Carneiros, pardais e Copérnico

Sistema solar JoePlockiPelo Natal, um salto de pardal.
Em Janeiro, salto de carneiro.

A minha avó Rosa, mulher rija do Douro e de quem herdei a cor dos olhos e algum mau-feitio, contava-me este provérbio.
De memória, que de outro registo não sabia.
Sempre me socorri desta frase para explicar os dias tristes de Inverno, com longas noites e curtos dias, na esperança de que o tempo das tardes grandes finalmente chegasse.
De há uns anos para cá, o mantra da avó Rosa começou a intrigar-me: porque é que do Natal para Janeiro o crescimento dos dias é tão notório?

A avó Rosa, tenho a certeza, sabia muito da vida e de contar histórias (motivo pelo qual eu gostava de ficar em casa doente …mas isso é outro rosário), mas desconhecia a forma da órbita da Terra, bem como a inclinação do eixo do nosso planeta.

Os dias crescem e decrescem, todos nós observamos o fenómeno ao longo do ano. Mas serão essas variações uniformes, até que ponto está o provérbio da duração dos dias está correcto?

A duração dos dias está dependente sobretudo da inclinação do eixo da Terra relativamente ao seu plano de órbita. O nosso planeta não está perfeitamente verticalizado relativamente à sua órbita em torno do Sol, sendo a inclinação de aproximadamente 23.5º.
Se a avó Rosa fosse viva, dir-lhe-ia que a Terra era como um carrossel a girar em redor do Sol mas que os animais e os bancos de madeira estavam inclinados. A avó Rosa responderia apenas que o carrossel estava mal feito. Eu refilava: para além de inclinado, o girar do carrossel também não era perfeito.
crochetNesse momento agarrava-a pelo avental, porque a avó Rosa estaria já farta da minha história, e completava que a torre que costuma estar no centro do carrossel também não estaria bem no centro. Assim, as crianças que andam neste carrossel ora passam mais próximo da torre, ora se afastam dela, a cada volta que dão.
Mas que raio de carrossel mais estranho pensaria a Rosa Correia de Galafura.

E que tem isto que ver com os dias e os carneiros de Janeiro?
Esta história, que gostaria ter contado à minha avó, ilustra as duas condicionantes da variação da duração dos dias e das noites ao longo do ano.
A soma destes dois efeitos – efeito da órbita elíptica da Terra (ou ligeiramente elíptica) e a inclinação do seu eixo relativamente ao plano de órbita, são os motivos dos dias crescerem e decrescerem ao longo do ano.
Dirão os mais atentos que até agora nada de novo, tirando a avó Rosa que desconheciam.

Pois foi ela mesmo, e o dia de Copérnico, que me fizeram acabar este simples texto que perdurava na gaveta digital de textos inacabados.
A Rosa de Galafura sabia de histórias e muitas me contou.
Copérnico sabia apenas o seu lugar no Universo, o que não é nada mau.

(texto publicado no P3)

Imagens:
JOE PLOCKI/FLICKR
e
Daqui

Podcast Ciência Viva À Conversa | 24 Jan – 14 Fev

Os quatro mais recentes podcasts do Ciência Viva À Conversa – duas conversas; uma sobre a alfarroba e a produção de energia; a outra, sobre a Ciência e a Instrução no Algarve dos séculos XVIII e XIX.

maria emília costaMaria Emília Costa, professora da Universidade do Algarve e líder do projecto Alfaetílico, no laboratório onde a sua equipa investiga.

patricia de jesus palmaPatrícia de Jesus Palma, investigadora da Universidade Nova de Lisboa, na palestra que deu no Centro Ciência Viva de Lagos.

Fotos: Luís Azevedo Rodrigues

Darwin e o leite

a3a5163e3a54b8db90074c456115b7af_hEsta terça-feira, dia 12 de Novembro, Charles Darwin faria 204 anos.

Escrever sobre um dos mais importantes homens de Ciência é tão difícil como tentar desvendar a morte de Kennedy: todas as perspectivas e ângulos foram já explorados.

O tema com que lembrarei Darwin faz parte do nosso dia-a-dia: o leite. De tão familiar, nunca parámos para pensar que o seu aparecimento poderia ser visto sob a perspectiva da Biologia Evolutiva.

