Gu-gu, dá-dá!

“Não se deve falar de forma infantil com as crianças!”
Sempre me fez confusão esta afirmação. Se são crianças porque não devemos conversar com elas de uma forma infantil?
Este dilema não parece existir na comunicação dos macacos Macaca mulatta com a sua prole.
Investigadores do Comparative Human Development, da Universidade de Chicago, avaliaram formas de comunicação entre fêmeas e crias daquela espécie, tendo verificado que as fêmeas utilizam tipos particulares de sons para comunicarem e interagirem com os juvenis. Este comportamento é comparável ao dos humanos, quando produzem os famosos “gu-gu dá-dá’s” dirigindo-se aos bebés, vocalizando de forma mais doce e minimalista – por vezes raiando o cómico, diga-se.
No caso dos macacos as mudanças de sonorização visam estimular o contacto com os juvenis, por diferentes fêmeas do grupo.
Este estudo veio também revelar que as progenitoras raramente utilizam as vocalizações “infantis” para a sua própria prole empregando-as antes para outros juvenis do grupo.
Os investigadores interpretam esse facto como sendo resultando da ausência da necessidade de promover o contacto com a sua própria cria – esta já a reconhece – mas necessitando de o fazer com crias de outras fêmeas.

Referências

J. C. Whitham, M. S. Gerald, D. Maestripieri. 2007. Intended receivers and functional significance of grunt and girney vocalizations in free-ranging female rhesus macaques. Ethology, 113: 862-874, 2007

Entrevista com investigador – Vídeo

Apanhados no radar

(interrupção esporádica do pousio)

O suor corre-lhe pela cara, vendando-o quase por completo. Corre, tentando escapar aos sons ensurdecedores que, atrás de si, estão cada vez mais perto. As pernas não lhe respondem, indo atrás e à frente como pêndulos de um relógio acelerado. Atrás de si, as patas do perseguidor não param, mas a sua amplitude é maior do que a da presa. A distância entre ambos é cada vez menor, não havendo tempo para fugas ou ocultações na vegetação.

Esta cena podia ser de um qualquer filme, mas não é. É parte do imaginário que se pode fazer a partir dos dados científicos publicados a 22 de Agosto.
Biólogos e paleontólogos da Universidade de Manchester propõem velocidades diferentes das até aqui propostas para os sáurios extintos.
Utilizando modelos computacionais – algoritmos evolutivos – baseados em dados de animais actuais (como, por exemplo, a ave corredora australiana Ema), foram propostas novas velocidades máximas para algumas espécies de dinossáurios. Segundo esta modelação, o Compsognathus, com apenas 3 kg de peso, podia atingir uma velocidade de mais de 60 km/h, ou seja superior a qualquer animal bípede actual.
Tal como os atletas de alta-velocidade ou os jogadores de futebol, também a velocidade máxima atingida pelos dinossáurios é um factor de extrema importância. A fuga da presa ou o sucesso do predador estão dependentes da velocidade e contribuem para um maior ou menor sucesso evolutivo dos animais envolvidos.
Mas como calcular a velocidade de animais que nunca cruzaram uma meta?
Desde há mais de um século que os paleontólogos têm tentado estimar as velocidades atingidas pelos dinossáurios.
Estas estimativas têm sido propostas a partir de medição de pegadas e do passo obtido na pista, do estudo da estrutura (forma e tamanho) anatómica dos dinossáurios e destas com as de animais actuais, cálculos das forças suportadas pelos matérias envolvidos (leia-se ossos), localização das inserções musculares, entre outros métodos.

Pressente-o. Imagina o toque, tentando olhar de soslaio. Apesar de correr sente-se gelado. Muda de direcção subitamente. Ganha alguma distância.

Trabalhos de John Hutchinson e colegas da Royal Veterinary College em Londres tinham sugerido, em 2002, para a impossibilidade de o T. rex poder atingir velocidades superiores a 40 km/h. Apesar de não muito estimulante, quando comparada com as velocidades atingidas nas nossas auto-estradas, é de referir que Francis Obikwelu atinge “apenas” idênticos 40 km/h.
Animais grandes não se deslocam necessariamente mais velozmente que animais pequenos. Veja-se por exemplo os elefantes. Segundo Hutchinson, os elefantes não correm; apenas aumentam a cadência do seu andar, adquirindo uma maior velocidade. Este investigador calculou ainda que para um T. rex atingir uma velocidade de 70 km/h necessitaria possuir 86% do seu peso total em músculo – um autêntico Schwarzenegger, biologicamente pouco viável!
Para além destas impossibilidades na ligeireza, também as mudanças súbitas de direcção necessitariam de segundos para serem efectuadas, impossibilitando o grande dino de súbitas mudanças de direcção.

