Doutores e o mercado de trabalho–Resultado
Obrigado a todos que participaram da enquete e desculpem a demora em analisar os resultados. A eles:
Compartilho do otimismo receoso dos enquetados quanto às futuras contratações. Acredito, e de fato desejo, que passemos de uma fase de crescimento em tamanho para uma fase de crescimento em qualidade. Além disso, acredito que passaremos a ter mais investimento em outra fatia da educação muito relegada a segundo plano, a educação técnica, vedete dos programas eleitorais de mais de um candidato no pleito do ano passado (não que promessa eleitoral queira dizer muita coisa, é claro).
Ok, essa foi uma questão meio óbvia, mas foi interessante ver o resultado. Ela de fato é relativa, se as coisas ficam brabas de verdade, claro que não há solução senão abdicar da carreira sonhada. O resultado para mim reflete um pouco de quanto o cientista é apaixonado pelo que faz. Quantas profissões manteriam 35% de seus adeptos numa condição de escassez de vagas de emprego e baixa oferta salarial? De qualquer forma demonstra bem a importância das políticas públicas de fixação dos bons profissionais para a sobrevivência científica do país.
Mais um resultado interessante, talvez aponte para o perfil dos participantes da enquete, mas caso contrário dá uma boa amostra de que muito mais vagas ainda são necessárias.
Gostei do comentário do Leonardo Gedraite que o ReUni é uma boa forma de fixar professores universitários e não pesquisadores. Essa dicotomia é difícil de fazer no Brasil, já que as duas coisas estão tão entrelaçadas, o que tem vantagens e desvantagens. Já ouvi pesquisadores brasileiros e extrangeiros dizerem que este vínculo é justamente um dos complicadores para o Brasil ganhar projeção científica internacional. Confesso que não tenho uma opinião formada. De qualquer forma, o programa do governo engordou a universidade e segurou muita gente boa que estava perdendo as esperanças. Favorecendo, além disso, o acesso ao ensino superior para muito mais gente ao aumentar o número de vagas nas universidades (gráfico abaixo), mesmo que de maneira desproporcional, como o Marcelo Hermes ressaltou. Pelo menos acredito mais nesse mecanismo do que nas cotas.
Para encerrar, queria anunciar o vencedor do sorteio da enquete. Roberto Berlinck, o chaveiro de erlemeyer abaixo seguirá para o seu endereço. Para os que ficarem com inveja, encomendem seus próprios chaveiros laboratoriais de patchwork. No mais, não percam o próximo concurso.
Pensamento de Segunda
Como é possível que haja pessoas que nem refutam logicamente uma argumentação e nem aceitam as suas conclusões?
Ayn Randt
Pensamento de Segunda
Fatos inexatos são muito prejudiciais à ciência, já que, em geral, resistem por muito tempo; mas visões incorretas, desde que sustentadas por alguma evidência, geram pouco prejuízo, pois todos se ocupam do saudável prazer de refutá-las.
Charles Darwin
Quais os saberes biológicos e didáticos que o biólogo deve constituir?
Apontar tópicos específicos seria tão exaustivo quanto uma reunião pedagógica, para isso existem os documentos do MEC e CFBio, os índices dos bons livros textos e as ementas. O que um formando em biologia precisa é de ferramentas específicas e grandes temas. Eu listaria quatro temas centrais que as disciplinas de Ciências Biológicas deveriam rodear, estes quatro temas deveriam ser tão exaustivamente explorados ao longo de uma graduação que se sedimentariam naturalmente na consciência dos alunos: Evolução biológica, níveis de organização da vida desde célula até biosfera, diversidade biológica e leis da hereditariedade. Como toda lista, esta está incompleta e sujeita a críticas. Façam bom uso do espaço para comentários.
Fora esses tópicos eu sugiro que algumas ferramentas sejam fortemente recomendadas aos estudantes: senso crítico, raciocínio e busca pela informação. O senso crítico ajudará o profissional que está sendo formado a duvidar sempre, primar pelo método científico, não engolir argumentos de autoridade ou falaciosos em geral. O raciocínio significa estimular o estudante , não só a saber conceitos, mas também conectá-los de maneira a resolver problemas mais reais. O gosto pela informação o ajudará a manter-se atualizado numa situação de progresso do conhecimento tão acelerado que pouco tempo parado significa obsolescência cognitiva. Com estas ferramentas e conhecimentos os profissionais que se formarem estarão muito bem munidos para o futuro.
Como deve aprender biologia aquele que em um futuro próximo dedicar-se-á a ensiná-la?