Como surgiu o leite?

Seria óbvio justificar o aparecimento do leite como estando ligado apenas à alimentação das crias durante a evolução dos mamíferos. Mas os percursos evolutivos nem sempre são os mais lineares.

O leite inclui lisozima, enzima com propriedades anti-bacterianas, e, assim, uma das possibilidades evolutivas para o seu aparecimento é que este fosse um antibiótico natural para os ovos dos antepassados dos mamíferos. Estes seres utilizavam essa secreção para manterem um ambiente incubador desinfectado e húmido, hipótese evolutiva actualmente mais consensual – aumentar as possibilidades de sobrevivência das crias é um trunfo essencial do jogo da Evolução.

Ao longo da história evolutiva dos mamíferos, e seus antepassados, a função higiénica do leite parece ter sido ultrapassada pela nutritiva. Darwin lamentava que o registo fóssil não apresentasse as evidências directas da lactação, mas estudos posteriores dar-lhe-iam razão.

A enorme variabilidade composicional do leite dos vários mamíferos actuais revela ainda diferentes percursos evolutivos, quer ao nível das estratégias de reprodução, quer ao nível das diferentes adaptações ambientais. Entre as espécies actuais de mamíferos a composição varia, por exemplo, entre a quase inexistência de gordura no leite dalgumas espécies de cangurus e os 60%  de gordura no das focas.

As primeiras glândulas mamárias?

Darwin referiu que as glândulas secretoras das bolsas incubadoras de alguns peixes poderiam ser as estruturas primitivas das glândulas mamárias. Antes de gozarem com a ideia pensem nas bolsas com que os cavalos-marinhos macho incubam as crias… Hoje sabemos que as glândulas mamárias evoluíram a partir de glân


Afinal, porque bebem leite os mamíferos?
dulas da pele, mais concretamente glândulas pilosas. Estas glândulas produzem secreções e estiveram na génese do leite primitivo. Darwin já havia referido a glândula mamária do ornitorrinco como forma intermédia do percurso evolutivo das glândulas mamárias – o ornitorrinco alimenta as suas crias a partir de glândulas produtoras de leite, embora estas sejam desprovidas de mamilos.

Permitir aos mamíferos uma maior independência perante as condições ambientais necessárias à sua reprodução terá sido o impulso evolutivo que conduziu ao aparecimento do leite enquanto substância nutritiva das crias.

Os antepassados dos mamíferos eram hipoteticamente endotérmicos e de pequeno tamanho. Assim, os seus ovos teriam que ter um tamanho reduzido, o que implicaria que as crias se tivessem de desenvolver mais após a eclosão, necessitando então de uma fonte de alimento como o leite.

Estas hipóteses são atestadas pelo registo fóssil de cinodontes, grupo de animais extintos e antepassados dos mamíferos de há cerca de 200 milhões de anos, que apresentavam tamanho reduzido e ovos pequenos, bem como estruturas anatómicas reveladoras de lactação – ossos epipúbicos e um tipo especial de dentição.

Beber leite em adulto?

À medida que os bebés crescem vão perdendo a capacidade de produzirem a enzima que degrada a lactose – o açúcar do leite. Existem populações mais intolerantes à lactose e outras que desenvolveram a capacidade de continuar a produzir aquela enzima ao longo da vida – cerca de 90% dos suecos e dinamarqueses, por exemplo. Esta mudança biológica é explicada em termos evolutivos, pela mutação no gene ligado à tolerância à lactose. Há cerca de 7000 anos, mutações da tolerância à lactose surgiram de forma independente em três populações africanas e, curioso, este processo biológico ocorreu na mesma altura do início da domesticação de gado bovino, parecendo assim ter havido um processo de convergência evolutiva entre cultura e genes.

Brindemos então à saúde de Darwin com um shot de leite!

Embora seja avesso ao culto da personalidade e me interessem mais as ideias, quero partilhar o fascínio que sinto por este homem do século XIX que influenciou o modo como nos vemos e vemos a Natureza de que fazemos parte.

Parabéns!

