Mala vazia com pão
Acabava de ser atendida. A velhota arrumava os papéis que a funcionária dos correios lhe havia dado.
“Ainda lha roubam”, disse eu. Que não deixasse a mala abandonada no banco que estava a meu lado. Era perigoso.
Voltou-se e sorriu.
A cobrir a cabeça um lenço, estranhamente colorido para quem tem aquela provecta idade, ainda deixava ver os óculos desanimados no nariz.
“Não tem nada, está vazia, menino…”, desculpou-se perante a minha preocupação, enquanto me mostrava o íntimo da mala.
Lá dentro apenas um pão embrulhado em saco de plástico transparente. Um arrepio de vergonha, pela intimidade exposta, correu-me de alto a baixo.
Apenas uma mala vazia com pão.
E ninguém lhe roubaria o pão.
As cartas que necessitava enviar roubaram-me a mais conjecturas e vergonhas, enquanto a velhota saía.
De regresso ao Museu, parei por instantes na banca de um vendedor ambulante de livros usados, no Príncipe Real.
Desliga-me o cérebro, como costumo dizer, e dá-me prazer o caçar livros.
“O senhor desculpe?”. Olhei para o lado mas não era a mim que se dirigia.
A mesma velhota do correio.
“O senhor desculpe, mas sabe a que horas vem o seu colega?”, insistia com o vendedor ambulante.
” Não sei, minha senhora. Não sei nem quero saber!”, respondeu ele de forma seca, deixando perceber que não nutria pelos seus colegas de transacção bibliográfica uma especial simpatia.
“O senhor desculpe, mas sabe a que horas vem o seu colega? É que eu trouxe um bocado de pão para um cãozinho que ele tem.”
Imagem – Elliott Erwitt/Magnum Photos
Na China II – Marte é um Dragão
Philip K. Dick estava certo quando construiu diálogos na língua híbrida futurista em Blade Runner: misto de chinês e espanhol.
Voltei à Terra e não fiz bem a descompressão.
Rodeiam-me neons embrulhados em pauzinhos;
búfalos puxados por cabos USB;
incapacidades de dizer não negadas com sorrisos de olhos rasgados;
miríades de gentes aos berros cheias de ausências;
calmas nervosas em acelerações esperadas;
surpresas incontáveis e inenarráveis;
cheiros a nada e de tudo;
estar do outro lado da jaula;
coreografias kitsch em cibercafés;
pedido de roupa lavada pelo Google translator nos confins do mundo;
pratos de fungos divinos com ninfas melíferas…
P.S. – texto de Dezembro de 2006, acabado de chegar do oriente…
Peixes e tugas

Pela segunda vez num curto espaço de tempo, a nomenclatura zoológica ocupa este espaço, depois de “Chernes e ornitorrincos”.
Explico: num hilariante artigo de Ferreira Fernandes no DN, soube da troca de galhardetes, entre o colunista Tony Parsons, do Daily Mirror e o embaixador português em Londres. Por motivos que aqui não repetirei, o cronista britânico dirigiu-se ao representante luso nos seguintes termos: “Feche a sua estúpida boca de comedor de sardinhas.” Não terá tomado muito chá este Tony Parsons.
O provérbio português afirma que “A mulher e a sardinha nem a maior nem a mais pequenina”, apoiando que o ponto médio da distribuição de tamanhos da sardinha será a melhor em termos gastronómicos. Quanto às mulheres talvez não seja tão verdade como isso. Ao jornalista inglês faltou um pouco de meio-termo, pois ansiava que o embaixador tivesse afastado a brasa da sua sardinha e, já agora se possível, sem a comer…
Peixe não puxa carroça, mas neste caso o cronista Daily Mirror sem dúvida que a puxou …
Estes mimos zoo-gastronómicos acordaram outras memórias da relação cultural dos portugueses com os peixes.
Em visita familiar ao Brasil, e para além de habitual repertório de anedotas sobre lusitanos, foi avisado de que os nossos conterrâneos eram frequentemente chamados de “papa-bacalhau” devido à nossa paixão por aquele peixe.
Há cinco anos atrás, encontrava-me a trabalhar no American Museum of Natural History, quando outra referência ao fiel-amigo e os portugueses, foi-me introduzida por uma zoóloga canadiana. Durante a nossa apresentação, fui brindado com “Ah, vocês comem muito bacalhau, não comem? É que os stocks estão quase a desaparecer por vossa causa!” Depois do aperto-de-bacalhau literal, tentei argumentar que o bacalhau era muito mais do que um mero alimento em Portugal, que o papel deste peixe na vida dos portugueses não se limitava apenas a satisfazer a gula de uma qualquer refeição. Como castigo desta argumentação, pouco tempo depois andava eu, desesperado de desejo, pelos supermercados mexicanos de Brooklyn à procura de uma mísera posta de bacalhau…
Continuando em ambiente ictiológico, sempre que num congresso ou numa revista científica um grande especialista opina, é habitual que os colegas portugueses o designem por truta. Não imagino a origem de tal designação nem o porquê de sermos um povo que apesar de venerar dois peixes de mar – o bacalhau e a sardinha – utilizarmos um peixe de rio como sinónimo de perito.
Paradoxalmente ao que se diz no ambiente académico, aprendi que “A truta e a mentira, quanto maior melhor”. Resta-me apenas continuar a aprender com os trutas da minha área…já agora, de todas as áreas.
Apesar de se poder cair na brejeirice, a alusão piscícola que mais me agrada, é a proferida pela comunidade masculina sempre que se avista uma representante do sexo feminino de bela morfologia: “Mas que faneca!”.
Concluindo só me resta concordar com o dito “ O peixe deve nadar três vezes: em água, em molho e em vinho.”