Com prazer! Essa seria minha resposta mais imediata, mas vou elaborá-la. Existem muitos livros de Zoologia de Vertebrados com muitíssimas informações, possivelmente mais informações desse assunto do que cabe na minha cabeça. Por que então minha disciplina não é apenas uma leitura destes excelentes livros? Acredito que o que difere um curso da leitura de seu livro texto é a emoção, o prazer. Nas minhas aulas posso emocionar com uma sinfonia de cantos de anfíbios ameaçados de extinção, posso cativar com fotos de mamíferos fofos, posso intrigar com a simulação de uma expedição naturalística e fazer rir com um cladograma de sapatos chulerentos. O Pough não pode nada disso em sua encadernação de enésima edição da Vida dos Vertebrados.
Às vezes vale a pena abrir mão de um pouco do conteúdo para encantar sua audiência. Se ela se apaixonar pelo assunto, o que não foi possível ensinar como se deveria, ela irá buscar por interesse próprio porque o professor cumpriu este papel de encantar.
A grande dificuldade reside em saber encantar e em encantar a todos. Quanto ao segundo problema eu já lhes alivio: vocês não conseguirão. É impossível tocar a todos do mesmo jeito, uns sempre se motivarão mais do que outros, isso é natural. Cabe ao professor diversificar as experiências de forma a tentar abraçar a maior parte da sua plateia, mas cabe também a leveza de espírito de saber-se humano e sujeito a incapacidades. Já o saber encantar eu vejo mais como uma auto-sondagem. Pergunte-se por que você ama tanto aquilo que ensina, começar por aí já é um excelente caminho.
Que biologia deve saber um futuro professor de biologia?
As semanas que antecedem o início das aulas são características pela realização das reuniões pedagógicas. Essas reuniões podem ser maçantes e pouco produtivas, mas não precisam ser assim, é apenas uma questão de organização e proposição de objetivos. Aliás, para os leitores em algum grau ligados à realização de reuniões, sugiro o livro da série Você S/A “Administre seu tempo” e “Trabalho em equipe” e o livro de administração da vida acadêmica do Gilson Volpato. Há outras dicas boas neste site, de repente vale a pena mandar essas referências para seus chefes de um e-mail anônimo como uma crítica construtiva. Este ano, nossa coordenadora pedagógica nos sugeriu uma lista de reflexões que eu resolvi responder via Ciência à Bessa. Fica assim documentado que eu fiz o meu dever de casa.
Pergunta 1) Que biologia deve saber um futuro professor de biologia?
Acredito que o conhecimento que deva ser exigido de um futuro professor de Biologia seja como os oceanos do Cambriano, muito vastos, mas não necessariamente profundos demais. O profissional que se lança nessa carreira pegará amanhã aulas de ciências para a 5ª série fundamental sobre ciclo da água, depois um pré-vestibular em genética, a seguir botânica para o 1º ano, óptica para a 8ª série e por aí vai. A diversidade de temas cobrados será grande, portanto não será possível aprofundar-se em demasia.
Por outro lado, temo bastante as políticas do MEC para os cursos de licenciatura que preveem uma carga horária assombrosa de disciplinas pedagógicas enquanto que os assuntos daquela formação ficam resumidos a poucas aulas. Em biologia, por exemplo, o Conselho Nacional de Educação regulamentou acerca dos conteúdos mínimos para licenciados. Exige-se um mínimo de 400 horas de prática docente contra 40 horas de zoologia de vertebrados, a minha disciplina na UNEMAT. Acredito que esta medida visa formar excelentes professores, mas sabe-se lá do que! Pessoas pedagogicamente bem preparadas para lidar com a sala de aula, mas que terão muito trabalho em conhecer bem o conteúdo que ministrarão.
Qual a medida certa desta profundidade de conhecimentos então? Difícil responder, mas vou pela fala de uma professora minha que merece um pensamento de segunda. “O professor precisa saber, saber que sabe e saber acima de tudo que o aluno não precisa saber tudo o que ele sabe. O conhecimento do professor precisa ir até o ponto que lhe dê o conforto de saber tudo o que precisa ensinar e uma margem de segurança.” Era o que nos dizia a Prof. Sônia Lopes, autora de um dos livros-textos mais usados em Biologia.
No mais, acredito que o professor deva aprender sua própria maneira de encantar o estudante, mostrar como é belo o conhecimento, falar aos seus corações, além de seus cérebros. Sendo bem sucedido nisso, do resto o tempo toma conta.
Doutores e o mercado de trabalho- Enquete
Passei a semana no Encontro Brasileiro de Ictiologia, em Manaus, e nem ia postar nada porque o evento me tomou muito tempo. Resolvi pelo menos soltar aqui um comentário para a apreciação de vocês e para instigar as discussões.
