O Défice Certo
A necessidade de anestesiar o meu centro de tomada de decisões fez-me, uma vez mais, ligar a TV.
Pendentes imagens de flácidos corpos jorravam da caixa.
A visão de transformação corporal que aquela exibição ordenava acordou o órgão hibernante.
A crise económica actual da Europa, ou de parte dela, mais não é do que um prolongamento do concurso televisivo às realidades geográficas e sociais que são os países europeus.
Há que emagrecer, dizem os neo-económicos.
Cortem na Saúde que vos torna países menos bonitos em termos orçamentais.
Subsídios de desemprego são maus para a vossa capacidade de encantar, há que os reduzir. Educação pública faz com que vos olhem de lado na rua.
Cortem, cortem, cortem…
O reality show do momento é este: o FMI não vos deixará viver com a dieta dos últimos seis anos…
Imagem: Peter Paul Rubens, “The Drunken Silenus” (1616-1617)
Fortaleza Europa
Os pastores que não guardavam os seus rebanhos, e os seus cães de guarda, seus dos pastores que às ovelhas mordiam apenas, estão a cair. As rezes revoltaram-se, jogando o jugo para trás.
Os pastos vazios de anos de opressão não chegam agora às rezes sem guia e, como noutros tempos, viram-se para o outro lado do Mediterrâneo, em busca de melhor sorte.
Empurrados para a tolerante Europa, dão de caras com a fortaleza.
A Fortaleza Europa.
“Tunísia, Marrocos, Egito, Bahrei e Iémen continuam num clima de instabilidade e de contestação com os contestatários, liderados pela juventude, exigem profundas reformas políticas e constitucionais e lutam pela instauração da democracia no seu país.”
Referências: Asian Dub Foundation, “Fortress Europe”, Enemy of the Enemy, 2003
Imagem: daqui
Saudável Liberdade
José estava mais do que preparado para o embate que se avizinhava – a entrevista de emprego.
Nos últimos dois anos, para além de inúmeros contactos pessoais e envio de CV’s, tinha-se preparado afincadamente para o momento: cursos, especializações e até umas aulas de mandarim lhe haviam ocupado o tempo sem trabalho.
Sentou-se, carregado da sua competência, formação e atitude.
“O senhor fuma?”, perguntou o inquisidor laboral.
“Já uma pausa?”, pensou José. “Sim, fumo.”, respondeu em tom agradecido.
“Humm…Então parece que a entrevista vai ter que ficar por aqui. Sabe, a nossa empresa tem a política de não contratar fumadores. Escuso já de ver o resto do seu CV.”, debitou monocordicamente o ex-futuro-empregador.
Actualmente nos E.U.A. existe já um número considerável de empresas que negam trabalho a fumadores, chegando a realizar análises sanguíneas para se detectarem eventuais vestígios de nicotina.
Se não se podem negar os malefícios do tabaco, mas esta cruzada da saúde esconde outro tipo de controlos. Agora é o tabaco, amanhã o sal ou o açúcar, e num futuro mais próximo do que antevemos, iremos ter que provar geneticamente se desenvolveremos Alzheimer, quais as probabilidades de contrairmos cancro numa idade precoce, ou mesmo a disposição para votarmos num determinado partido.
No passado, a purificação da raça foi lema de algumas mentes doentes. Hoje, são as mentes da saúde que procuram a pureza dos genes.
Atentar contra a liberdade individual é mais fácil (e mais barato) do que educar os indivíduos para o livre arbítrio.
Relato agora um diálogo que há tempos tive com a minha cardiologista, tinha a Assembleia da República acabado de legislar sobre os teores de sal nos alimentos.
A Liberdade e a Cardiologista
Abandonei o silêncio penitente a que se remetem os pacientes.
Farto da parede muro-das-lamentações que me tapava a vista, falei.
“E o sal, doutora?”.
Não o meu; o da Assembleia da República.
“Legislaram bem. Apesar de não ser original, já que os teores de sal são já controlados em muitos alimentos…Olhe, até nos refrigerantes eles põem sal!”.
Reforçou o argumento espetando-me o peito com maior intensidade.
“Bem…”, ganhei balanço, entre empurrado pelo desconforto do ecocardiógrafo.