(texto publicado no P3)

Referências:

1 The Mammary Gland and Its Origin During Synapsid Evolution (PDF gratuito)
2 The origin and evolution of lactation (PDF gratuito)

Imagens:

A   daqui
B   Traduzida e adaptada de 2
C   daqui

Os meus dias já foram mais pequenos

Actualizado com artigo de 2020 em 18 de Fevereiro de 2021.

Aproveito-o agora para para ser publicado aqui e também no jornal Sul Informação).

Quando crianças os dias parecem durar e durar, havendo tempo para (quase) tudo. Há tempo de sobra para brincar, rir e fazer tudo e mais alguma coisa.
À medida que ganhamos rugas e dores nas costas, a divindade do tempo infinito encolhe e parece que o tempo já não é o que era.
Ele não chega para nada, que está cada vez mais curto, que o tempo corre mais que a gente.
Quantas vezes já escutámos “O meu dia deveria ter 25 horas” ou “Só queria mais umas horas por dia”.
As mudanças de percepção que a idade traz à duração dos dias são isso mesmo, mudanças na percepção.

Mas os dias já foram mesmo mais pequenos. Por outras palavras, a Terra já demorou menos tempo a efectuar o seu movimento de rotação.
O nosso planeta já teve dias mais pequenos do que as 24 horas a que estamos habituados.
A responsabilidade pelo aumento dos dias cabe às marés, sendo estas provocadas pela atracão gravitacional da Lua sobre o nosso planeta.

De forma breve: a atracão da Lua sobre a Terra origina acumulação de água do mar no lado que está diante dela (maré alta) e também do lado terrestre oposto*. Simultaneamente existirão locais onde essa água “faltará”, observando-se nestes locais a maré baixa.

Como o sentido da rotação da Terra é o mesmo que o da translação da Lua, mas muito mais rápido, gera-se um efeito de fricção da água do mar com os fundos oceânicos, que, aliado à inércia da própria água, abranda a rotação da Terra.
Um efeito semelhante também é exercido pela Terra sobre a Lua. Como a Terra tem muito mais massa do que o nosso satélite, o nosso planeta já conseguiu deter o seu movimento de rotação, motivo pelo qual vemos sempre a mesma face da Lua.

Não entrarei em maiores detalhes sobre a mecânica celeste deste processo, mas refiro apenas que a Terra sofre actualmente um aumento nos seus dias de cerca de 1.8 milissegundos por século – alguns autores referem 2.3 milissegundos por século.
Obrigado pela ajuda, dirão os mais necessitados de dias maiores, em tom de sarcasmo.

A estes responderei que simulações feitas por computador permitiram deduzir que os dias tinham, quando a Terra estava no seu início, apenas 6 horas. Aquilo que a maior parte de nós passa hoje a dormir era a duração de um dia inteiro há cerca de 4.5 mil milhões de anos.
Mais: a análise do ritmo do crescimento diário de corais fossilizados, por exemplo, permitiu deduzir que a duração dos dias há 400 milhões de anos era de 22 horas.

E agora, caros desejosos-de-dias-maiores, estão satisfeitos com a vossa situação actual? Dias com 24 horas?
Era muito pior há milhões de anos.
Sim, porque, ao contrário de nós à medida que envelhecemos, os dias da Terra vão ficando cada vez maiores. Literalmente.

* por motivos de simplificação para o caso que se descreve omite-se o efeito do Sol.

Referências:

Williams, George E. (2000). Geological constraints on the Precambrian history of Earth’s rotation and the Moon’s orbit. Reviews of Geophysics, 38 (1) pages 37–59.

Imagens:

1 – La Voyage dans la Lune de Georges Méliès
2 – Daqui
3 – Daqui

4 – atualização com artigo de 2020 e informação paleontológica.

5 – artigo de divulgação que resume o artigo 4.

Luís Azevedo Rodrigues 

 (Este texto foi escrito como a minha colaboração para a ação interCiência, em que eram trocados de forma anónima textos entre blogs. Este texto foi a minha “oferta” para o blog Curioso Realista, onde foi publicado originalmente.

Em algum lugar do passado… molecular.

Texto de autoria de um blogger que desconheço e como resultado do intercâmbio de divulgação científica InterCiência.