Vivenciei desde o término da minha graduação e minha pós um período de transição entre a insegurança de um futuro incerto no qual havia muito pouca vaga nas universidades e um frenesi de concursos relacionados ao Reuni do governo federal. Este sim um programa de facilitação do acesso ao ensino superior que eu acredito. Até o início do século muitos colegas que eu via terminando o doutorado eram aprisionados em uma série de pós-doutorados que não terminavam mais (conheci pessoas que fizeram 7 pós-docs, DCR’s e JP’s). Muitos colegas se desesperavam com a falta de perspectiva ou não tinham sua bolsa aprovada pela FAP e deixavam a vida acadêmica. Isto era um desafio aos estreantes, que não enxergavam muito futuro na carreira de pesquisador ou docente do ensino superior. Só permaneciam no processo os mais convictos.
Após 2003, com o Reuni, as vagas começaram a surgir de maneira a fixar melhor o pessoal qualificado em nível superior. Apareceu uma luz no fim do tunel. Isso tudo me ocorreu nas conversas dos happy hours do congresso. As festinhas, que antes eram palco de discussão de oportunidades de pós-doc e sonhos de uma vaga numa universidade, esse ano eram palco de discussão sobre universidades jovens, estruturação de laboratórios e esforços pioneiros em locais menos tradicionais em pesquisa.
Resta agora a incerteza nova dos pesquisadores que estão se formamndo nos próximos anos.
Gostaria muito das opiniões de vocês abaixo nesta enquete sobre o futuro profissional dos cientistas. A enquete termina dia 20 de fevereiro. Quem responder pode deixar um comentário abaixo que ao final da enquete irei sortear um brinde cujo sorteado será avisado por e-mail.
Afrodescendente
Ao Carlos
Para mentes competentes a cota é sempre de 100%
O avaliador olhava impaciente pela terceira vez o item da ficha de inscrição no vestibular que dizia respeito às cotas. Alternava seu foco entre o papel em suas mãos e o rapaz sentado à sua frente, seu cérebro quase fervia num misto de raivoso e intrigado. O rapaz diante do avaliador era magro, cerca de um metro e oitenta. Cabelos bem negros de fios grossos espetados em sua cabeça. Tinha um maxilar quadrado e decidido contornado por uma suave tonalidade azul da barba bem aparada, mas espessa. A boca era estreita como que prenunciando que o rapaz tinha mais a mostrar do que a dizer. Os óculos escondiam parcialmente os olhos miudos de oriental que pareciam se espremer para enxergar melhor os detalhes do mundo. Ele vestia uma calça jeans e camiseta com o que parecia um cartoon com uma piada em inglês sobre ciência que o avaliador não conseguiu entender, mas o rosto e o braço deixavam ver a pele bem branca. Na folha diante de si, no entanto, o avaliador via assinalada a opção de cotista e, em seguida a de afrodescendente.
– Foi o senhor que fez sua própria inscrição no vestibular? – Perguntou enfim dando início à entrevista.
– Fui. – Respondeu o rapaz, que também era mais velho do que a média dos candidatos que participavam das entrevistas.
– E identificou-se como cotista, e afrodescendente?
– Sim.
– O senhor é afrodescentente? – Uma dobra na testa do entrevistador traiu seu disfarce de sentimentos.
– Exatamente. – O rapaz apontava com o indicador da mão esquerda a alternativa marcada na folha de inscrição.
O avaliador suspirou ruidosamente. Em seguida folheou um pouco mais a pasta com o nome do rapaz na capa. Eram os resultados das outras avaliações: prova de múltipla escolha, redação, prova de segunda fase.
– O senhor teve excelentes notas nas provas, escreveu uma redação muito boa. Tem uma pontuação suficiente para ser aprovado em qualquer curso desta universidade, independente de ser ou não cotista. Já esperava que fosse tão bem?
– Esperava ir bem. – Disse o rapaz resoluto.
– Então por que se inscreveu como cotista? – O tom de voz do entrevistador era irritado.
– Porque era um direito meu. – Retrucou olhando o entrevistador nos olhos sem alterar o tom de voz, nem irritando-se em retribuição, nem sucumbindo.
– Era seu direito entrar como cotista?
– Sim.
– Era seu direito alegar afrodescendência?
– Sim.
O avaliador afundou na poltrona escondendo as carótidas saltadas no pescoço com a pasta do candidato. O que o impediu de enxergar uma sutil elevação dos cantos da boca do rapaz.
– Muito bem, fale-me sobre sua família. Quando foi que ela saiu da África?
– Bem, os registros não são muito precisos, mas saímos por volta de cem mil anos atrás. – Respondeu o rapaz.