O terreno era agora lamacento. Escorregou, ficando prostrado no meio do lodo e sedimentos. Atrás de si, o ruído das passadas diminuiu de cadência.

As velocidades, inferidas a partir das medições feitas nos rastos de pegadas, são normalmente baixas. Estas medições tradicionalmente deixavam entender que os dinossáurios eram animais lentos.
Em Portugal a velocidade máxima inferida a partir de pegadas é de cerca de 14 km/h num trilho de terópode (dinossáurio carnívoro e bípede) do Cabo Espichel. Rastos de dinossáurios saurópodes, como o dos da Pedreira do Galinha, apresentam velocidades máximas de 5 km/h. No entanto estes dados não significam que os dinossáurios eram animais lentos. O que os paleontólogos explicam é que as condições geológicas para a preservação das pegadas (icnitos) são diferentes das necessárias á preservação dos ossos. Os sedimentos favoráveis à preservação daquelas marcas são os de ambientes lamacentos ou semelhantes. Nestes ambientes a movimentação é mais difícil pois existe o risco de o animal escorregar. Assim, é natural que as velocidades de deslocação calculadas a partir de pegadas de dinossáurios sejam, na sua maioria, velocidades baixas.

Por algum motivo o som abrandava atrás de si. Estava cada vez mais distante. Escapara, no meio da lama.
Referências

Hutchinson, J. & Garcia, M. 2002. Tyrannosaurus Was Not a Fast Runner. Nature 415: 1018-1021.

Hutchinson, J.R., D. Schwerda, D. Famini, R.H.I. Dale, M. Fischer, R. Kram. 2006. The locomotor kinematics of African and Asian elephants: changes with speed and size. Journal of Experimental Biology 209: 3812-3827

Sellars, W.I. & P.L. Manning. 2007. Estimating dinosaur maximum running speeds using evolutionary robotic. Proceedings of the Royal Society B. DOI: 10.1098/rspb.2007.0846

Santos, V. Person. Commun.

Rápidas e promíscuas

 As chitas (Acinonyx jubatus) constituem um dos animais favoritos dos documentários da vida selvagem.
Graciosas, esguias, tornam-se facilmente em heroínas das novelas da vida selvagem.
Para além disso são, se não o mais rápido, um dos animais terrestres mais velozes – atinge como pico de velocidade 112 km/h.
Esta especialização na velocidade acarretou perda de resistência e de robustez – as perseguições raramente duram mais de 15 segundos e escassas centenas de metros.
Socialmente, as chitas apresentam também algumas peculiaridades. Ao contrário de outros felídeos, em que o território ocupado pelos machos excede os das fêmeas, no caso das chitas as fêmeas são verdadeiras “rainhas” territoriais – no parque nacional do Serengueti verifica-se uma média de 833 km2 para as fêmeas contra apenas 37 km2 para os machos. As estratégias dos machos para a preservação de território passam por associação de vários indivíduos, geralmente grupos de irmãos.
Os imensos territórios ocupados pelas fêmeas, quando comparados com os dos machos, parecem facilitar o encontro de parceiros masculinos.
Para além de terem menos território, os machos apenas contactam com as fêmeas durante a época de acasalamento não contribuindo para a alimentação e protecção das crias.
A análise genética das fezes das crias de chita, no Serengueti, permitiu concluir que em cada ninhada a paternidade é múltipla, ou seja, as fêmeas tinham copulado com vários machos.
Este comportamento, poliandria, pode ser justificado para evitar a morte das crias por parte dos machos que não sejam os progenitores.
Por outro lado aumenta a variabilidade genética, potencialmente favorecedora de vantagens evolutivas na descendência.
A poliandria, parece ajudar igualmente a manutenção das coligações de machos pois, mantendo-se em grupos, terão maiores oportunidades de acasalamento.
O acasalamento das chitas é um fenómeno que raramente foi observado na natureza sendo estas conclusões obtidas indirectamente pela análise do património genético das crias.