“Não se trata só de uma questão de Saúde Pública. É também uma questão de liberdade individual, de escolha pessoal. A seguir vem o quê? A cor dos meus boxers?”.
Agradeci encontrar-me num cardiologista e não num urologista, já que a estética cromática é uma lacuna grave da minha personalidade.
“Liberdade? O senhor sabe o custo para os contribuintes do consumo excessivo de sal? Sabe que o cancro do estômago está relacionado com teores de sal na urina, que por sua vez reflectem o consumo de sal? É caríssimo, não há dinheiro. É preferível cortar essa pequena liberdade!”.
Num instante, o meu miocárdio deve ter posto a língua de fora porque a médica me perguntou:
“Tem andado a sentir-se bem?”.
Maldita tecnologia, pensei. Não dá a mínima hipótese, qual detector de mentiras.
“Claro que tenho, doutora. O meu dealer salino está em promoções!”.
Imagem: daqui
Aprender de Ouvido
Em crianças, balbuciamos o que ouvimos, esperando que nos escutem. Praticamos futuros discursos a partir de ouvidas conversas, trauteando a música de palavras que desconhecemos, cobertos por emprestadas capas sonoras.
Vemos os nossos pais também com os ouvidos, numa aprendizagem que é conhecida por todos, enfim.
Mas não somos os únicos a fazê-lo.
As aves canoras aprendem igualmente com um adulto a arte que as irá transformar em verdadeiras bandas-sonoras ambulantes. Aprendem de ouvido, deduzo.
O que agora revelam os cientistas é a descoberta de uma zona cerebral responsável pela memorização/aprendizagem do canto pelas aves.
A novidade científica é importante para a poesia ou para a compreensão dos processos biológicos dos animais que povoam os nossos céus, arrisco. Para os colegas cientistas, o essencial desta descoberta reside em que poderá contribuir para a compreensão dos processos de aprendizagem da linguagem no ser humano. Tal como nós, nas aves canoras as zonas da memória auditiva e da produção sonora estão localizadas em áreas distintas dos seus cérebros. A memória auditiva, por vezes negligenciada tanto no nosso imaginário, como sobretudo em áreas da pedagogia, tem um papel vital na aprendizagem da produção oral.
Memorizar o que se ouve é fundamental na aquisição e desenvolvimento da linguagem pelas crianças. Há que ouvir, para depois falar, sempre ouvi dizer… as aves que o comprovem, canto eu de galo.
As memórias sonoras parecem ser assim responsáveis pela iniciação musical das divas que voam nos campos.
Numa das suas saborosas crónicas, Fernando Alves citava um destes dias um provérbio chinês: “Um passarinho não canta porque tem uma resposta. Canta porque tem uma canção.”
E de onde lhes vem a canção que cantam?
Já vimos que ouvindo um mestre, mas é preciso algo mais que saber ouvir.
O cérebro das jovens aves revive, durante a noite, o canto do progenitor, sendo activadas as zonas cerebrais da memória sonora. A activação neuronal nocturna implica, assim, a memória auditiva.
Para cantar, a jovem ave sonha com o canto do mestre, penso eu.
Sem solfejo ou conservatório, as aves canoras aprendem.
Aprendem de ouvido.
Nos dias alcatifados de sons em que vivemos, estará a arte de aprender ouvindo próxima do silêncio total?
Referência:
Gobes, S., Zandbergen, M., & Bolhuis, J. (2010). Memory in the making: localized brain activation related to song learning in young songbirds Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 277 (1698), 3343-3351 DOI: 10.1098/rspb.2010.0870
Imagens: Cheryl Warrick
Publicado no jornal barlavento de 20 de Janeiro de 2011
Eoraptor e Eodromaeus – o que foi não volta a ser
Na minha tese [3], seguindo o autor Paul Sereno, Eoraptor era um terópode basal.
Assim o comparei com outros dinossauros e com mamíferos, em termos morfométricos a fim de perceber a evolução do esqueleto apendicular e da disparidade morfológica nestes grupos.
Agora, vem à baila outro dinossauro primitivo do Triásico da Argentina, o Eodromaeus murphi [1].
Neste novo estudo, o Eoraptor lunensis parece ser enquadrado não como um terópode, mas como um sauropodomorfo.