[Saiba mais e participe em: http://scienceblogs.com.br/raiox/2013/01/interciencia/]

Mammuthus
Os tecidos recuperados de mamutes enterrados em permafrost possibilitam a observação inédita de fragmentos da pré-história molecular.

O mamute lanoso Mammuthus primigenius não é apenas um dos animais pré-históricos mais simpáticos – seus caçadores provavelmente discordam de mim nesse ponto – e de grande reconhecimento popular.
Recentemente, a aplicação de técnicas avançadas aos espécimes recuperados do permafrost talvez tenha feito de mamutes e mastodontes os objetos de estudo mais ricos da Paleontologia.
O permafrost é um solo que nunca descongela ou fica constantemente congelado por milhares de anos. Com esse frio todo, de vez em quando os pesquisadores são presenteados com animais em ótimo nível de preservação.
Desses mamutes congelados podem ser coletadas amostras de tecidos moles como pele e músculos, além de sangue e conteúdo estomacal. E o estudo desse material com técnicas como clonagem, amplificação/sequenciamento de DNA e espectrometria de massas abre uma janela inédita para o seu passado molecular!
Em 2009, uma equipe japonesa aparentemente conseguiu “ressucitar” células de um mamute congelado há 15 mil anos. Por transferência nuclear de célula somática (SCNT, na sigla em Inglês), a mesma abordagem utilizada na clonagem da ovelha Dolly, eles relatam a recuperação do material nuclear de músculo e pele com sucessos de 55% e 67%, respectivamente. Não é nada mau quando lembramos de onde vieram esses núcleos e por quanto tempo ficaram congelados.

Infelizmente não consegui acesso mais detalhado à pesquisa, mas é importante ressaltar que não houve comunicado de avanços desde então. Isso é ao mesmo tempo um sinal ruim e uma grande pena, pois seria fantástico cultivar células de mamute in vitro.
Mesmo sem tecidos moles, hoje os ossos fornecem material para muito mais que estudos morfológicos. Pesquisadores alemães publicaram em 2005 o primeiro sequenciamento completo de um genoma mitocondrial ancestral que usou DNA extraído do osso congelado de mamute lanoso.
Já em 2012 ocorreu a primeira identificação positiva de proteínas desses animais. Do osso de um mamute de 43 mil anos foram extraídas e analisadas por espectrometrial de massas mais de 100 proteínas diferentes. O sequenciamento dessas moléculas revelou semelhanças grandes com os elefantes africano, indiano e também com amostras mais recentes de outra espécie de mamute (Mammuthus columbi).
É claro que estudar biomoléculas separadas por milhares de anos e compará-las ao nosso conhecimento atual já é incrível, mas ao mesmo tempo é impossível não ficar ansioso pelo futuro.
Estamos discutindo a possibilidade – remota, admito – de se recuperar fragmentos celulares funcionais e talvez até reestabelecer essas células mortas há dezenas de milhares de anos.
Tem como pensar nisso e não abrir um sorriso ao perceber que convivemos com situações mais avançadas que muita obra de ficção científica?
***
[Este texto é parte da primeira rodada do InterCiência, o intercâmbio de divulgação científica. Saiba mais e participe em: http://scienceblogs.com.br/raiox/2013/01/interciencia/]

Referências:
Cappellini et al. Proteomic Analysis of a Pleistocene Mammoth Femur Reveals More than One Hundred Ancient Bone Proteins. J. Proteome Res. 2012, 11, 917–926. dx.doi.org/10.1021/pr200721u – Published: 21 November 2011.
Kato et al. Recovery of Cell Nuclei from 15 000-Year-Old Mammoth Tissues and Injection into Mouse Enucleated Matured Oocytes. Reproduction, Fertility and Development. 22 (5305) 189–189 http://dx.doi.org/10.1071/RDv22n1Ab62 – Published online: 08 December 2009
Krause et al. Multiplex amplification of the mammoth mitochondrial genome and the evolution of Elephantidae. Nature, 439, 724-727. doi:10.1038/nature04432 – Published online: 18 December 2005.