Fonte: Gottelli D, Wang J, Bashir S & Durant SM (2007) Genetic analysis reveals promiscuity among female cheetahs. Proceedings of the Royal Society of London B doi:10.1098/rspb.2007.0502

Imagens: http://planet-earth.nnm.ru/dikie_koshki_i_kotyata_chast_5_gepard_remake

Grandes Opções

Antechinus stuartii

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 10/5/2007)
Situações há que impõem que se façam escolhas e renúncias.

Já abordei algumas dessas opções, num contexto biológico, no texto “Tempos de crise – apertar o coração e o fígado”.

Eram referidas modificações fisiológicas que uma gazela do Deserto da Arábia sofre para poder suportar as duras condições daquele meio.
Contudo, não são só as condições adversas do meio-ambiente que impõem mudanças na fisiologia do organismo.
Uma das funções essenciais para todos os organismos é a reprodução – transmitir os seus genes à descendência – numa perspectiva que Richard Dawkins apelidou de O Gene Egoísta, no livro homónimo.

O Antechinus stuartii é um pequeno marsupial carnívoro que apresenta, no seu comportamento reprodutivo, alterações fisiológicas que, na maioria dos casos, conduzem a um desfecho trágico.
Tal como outros marsupiais, o Antechinus é um animal solitário e nocturno, caçando sobretudo insectos, mas também pequenas aves e répteis.

normal_Z-badoo_tealeaf-antechinusA época de reprodução deste mamífero inicia-se no final do Inverno australiano, numa época de escassez alimentar, surgindo então as primeiras modificações corporais. Um mês antes da época de acasalamento, o corpo do Antechinus macho suspende a produção de esperma. O aparente paradoxo desta mudança fisiológica pode ser explicado pela redução nos gastos energéticos. Aquele fenómeno exige do animal um dispêndio considerável de energia na produção do material biológico envolvido na reprodução.
Mas as mudanças não ficam por aqui.
Para além de suspender a produção de esperma, este animal inibe igualmente a síntese de algumas proteínas fundamentais, reduzindo ainda a actividade do próprio sistema imunitário. Estes fenómenos visam igualmente minimizar o gasto energético, com vista ao acto reprodutivo.

No entanto, a alteração verdadeiramente surpreendente é o enorme aumento de concentração sanguínea de testosterona. Esta hormona, produzida nos testículos e glândulas supra-renais, é conhecida popularmente como a hormona masculina e está associada ao aumento da libido e da agressividade.
Resumindo: o Antechinus macho cessa parte das actividades metabólicas, com o objectivo de preservar a sua energia, ao mesmo tempo que aumenta a produção de hormonas ligadas à necessidade obsessiva de se reproduzir.
Apesar de solitário durante a maior parte do tempo, a época reprodutiva é bastante activa, chegando mesmo a ser violenta. Durante esse período, os machos socializam, formando “arenas de cortejamento” onde disputam as fêmeas.

Os machos procuram freneticamente as fêmeas, utilizando a denominada cópula prolongada – entre 5 e 14 horas – com o fim de evitar que outros machos copulem.
Contudo, todas aquelas alterações fisiológicas têm custos biológicos. Após a época de acasalamento, os machos apresentam-se doentes e com parasitas, devido à depressão a que havia sido sujeito o seu sistema imunitário, observando-se que a maioria não sobrevive ao primeiro ano. Pelo contrário, em cativeiro, os Antechinus podem atingir cinco anos de longevidade.
Há, assim, um investimento biológico quase total na reprodução, tão grande que os machos não sobrevivem ao primeiro ano e aqueles que sobrevivem apresentam-se estéreis e sem viabilidade.
Os “super-machos”, carregados de testosterona, ficam desta forma condenados pelas suas opções.

Tal como os Antechinus “cortam” parte das suas funções vitais para poderem ter prole, apesar das consequências trágicas, também uma sociedade que tem de fazer cortes enormes em sectores fundamentais como a Educação e a Saúde pode correr o risco de não sobreviver.
Desejo que essas opções conduzam não à morte, mas à sobrevivência da “espécie” Portugal.

Referências
Kerr, J.B., and Hedger, M.P. (1983). Spontaneous spermatogenic failure in the marsupial mouse Antechinus stuartii Macleay (Dasyuridae, Marsupialia). Austral. J. Zool. 31, 445-466.