Imagens:
EGEAC
Pieter Bruegel – “Les gros poissons mangent les petits” (1557)
Prato de bacalhau com grão
Cate Blanchett, actriz de “Little Fish”
Gustave Klimt – “The Blood of Fish” (1898)
Opção ou como já foi a segunda figura do Estado
Fui chamado à atenção da resolução Conselho da Europa “The dangers of creationism in education (Doc. 11375)”, a qual teve o seguinte resultado, em que destaco os deputados portugueses:
–João Bosco Mota Amaral votou contra;
-Maria Manuela Melo e Ana Catarina Mendonça votaram a favor.
Caro Senhor ex-Presidente da Assembleia da República, João Bosco Mota Amaral,
Não me revejo de todo na sua posição.
Apesar de ter sido a segunda figura do estado português de 2002 a 2005, sinto vergonha pelo sentido de voto na referida resolução do Conselho da Europa.
Mais vergonha sinto por um português ter integrado as “fileiras” criacionistas – espero que de forma involuntária.
O Plágio, o Bacalhau e a Rã
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 18/01/2007)
O plágio humano pode ser uma homenagem. Pode ser um reconhecimento. Pode ser agradecimento público. Pode ser feito às claras.
Mas não é nada disso.
É antes uma forma de usurpação do trabalho alheio. Um conceder de auto-indulgência à mediocridade e ao deixa-andar. Um permanecer no contentamento da pasmaceira intelectual.
O acelerar da tristeza da mediania.
O caso de aparente plágio, e digo aparente porque ninguém, à excepção do Provedor do Público o categorizou assim, muito menos o Sindicato dos Jornalistas, levado a cabo pela jornalista Clara Barata, despertou em mim o desejo de procurar exemplos naturais que estivessem relacionados com plágio.
No artigo que escrevi nestas páginas há uns meses e intitulado Falsificações Naturais referi alguns exemplos de cópias e imitações levadas a cabo na Natureza.
Nele referi casos de Evolução Convergente como, por exemplo, os membros anteriores das aves, dos morcegos e dos pterossauros (répteis voadores, parentes e contemporâneos dos dinossauros).
Um dos casos de evolução convergente que agora quero referir compreende proteínas que evitam o congelamento em águas muito frias.
Este tipo particular de glicoproteínas anticongelantes – AFGPs – permite aos peixes sobreviver em águas com temperaturas tão baixas quanto -1,9º C (a concentração de sal na água do mar baixa o ponto de congelação da mesma…).
Existem diferentes tipos de AFGPs que evitam o congelamento a diversos seres vivos – peixes, insectos e plantas – e em 1997 foi publicado no PNAS o caso de dois grupos de peixes filogenética (não-aparentados) e geograficamente distantes que possuem o mesmo tipo de anticongelante.
Este caso de evolução convergente tem como um dos protagonistas o denominado bacalhau do Árctico – Boreogadus saida (parente do bacalhau do Atlântico, Gadus morhua). O outro actor desta história de plágio natural habita o lado oposto do planeta – a Antártida – e dá pelo nome de Dissostichus mawsoni.
O mais interessante da referida publicação científica é o facto destes dois peixes – o do pólo norte e o do pólo sul, se assim os podemos chamar – terem desenvolvido o mesmo tipo de proteína anticongelante apesar de estarem separados quer ao nível da proximidade física quer “familiar”.
Outro facto curioso é de estes investigadores terem concluído que a mesma AFGP se originou por um percurso genético diferente nos distintos grupos bem como em momentos diferentes do passado. No caso do Dissostichus mawsoni do continente gelado do sul entre os 7 e os 15 milhões de anos; no caso do bacalhau do Árctico foi mais recente, há “apenas” 2 milhões de anos. Grupos e locais distintos utilizam as mesmas “armas”!
A rã do género Dendrobates pode ser uma verdadeira engenheira química. Esta variedade habita a América do Sul e América Central possuindo pele venenosa. Esta toxicidade cutânea tem fundamentalmente dois objectivos: repelir microrganismos que possam atacar a sua pele húmida e, por outro lado, defender-se dos ataques de predadores.
A matéria-prima para esta guerra química provém da ingestão que as rãs fazem quer de formigas, quer de artrópodes. O que investigadores descobriram é que os alcalóides -substâncias químicas tóxicas- não se apresentam na mesma forma em que foram ingeridas. No PNAS de Setembro de 2003, os investigadores relatam que a rã não só é capaz de ingerir os tóxicos como ainda os aperfeiçoa – até cinco vezes mais potentes!
A “maquinaria” celular – enzimas – destas rãs é verdadeiramente notável uma vez que não se limita a fazer “cortar e colar” dos venenos das formigas; melhoram-nos e aprimoram-nos!
Este caso não é plágio do mundo natural e deve servir-nos de referência- aproveitar o que há de bom, modificá-lo e produzir algo de novo.
O aparente silêncio a que a maioria da comunicação social remeteu o referido aparente plágio só me leva a concordar com Clara Ferreira Alves, que na última edição da revista Única do Expresso, escrevia “No mundo dos patrocínios e da subordinação ao economicismo, o jornalismo foi-se diluindo em formas que renegam e abandonam esse corpo de princípios e preceitos que fez o apogeu do jornalismo como quarto poder, e que determinará a sua queda e ascensão tecnológica dos “media” concorrentes.”
Esperemos que não.
Que a Wikipedia e outras formas de massificação da informação nos dias que correm sirvam para que aproveitemos o melhor, o transformemos e criemos algo de verdadeiramente original.
Nota – PNAS refere-se à publicação científica americana Proceedings of the National Academy of Sciences.
Imagens: identificada na primeira e a segunda daqui