Devaneios evolutivos…

394952_530625956958420_24964258_nEsta imagem/post, retirado e mais do que partilhado pela página de Facebook “I fucking love science” é uma excepção às suas excelentes e divertidas imagens-mensagem.

E porquê?

1  “You are the result of 3.8 billion years of evolutionary success”
O aparente topo evolutivo ocupado pelo ser humano, de alguma forma reflectido no texto desta imagem, não é verdadeiro, já que a nossa espécie é um acaso da História Evolutiva da vida na Terra.
Ao contrário do que está implícito, a Evolução da vida não tem o ser humano como o pináculo evolutivo, o seu porto de chegada, o seu mais perfeito representante, o final do caminho da vida sobre a Terra, isto apesar da nossa existência actual ser fruto de um sem número de sucessos intermédios.
Seremos tão pináculo evolutivo da História da Terra como outros seres vivos actuais – representantes no presente de várias linhagens de seres vivos que singraram ao longo do tempo.
2 Outra mensagem que poderá induzir em erro, e subjacente neste texto, é que a Evolução é sinónimo de um cada vez maior aperfeiçoamento e complexidade dos organismos, sendo o representante deste conceito nesta imagem/texto o ser humano.
Isto não é de todo verdade.
Embora existam casos de incremento de complexidade, a Evolução conduz* também a redução de complexidade biológica, à diminuição de estruturas, entre outras alterações morfológicas e/ou fisiológicas.
Evolução biológica não é sinónimo de maior complexidade – pode ou não sê-lo.

3 Ainda outra mensagem subjacente é a de cariz moral/comportamental. Devemos actuar em função do sucesso obtido pelos nossos antepassados, sejam eles mais ou menos distantes.
O que não me agrada nesta mensagem é a mistura entre sucesso evolutivo e a matrizes de comportamento moral/ético. Isto talvez possa justificar parte do sucesso evolutivo recente dos nossos antepassados, mas não justifica a esmagadora maioria do tempo geológico.
O singrar de um organismo e o sucesso de um código de conduta, embora possam estar interligados, são questões distintas, sendo perigoso generalizá-los.
Se nos focarmos no comportamento humano e na diversidade de valores éticos e morais existentes, então estaremos de certeza a misturar alhos com bugalhos quando afirmamos que nos deveremos comportar em função do sucesso biológico de um passado tão longínquo como o de há centenas ou milhares de milhões de anos.

Apenas alguns devaneios evolutivos…já há muito debatidos e analisados por outros muito melhores do que eu.

* a utilização deste vocábulo é exagerada, sendo aqui utilizada por simplificação na leitura.

Podcast Ciência Viva À Conversa 2013

CIENCIA VIVA A CONVERSA LOGOÉ o regresso do espaço de rádio e podcast Ciência Viva À Conversa.

Depois dos 23 programas que gravei, com a excelente e indispensável edição do Director de antena da Rádio Universitária do Algarve, Pedro Duarte, retomamos este programa semanal.

Para além da difusão na Rádio Universitária do Algarve à 5ª feira (8h15, 12h15 e 15h15), o programa pode ser ouvido e descarregado nos sites dos Centros Ciência Viva no Algarve (Faro, Lagos e Tavira), no site do jornal Sul Informação, no site da RUA e e também no sítio de arquivo, para além deste blog (na barra lateral).

 

ADELINO CANARIOO primeiro programa Ciência Viva À Conversa de 2013 é com Adelino Canário do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) e que será concluído na próxima 5ª feira.

 

Os Cães do Estado

O risco parece ser o tempero principal do prato que nos servem nos dias em que nos assam.
As elites governativas apelam a que cada um de nós largue o gatinhar seguro e se atire, sem medos, para a iniciativa própria.
Arriscar e aguentar, dizem eles, que o Estado já fez o que devia e todos devemos largar o consolo a que nos habituámos por direito.
Devemos arriscar mais, fugindo da segurança que o Estado nos deveria proporcionar.

