquadas. Apesar de nalguns contextos aquela associação fazer sentido, na maioria dos casos é errada, pois os dinossáurios foram animais excelentemente adaptados aos seus ambientes e constituíram um grupo de sucesso durante muitos milhões de anos (ver ponto 1).
5- Homem e dinossáurios foram contemporâneos – nos exemplos cinematográficos atrás referidos, em obras literárias (“O Mundo Perdido”, “Lost World” no original, de Sir Arthur Conan Doyle) e séries televisivas (“Os Flinstones”, por exemplo), o Homem e os dinossáurios coexistem em ambientes mais ou menos remotos.
Sob um ponto de evolutivo e da História da Vida, esta perspectiva, obviamente, não está correcta. Entre os dois grupos de seres vivos existem um “fosso” temporal de mais de 60 milhões de anos! Os antepassados do Homem moderno, num sentido amplo, terão surgido há cerca de 4 ou 5 milhões de anos, tendo os grandes sáurios desaparecido há 65 milhões de anos.
Mas para efeitos ficcionais o devaneio artístico é bem tolerado…
6- Todos os grandes répteis do Mesozóico eram dinossáurios – embora os dinossáurios dominassem um grande número de ecossistemas não eram o único tipo de fauna.
Dimetrodon, Pteranodon (pterossáurio), e Megalneusaurus (réptil marinho) não eram dinossáurios e são alguns exemplos de outros répteis contemporâneos dos grandes sáurios. Tal como hoje não existem unicamente mamíferos em diversos ecossistemas, também no Mesozóico não existiam só dinossáurios…
7- Os dinossáurios eram voadores e habitavam também os mares – os dinossáurios eram animais exclusivamente terrestres. Répteis como os pterossáurios (voadores) são normalmente confundidos com os dinossáurios; embora parentes próximos, não pertencem ao mesmo grupo. Tendo em atenção que os dinossáurios são os antepassados das aves, então podemos dizer que existiram dinossáurios voadores; mas tendo em atenção essa ressalva…
De maneira semelhante, existiram e desapareceram no mesmo momento grupos de répteis parentes dos dinossáurios que habitavam o meio aquáticos – os ictiossáurios, os plesiossáurios e os mosassaúrios.
8- Todos os dinossáurios eram enormes – embora uma das estratégias evolutivas desenvolvida pelos dinossáurios fosse o aumento de tamanho, conhecem-se actualmente algumas espécies de pequeno porte. Exemplos como Procompsognathus e Echinodon apresentavam tamanho que variavam entre o 1,20 e 1,50.
9- Os mamíferos só apareceram depois de os dinossáurios se extinguirem – os últimos anos têm permitido reformular esta ideia; foram descobertos mamíferos fossilizados na China que transformaram a ideia que os nossos antepassados longínquos eram de tamanho muito reduzido e viviam em poucos ambientes.
O Repenomamus foi descoberto recentemente e permitiu saber os mamíferos apresentavam tamanhos maiores do que se pensava e, mais surpreendente, se alimentavam, sempre que podiam, de dinossáurios! Este facto foi provado quando se descobriu este animal com restos fossilizados de um dinossáurio no seu interior. Podemos, desta forma, perceber que os mamíferos ancestrais não eram inofensivos como se suponha, aproveitavam as oportunidades que a Natureza lhes oferecia…
P.S.- para quem estiver interessado aprofundar os conhecimentos sobre a influência dos dinossáurios na cultura popular pode tentar obter o excelente livro Starring T-Rex: Dinosaur Mythology and Popular Culture publicado pela Indiana University Press e, infelizmente, sem edição em português. Escrito pelo catedrático de Paleontologia e cinéfilo José Luís Sanz, da Universidad Autónoma de Madrid.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 02/03/2006)