Bradley, A. J., I. R. McDonald, et al. (1980). Stress and mortality in a small marsupial (Antechinus stuartii, Macleay). Gen Comp Endocrinol 40(2): 188-200.

Ilustrações
Rui Ricardo e ESD

O Plágio, o Bacalhau e a Rã

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 18/01/2007)
O plágio humano pode ser uma homenagem. Pode ser um reconhecimento. Pode ser agradecimento público. Pode ser feito às claras.
Mas não é nada disso.
É antes uma forma de usurpação do trabalho alheio. Um conceder de auto-indulgência à mediocridade e ao deixa-andar. Um permanecer no contentamento da pasmaceira intelectual.
O acelerar da tristeza da mediania.
O caso de aparente plágio, e digo aparente porque ninguém, à excepção do Provedor do Público o categorizou assim, muito menos o Sindicato dos Jornalistas, levado a cabo pela jornalista Clara Barata, despertou em mim o desejo de procurar exemplos naturais que estivessem relacionados com plágio.
No artigo que escrevi nestas páginas há uns meses e intitulado Falsificações Naturais referi alguns exemplos de cópias e imitações levadas a cabo na Natureza.
Nele referi casos de Evolução Convergente como, por exemplo, os membros anteriores das aves, dos morcegos e dos pterossauros (répteis voadores, parentes e contemporâneos dos dinossauros).

g-morhua.jpgUm dos casos de evolução convergente que agora quero referir compreende proteínas que evitam o congelamento em águas muito frias.
Este tipo particular de glicoproteínas anticongelantes – AFGPs – permite aos peixes sobreviver em águas com temperaturas tão baixas quanto -1,9º C (a concentração de sal na água do mar baixa o ponto de congelação da mesma…).
Existem diferentes tipos de AFGPs que evitam o congelamento a diversos seres vivos – peixes, insectos e plantas – e em 1997 foi publicado no PNAS o caso de dois grupos de peixes filogenética (não-aparentados) e geograficamente distantes que possuem o mesmo tipo de anticongelante.
Este caso de evolução convergente tem como um dos protagonistas o denominado bacalhau do Árctico – Boreogadus saida (parente do bacalhau do Atlântico, Gadus morhua). O outro actor desta história de plágio natural habita o lado oposto do planeta – a Antártida – e dá pelo nome de Dissostichus mawsoni.
O mais interessante da referida publicação científica é o facto destes dois peixes – o do pólo norte e o do pólo sul, se assim os podemos chamar – terem desenvolvido o mesmo tipo de proteína anticongelante apesar de estarem separados quer ao nível da proximidade física quer “familiar”.
Outro facto curioso é de estes investigadores terem concluído que a mesma AFGP se originou por um percurso genético diferente nos distintos grupos bem como em momentos diferentes do passado. No caso do Dissostichus mawsoni do continente gelado do sul entre os 7 e os 15 milhões de anos; no caso do bacalhau do Árctico foi mais recente, há “apenas” 2 milhões de anos. Grupos e locais distintos utilizam as mesmas “armas”!

2123418706_c48a118323_o.jpgA rã do género Dendrobates pode ser uma verdadeira engenheira química. Esta variedade habita a América do Sul e América Central possuindo pele venenosa. Esta toxicidade cutânea tem fundamentalmente dois objectivos: repelir microrganismos que possam atacar a sua pele húmida e, por outro lado, defender-se dos ataques de predadores.
A matéria-prima para esta guerra química provém da ingestão que as rãs fazem quer de formigas, quer de artrópodes. O que investigadores descobriram é que os alcalóides -substâncias químicas tóxicas- não se apresentam na mesma forma em que foram ingeridas. No PNAS de Setembro de 2003, os investigadores relatam que a rã não só é capaz de ingerir os tóxicos como ainda os aperfeiçoa – até cinco vezes mais potentes!
A “maquinaria” celular – enzimas – destas rãs é verdadeiramente notável uma vez que não se limita a fazer “cortar e colar” dos venenos das formigas; melhoram-nos e aprimoram-nos!
Este caso não é plágio do mundo natural e deve servir-nos de referência- aproveitar o que há de bom, modificá-lo e produzir algo de novo.