01ladies CARPACCIO (Large)A história evolutiva dos cães apresenta, como explicações para o seu aparecimento, duas alternativas. A mais comummente aceite é a de que os seus ancestrais lobos foram seleccionados artificialmente pelo Homem e, assim, adquiriram as características comportamentais, primeiro, e físicas, depois, que interessam e agradam ao ser humano.
Uma segunda alternativa, defendida por Raymond Coppinger [1] envolve, para além da selecção artificial dos nossos antepassados de alguns lobos, a selecção natural. Em resumo, os lobos, como outros animais, apresentam graus distintos do que se designa por “distância de fuga”, ou seja, a distância mínima que um animal está disposto aceitar à aproximação de um ser humano, ou outro perigo, antes de iniciar a fuga. Intuitivamente compreendemos este conceito de “distância de fuga”, tanto mais que já todos vimos, pelo menos na televisão, que diferentes animais apresentam “distâncias de fuga” distintas e, mesmo dentro da mesma espécie, esta distância variará de indivíduo para indivíduo. Se não acreditam, experimentem alimentar pombos ou gaivotas…
A “distância de fuga” está relacionada com a sobrevivência do animal, seja por permitir que obtenha alimento fácil arriscando mais, seja por poder ser ferido ou morto caso se aproxime do eventual perigo que está entre ele e o alimento.
O autor referido apresenta como motivo para a domesticação do lobo e consequente aparecimento do cão que a distância de fuga dos lobos que circundavam os acampamentos humanos primitivos se terá reduzido. Por outras palavras, alguns lobos arriscavam mais e seriam esses que despertaram o espírito de domesticação dos nossos antepassados. No surgimento do cão parece ter estado um aumento do espírito de risco ou a diminuição da distância de fuga por parte de alguns lobos.

Ora o risco e empreendedorismo, bandeiras que se devem aplicar à Banca mais do que a nenhum outro sector da economia, parecem ter ficado na gaveta.
Verdadeiros lobos, os bancos arvoram-se, historicamente, como bastiões do risco e da independência face à protecção.
Mas o que verifica recentemente é que o espírito protector e paternalista parece ter assolado as mentes de quem nos governa. Só uma mãozinha, que eles são pequeninos, justificam. Era mesmo só o que lhes faltava, este naco de carne dado à boca, que os bancos de pedigree não singram sem esta ajuda, carpem os que mandam no Estado.
Do que me ensina a evolução dos lobos e dos cães resta-me adivinhar que os bancos, protegidos e esquecidos do risco, saltem para ao colo dos seus donos.
4892685898_ef8ed1d949_b (Large)E para quê?
Há que tomar conta dos rebanhos, especulo.
Há que fazer companhia financeira, quando dela precisarem os futuros ex-governantes.
E quem melhor para estas tarefas?
Estes novos cães do estado, amansados e alimentados à mão.
Pena é que quem manda se esqueça que por vezes os cães mordem a mão de quem os alimenta.
E estes, ao contrário dos cães de quatro patas, já deram provas de que o farão.
Mais tarde, ou mais cedo.
E a nós, o que nos resta?
Voltar à selva, que o canil do Estado, que todos pagámos, já está ocupado.

 

 

Referências:
[1] Dawkins, R. 2009. O Espectáculo da Vida – A Prova da Evolução. Páginas: 430. Casa das Letras. ISBN: 9789724619354 – páginas consultadas 75-78.

“Estado injecta 1 100 milhões de euros na recapitalização do Banif” jornal i 31 de Dezembro de 2012

“Injecções de dinheiro no BPN ascendem a 8,5 mil milhões” jornal DN 25 de Outubro de 2011

Imagens:
Vittore Carpaccio “Two Venetian Ladies” (1510)

Daqui

 (PUBLICADO NO JORNAL SUL INFORMAÇÃO)

Beatas no Ninho

Embora o título possa parecer um pouco reles, o teor deste texto é tudo menos provocador.
Bem, talvez o seja para alguns seres vivos.
As beatas de que falamos são as pontas dos cigarros depois de fumados ou, em português do Brasil, as bitucas ou guimbas de cigarro.
animals,nature-214cf02b3e5291e0ec0b6c33eea85cad_hMas porquê falar da terminologia de um produto tão nocivo à saúde e, pior, misturá-lo com ninhos?
É que por vezes a natureza dá voltas por onde menos se espera. Neste caso, verificou-se que algumas aves da cidade do México utilizam as beatas de cigarros na construção dos seus ninhos.
O comportamento foi observado e avaliado por investigadores da Universidad Nacional Autónoma de México, que utilizaram um procedimento experimental para comprovarem a influência das guimbas de cigarro sobre parasitas que atacam as crias de aves.