– Cem mil anos! Isso só pode ser uma brincadeira! Seus parentes deixaram a África há cem mil anos e vieram para o Brasil? – O avaliador tinha o olhar vidrado e quase espumava de raiva.
– Não, antes eles passaram pela Ásia por várias gerações. Estima-se que chegaram à China cerca de 70 mil anos atrás e ao Japão 10 mil anos depois. Ao Brasil minha família só chegou bem mais recentemente, há não mais de um século. – Explicou o candidato.
– Então o senhor confirma que sua família é japonesa? – A pergunta tinha ares de vitória.
– Minha ascendência é africana. Meus ancestrais tiveram uma passagem pelo oriente, mas vieram da África. – Retorquiu o rapaz.
– Qual o nome de seus pais?
– Jiyu Shiso e Antônio Koshowaizu.
– E você é afrodescendente?
– Sim. – Afirmou novamente o rapaz sem se deixar cansar.
– Para mim já chega. Vou chamar o superintendente.
Seguiram-se pelo menos vinte minutos de espera na sala vazia. Era possível ouvir a voz do entrevistador explicando o caso ao superintendente, que respondia com uma voz grave, cavernosa. A espera encerrou-se com a entrada de sopetão do superintendente na sala, quase pondo abaixo as paredes de divisórias que delimitavam o cubículo. O superintendente vestia uma calça social e sapatos baratos desses que se compram em lojas de departamento. Era obeso e sua barriga ameaçava arrebentar os botões da camisa listrada que ainda ostentava dois círculos de umidade sob as axilas. Seu rosto redondo era encimado por uma careca margeada pelo que lhe restara de um cabelo preto e ensebado. Ele não estava feliz.
– Olhe aqui, rapaz. Esta é uma instituição séria. Você quer me convencer de que é um afrodescendente e que sua família emigrou da África há 100 mil anos, o que lhe dá o direito de entrar nesta universidade como cotista?
– Exatamente, senhor. – O pronome de tratamento soava mais como uma afronta do que como respeito.
– Inicialmente achei que você fosse um desses analfabetos que precisam se escorar em algo para conseguir as coisas. Achei que queria usar a cota para entrar na universidade por não ter competência para ingressas sem ela. Mas suas notas me apontam algo muito pior. O senhor é um rebelde que só quer esculhambar com o trabalho dos outros. Um desses ratos que se diverte encontrando brechas legais e se enfiando por elas, mesmo podendo fazer as coisas direito, só porque sabe que não podemos refutar se você se considera um afrodescendente. Pois já vou lhe avisando, aqui não é lugar para quem quer brigar contra moinhos de vento, rapaz!- Bradou o homem.
– Lamento por isso, senhor.
– Você não me provoque, garoto. O que quer dizer com “Lamento por isso”?
– Pensei que a universidade deveria ser o último front de batalha contra os moinhos de vento, senhor. Aquele onde não só os enfrentamos, mas os derrotamos. – Os olhos do rapaz faiscavam e ele não controlou um sorriso.
– Você percebe que se te aprovo coloco em cheque todo o sistema de cotas? Percebe o quanto este sistema assegura que mais pessoas tenham acesso igualitário ao ensino superior no Brasil? – Perguntou o superintendente.
– Mas o vestibular é uma ferramenta de seleção dos melhores para ingressar na academia, não uma ferramenta para que todos tenham acesso à universidade. Se a intenção era dar oportunidades paritárias um sorteio seria mais adequado. Ou então que sejam oferecidas vagas a todos criando mais universidades. – Era surpreendente como a clareza de raciocínio do rapaz era tão grande e, ainda assim, seu interlocutor o compreendia tão pouco.
– Pois bem, você tem algo para nos convencer dessa história estapafúrdia que nos contou? – Se a raiva pela petulância do rapaz e o atordoamento pela resposta anterior não cegassem o superintendente, talvez ele percebesse uma ponta de adimiração pelo candidato raiar.
O rapaz abriu sua pasta e espalhou sobre a mesa alguns artigos científicos sobre as primeiras migrações de Homo sapiens, a colonização das ilhas da Indonésia e Oceania, a Migração pelo estreito de Bering para as Américas. Eram periódicos como a Nature, Proceedings, Science, capítulos de livros clássicos de antropologia e evolução humana. Uns traziam dados de DNA mitocondrial das populações, outros datavam esqueletos fósseis escavados, outros ainda seguiam rastros de ferramentas, arte rupestre e fogueiras. O volume de argumentos era gigantesco.
Uma
semana depois o edital divulgado pelo jornal local estampava o nome do rapaz na lista dos aprovados.