O aparente silêncio a que a maioria da comunicação social remeteu o referido aparente plágio só me leva a concordar com Clara Ferreira Alves, que na última edição da revista Única do Expresso, escrevia “No mundo dos patrocínios e da subordinação ao economicismo, o jornalismo foi-se diluindo em formas que renegam e abandonam esse corpo de princípios e preceitos que fez o apogeu do jornalismo como quarto poder, e que determinará a sua queda e ascensão tecnológica dos “media” concorrentes.”
Esperemos que não.
Que a Wikipedia e outras formas de massificação da informação nos dias que correm sirvam para que aproveitemos o melhor, o transformemos e criemos algo de verdadeiramente original.

Nota – PNAS refere-se à publicação científica americana Proceedings of the National Academy of Sciences.

Imagens: identificada na primeira e a segunda daqui

Ocupas

Hermit crab in shell

(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 04/01/2007)


O período que vai entre o Natal e a Passagem de Ano passo-o entre a família, os amigos e a casa dos meus pais.

É uma altura em que o conceito de lar me diz muito – e acho que também à grande maioria das pessoas.
Aos amigos que vivem em Portugal juntam-se os novos emigrantes – os que saíram com um curso superior, tão diferentes daqueles que há umas décadas abandonavam o extremo oeste da Europa.
Mas essa é outra história.
A que quero hoje contar hoje surgiu de uma conversa com alguns desses amigos, à roda de cervejas, em que se falava de uma associação artística que surgiu e se mantém num prédio ocupado de Amesterdão.
Estes edifícios são prédios abandonados que foram (e são) ocupados por quem não tem abrigo e tiveram origem na década de 60 do século passado, especialmente na Alemanha, Holanda e Inglaterra, embora seja um fenómeno mais ou menos geral nos países desenvolvidos.
Não pretendo dissertar sobre as razões morais, económicas ou legais que estão na origem do squatting. Esta conversa lembrou-me antes os squatters que existem no mundo natural.
O primeiro de que me lembrei foi o caranguejo-eremita (género Pylopagurus).
Este crustáceo, de que existem muitas espécies, quer marinhas quer terrestres, não possui a carapaça típica dos populares caranguejos, apresentando um corpo mole, desprovido de protecção perante os predadores. Este animal desenvolveu, então, um comportamento equivalente ao dos ocupas humanos – aproveita as conchas vazias de gastrópodes. Essas conchas vão servir de “lar” ao caranguejo-eremita, protegendo-o dos perigos do meio-ambiente que o rodeia.
Quando este “ocupa” natural cresce e a concha já começa a “rebentar pelas costuras”, decide aventurar-se de novo no mercado imobiliário disponível – procura uma nova concha, desta vez com um tamanho adequado às suas necessidades.
Este comportamento de adaptação parece ser já bastante antigo, pois conhece-se pelo menos um caso (Paleopagurus) datado do Cretácico inferior (sensivelmente há 130 milhões de anos), em que fossilizaram ambos, hóspede e habitação. A casa do antepassado dos actuais caranguejos-eremita pertencia a um grupo diferente – era uma amonite – cefalópode extinto há 65 milhões de anos. Interessante é também o facto de a pinça maior (aquela que fica “à porta”) ter variado a sua forma ao longo do tempo. Assim, este gastrópode manteve um comportamento de aproveitamento de materiais naturais para a sua habitação e adaptou o seu próprio organismo às condições do imóvel natural disponível no mercado!
Mudam-se os tempos, mudam-se as casinhas!

Outro dos exemplos conhecidos de ocupação de casa alheia é o do cuco – Cuculus canorus.
Esta ave apresenta um comportamento bastante peculiar pois, ao contrário da maioria das aves, não constrói ninho. Opta, antes, por colocar os seus ovos em ninhos de outras aves.
Reed_warbler_cuckooPor mecanismos ainda não muito bem compreendidos, as fêmeas-cuco colocam os seus ovos unicamente em ninhos de espécies cuja cor de ovos não seja muito diferente da sua – mimetismo. Fazem-no provavelmente para evitar que os donos dos ninhos os detectem e abandonem, pois as fêmeas hospedeiras podem facilmente reconhecer ovos que não sejam seus.
Depois de eclodirem, os recém-nascidos cucos são muito diferentes das crias legítimas.
Paradoxalmente, os pais-adoptivos não reconhecem esta diferença na prole invasora, criando-os como se fossem seus.
Este comportamento é aparentemente contraditório em termos evolutivos, pois ao fim de alguns dias, e devido ao maior tamanho do cuco, este acaba por expulsar os seus irmãos adoptivos do ninho.
De certeza que as espécies hospedeiras anseiam uma nova lei de arrendamento!
Pais são quem cria!