Os cientistas verificaram que ninhos com pontas de cigarros fumados apresentavam menos parasitas externos do que aqueles construídos com pontas de cigarros não fumados.
Bem, nada de especial, escarnecerão os mais radicais, acrescentando que o tabaco é tão mau que nem os parasitas o aguentam.
cigarette-butt-bird_Víctor ArgaezOs investigadores verificaram que as aves que utilizam as beatas nos seus ninhos, pardais (Passer domesticus) e a espécie de tentilhão Carpodacus mexicanus, o poderão fazer como recurso a um insecticida natural, já que as pontas dos cigarros preservam quantidades de nicotina e outras substâncias químicas.
Um amigo meu inglês já me havia descrito que infusões frias de beatas de cigarros quando vertidas nos vasos de plantas ornamentais as tornam mais saudáveis. Ou assim diz ele.
Estes investigadores não descartaram a hipótese de que as aves utilizem as beatas como um revestimento térmico para os ninhos, uma vez que estas têm celulose. Tão pouco afastam que as vantagens de as aves utilizarem a nicotina como desparasitante sejam anuladas pelos efeitos tóxicos dos químicos tabágicos.
art-016Ainda que não totalmente esclarecidos, os autores propõem duas hipóteses para o comportamento das aves: as substâncias químicas presentes nas pontas de cigarro poderão estimular o sistema imunitário das crias e, assim, favorecer as suas hipóteses de sobrevivência. A segunda hipótese aponta para que os químicos presentes nas bitucas de cigarros possam ter um papel mais directo, evidente e já referido: as beatas seriam um insecticida natural, que desinfectaria os ninhos de parasitas externos.

Esquecendo as infusões de nicotina e desejando que as hipóteses levantadas sejam testadas, o que as aves urbanas parecem ter descoberto é a reutilização do arsenal químico dos cigarros a favor das suas crias.
Ao contrário do que escreveu Tchekov, estas aves mexicanas descobriram os benefícios do tabaco.

Aparentemente.

 

ResearchBlogging.orgReferências:

Suárez-Rodríguez M, López-Rull I, & Macías Garcia C (2012). Incorporation of cigarette butts into nests reduces nest ectoparasite load in urban birds: new ingredients for an old recipe? Biology letters, 9 (1) PMID: 23221874

Imagens:

1 – daqui

2 – de Vitor Argaez – daqui

3 – daqui

 (PUBLICADO NO JORNAL SUL INFORMAÇÃO)

O mais antigo dinossauro?

Imagine que descobria fotos antigas e que estas eram de um antepassado seu.

O que pensaria?

Iria procurar semelhanças na fisionomia entre si e a fotografia, seguramente.
Não foram fotos mas fósseis que permitem agora apresentar à grande família dos dinossauros o seu mais antigo familiar (ou muito próximo disso).
O Nyasasaurus parringtoni [1] foi escavado em 1930, no que é hoje a Tanzânia, tendo sido estudado na década de 50, tendo nessa altura permanecido como material inconclusivo. Recentemente uma equipa de paleontólogos americanos e ingleses retomou o estudo deste material e verificou a sua importância. O Nyasasaurus, em homenagem ao lago Niassa, também chamado Malawi, tinha um tamanho de 2 a 3 metros e pesava entre 20 a 60 kgs (parâmetros estimados). Este animal viveu no Triásico médio, há aproximadamente 235 milhões de anos, o que faz dele o mais antigo dinossauro que se conhece.

Dinossauro?

Úmero de Nyasasaurus e estrutura microscópica de secção deste osso (Nesbitt et al. 2012)

A análise morfológica e filogenética dos vestígios de Nyasasaurus (úmero e várias vértebras) permitiram apontar para que este animal seja o mais antigo dinossauro que se conhece ou um representante primitivo de um grupo-irmão dos dinossauros.
A anatomia dos ossos encontrados permitiu identificar a presença de características únicas dos dinossauros, nomeadamente a presença de uma crista deltopeitoral alongada no úmero* [2], zona do osso do membro anterior (braço) onde se inseriam músculos, bem como outras particularidades anatómicas na cintura pélvica.
Para além destas evidências exteriores, a análise microscópica aos tecidos ósseos também permitiu descobrir que este animal apresentava padrões rápidos de crescimento ósseo, típico também dos dinossauros.
Apesar destas evidências, muitas das características anatómicas presentes nos dinossauros, a equipa de paleontólogos que o descreveu ainda não está totalmente segura de posicionar o Nyasasaurus como um verdadeiro dinossauro ou, em alternativa, como pertencendo a um grupo irmão dos dinossauros.

Úmeros de vários sauropodomorfos com algumas estruturas anatómicas destacadas (Rodrigues 2009). Comparar com úmero de Nyasasaurus.

O aparecimento dos dinossauros

Para além de ser mais um elemento para a história da vida na Terra, o Nyasasaurus aumenta o conhecimento do aparecimento e diversificação do grupo de animais de enorme importância ecológica no Mesozóico – os dinossauros. Este animal faz recuar em 15 milhões de anos o surgimento dos dinossauros, caso se verifique ser o Nyasasaurus um verdadeiro dinossauro, como tudo leva a apontar.
Nos últimos anos os paleontólogos que se dedicam aos estudos dos dinossauros têm investido muito quer na prospecção, quer no estudo e descrição de vestígios de vertebrados no Triásico. Este período da história da Terra assistiu ao conjunto de fenómenos biológicos que terá levado à diversificação e proliferação do grupo Dinosauria, grupo que viria a proliferar nos milhões de anos que se seguiram.
Há assim uma enorme vontade científica em descobrir e perceber a origem dos dinossauros.

 

Triásico, Tanzânia e Portugal

Além desta tendência de escavação em sedimentos do Triásico, também se tem verificado uma outra vertente da investigação em dinossauros: começar a olhar para as coleções de fósseis escavados no século passado. Há assim uma re-escavação dos sedimentos, sendo que desta vez a prospeção é feita nas caves e depósitos dos Museus de História Natural.
De referir que foram alemães, em particular Werner Janensch, que efetuaram diversas campanhas de escavação na Tanzânia logo a partir de 1909** do século passado. Não é este o caso já que o Nyasasaurus foi escavado por Francis Rex Parrington, paleontólogo inglês da Universidade de Oxford.

Em Portugal existem vários locais com rochas sedimentares de idade triásica sendo os potencialmente mais interessantes, do ponto de vista paleontológico de vertebrados, os localizados no Algarve, num conjunto de sedimentos de ambiente continental que se designam genericamente de Grés de Silves.
Mas do Triásico falaremos um destes dias.
Agora é o momento de comemorar a chegada de um parente antigo dos dinossauros…ou próximo deles.

* compare-se o úmero de Nyasasaurus com os vários úmeros de saurópodes [2] e as respetivas cristas deltopeitorais.

** algum do material procedente da Tanzânia está nas coleções do Museu de História Natural de Londres e no Museu de História Natural de Berlim.

A segunda parte desta história (link) descreve o que se passou com material fóssil da Tanzânia e que era…radioativo.

Referências:

[1] Nesbitt SJ, Barrett PM, Werning S, Sidor CA, Charig AJ. 2012 The oldest dinosaur? A Middle Triassic dinosauriform from Tanzania. Biol Lett 9: 20120949. http://dx.doi.org/10.1098/rsbl.2012.0949

[2] Rodrigues, L.A. Sauropodomorpha (Dinosauria, Saurischia) appendicular skeleton disparity: theoretical morphology and Compositional Data Analysis. Ph.D. Thesis. Universidad Autónoma de Madrid, Madrid – Spain, Supervised by Professor Angela Delgado Buscalioni and Co-supervised by Professor Jeffrey A. Wilson, University of Michigan, Ann Arbor. December 2009. ISBN 978-84-693-3839-1.

Imagens:

A – Natural History Museum, London/Mark Witton / SL.

B – Natural History Museum / SL

C – Rodrigues 2009

(PUBLICADO NO JORNAL SUL INFORMAÇÃO)