O lar, seja construído, aproveitado, ocupado ou seja de que forma for, tem um valor muito importante, quer para humanos, quer para os seres vivos.

Imagens: daqui e daqui

Tempos de crise – apertar o coração e o fígado

A adaptação é uma das condições essenciais para que se sobreviva. Seja animal, planta, empresa ou relação.
Um dos ambientes terrestres com condições de vida mais inóspitas é o deserto.
As altas temperaturas dificultam a sobrevivência, as enormidades amplitudes térmicas entre o dia e a noite tornam o ambiente inacessível à maioria dos seres vivos, mas essencialmente é a falta de água que, de forma directa (para beber) ou indirecta (reduzindo o número de plantas que são a base da cadeia alimentar) condiciona a “habitabilidade” dos desertos.
Mas como é que os animais que vivem nesses ecossistemas sobrevivem a tais condições extremas?
Num artigo do próximo número de Julho/Agosto da revista “Physiological and Biochemical Zoology” são apresentadas alguns dos mecanismos de sobrevivência em ambientes desérticos.
A espécie analisada, a gazela da areia – Gazella subgutturosa marica, vive no Deserto da Arábia, um dos com condições climáticas mais extremas a nível mundial. Os investigadores verificaram que estes animais eram os que apresentavam menores perdas de água por evaporação nestes ambientes. Até aqui esta informação, embora importante, não surpreendia, pois era a resposta que se “esperava” de animais que sobrevivem em desertos.
Mas como evitar as perdas de um bem tão precioso como a água?
Em nossas casas sabemos que quando a entrada de dinheiro diminui só há uma coisa a fazer para equilibrar o orçamento – cortar nos gastos.
Pois a gazela faz exactamente o mesmo, embora deixar de ir ao cinema esteja longe dos seus pensamentos…
Estes animais, em momentos de maior carência hídrica e de alimentos, reduzem quer o peso do fígado quer o do próprio coração. As alterações fisiológicas naqueles órgãos são reveladoras de uma diminuição na taxa metabólica, ou seja na actividade celular dos organismos.
Será fácil de compreender que, tal como fazemos na economia doméstica, em tempos de necessidade estes animais apertam, literalmente onde podem – corações e fígados. Igualmente se descobriu que as gazelas, nesses tempos de crise de água e comida, aumentam o conteúdo de gordura no cérebro, proporcionado assim ao órgão fundamental a energia necessária ao seu funcionamento.
Assim as gazelas do Deserto da Arábia conseguem contornar os tempos de crise – reduzem o peso do fígado e coração e aumentam a gordura no cérebro.
Pura economia biológica.

E o Laos pariu um rato…


Sempre me disseram que ao coração de um homem se chegava pelo prato.
O que nunca me tinham dito é que também para as novas descobertas científicas se podia passar pelos mercados: um novo animal foi inicialmente descoberto graças à…gastronomia!
O Laos apresenta várias iguarias expostas nos mercados locais – ratos, esquilos, porcos-espinhos, e uns animais pouco vulgares que os locais apelidam de Kha-nyou. Estes roedores eram, até Maio de 2005, uns perfeitos desconhecidos para os cientistas – mas não para os “bons-garfos” do Laos – e foi num desses mercados que chamaram a atenção aos cientistas que adquiriram alguns exemplares.
Os Kha-nyou, cujo baptismo científico é Laonastes aenigmamus, medem cerca de 40 cm e embora não propriamente sejam ratos pertencem a uma ordem de roedores até hoje apenas conhecida pelos fósseis.
Após o estudo da sua estrutura anatómica (ossos) e ADN, os investigadores apuraram que aqueles animais pertenciam a uma família de roedores que se pensava extinta – Diatomyidae.
Os últimos membros desta família de roedores são conhecidos pelos fósseis do Miocénico do Paquistão, Índia, Tailândia, China e Japão.
Ao fim de 11 milhões de anos de “ausência”, o Kha-nyou reaparece em cena!
Animais que se julgavam extintos e “reaparecem” na actualidade recebem a designação pelos paleontólogos de Fauna Lázaro, em referência à personagem bíblica ressuscitada por Jesus.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 22/06/2006)