Deixou de ser um membro basal de Theropoda, dinossauros carnívoros, e pertence agora à linhagem Sauropodomorpha, que inclui os dinossauros saurópodes, de cauda e pescoços compridos.
Ainda bem que já defendi a tese, caso contrário teria muitos cálculos a refazer.
Observem lá bem a sequência dos cladogramas ao longo do tempo, científico, claro está…
A análise mais aprofundada das implicações evolutivas de todas estas movimentações ficará para outra altura…
Referências:
1 – Martinez et al. 2011. A Basal Dinosaur from the Dawn of the Dinosaur Era in Southwestern Pangaea. Science, DOI: 10.1126/science.1198467
2 – Sereno, P.C. 2007b. The phylogenetic relationships of early dinosaurs: a comparative report. Historical Biology 19(1): 145-155.
3 – Rodrigues, L.A. 2009. Sauropodomorpha (Dinosauria, Saurischia) appendicular skeleton disparity: theoretical morphology and Compositional Data Analysis. Universidad Autónoma de Madrid, Ph.D. Thesis. Supervised by Angela Delgado Buscalioni and Co-supervised by Jeffrey A. Wilson. ISBN 978-84-693-3839-1
Imagens:
1 – Características anatómicas pós-craneais de Eodromaeus murphi – de 1.
2 – Cladogramas com os diferentes posicionamentos de Eoraptor lunensis – adaptada por Luís Azevedo Rodrigues a partir de 1 e de 2.
Actualização 14/01/2010
Um dos autores do estudo, Paul Sereno, fala sobre o mesmo:
Tempos de Crise – apertar o coração e o fígado
texto publicado no jornal Barlavento, 9 de Dezembro de 2010
PDF do artigo
A adaptação é fundamental para que se sobreviva.
Animal, planta, empresa ou mesmo uma relação sentimental, todos se devem adaptar a novas condições.
A contenção é tanto mais importante quanto maiores forem as adversidades ambientais. Um destes ambientes com condições de vida inóspitas é o deserto, onde as altas temperaturas dificultam a sobrevivência, as grandes amplitudes térmicas entre o dia e a noite tornam o ambiente inacessível à maioria dos seres vivos. Contudo, é a falta de água que, de forma directa (para beber) ou indirecta (reduzindo o número de plantas que são a base da cadeia alimentar) condiciona a habitabilidade dos desertos.
Como é que, então, sobrevivem os animais que habitam esses ecossistemas com tais condições extremas?
Num artigo da revista “Physiological and Biochemical Zoology” são apresentadas alguns dos mecanismos de sobrevivência em ambientes desérticos.
A espécie analisada, a gazela da areia – Gazella subgutturosa marica, habita o Deserto da Arábia, um dos locais com condições climáticas mais extremas a nível mundial. Os investigadores verificaram que estes animais eram os que apresentavam menores perdas de água destes ambientes. Ainformação, embora importante, não surpreende, pois é a resposta que se espera de animais que sobrevivem nos desertos.
Como evitar, então, as perdas de um bem tão precioso como a água?
Nas nossas casas sabemos que quando a entrada de dinheiro diminui só há uma coisa a fazer para equilibrar o orçamento: cortar nos gastos.
Pois a gazela faz exactamente o mesmo, embora deixar de ir ao cinema esteja longe dos seus pensamentos… Em momentos de maior carência hídrica e alimentar, estes animais reduzem quer o peso do fígado, quer o peso do próprio coração. As alterações fisiológicas naqueles órgãos revelam a diminuição na taxa metabólica, ou seja, da actividade celular dos organismos.
Assim, tal como fazemos na economia doméstica em tempos de necessidade, as gazelas apertam literalmente onde podem – corações e fígados.
Contudo, descobriu-se que estes animais aumentam o conteúdo de gordura no cérebro, oferecendo ao órgão fundamental a energia necessária ao seu funcionamento nos momentos difíceis.
Assim, as gazelas do Deserto da Arábia conseguem contornar os tempos de crise – reduzem o peso do fígado e coração mas aumentam a gordura no cérebro.
Pura economia biológica.
Pena é que a redução do coração e fígado económicos, que estamos a aguentar, não seja acompanhada do correspondente engordar do cérebro governativo.
Imagem – National Geograhic
Escuva terras, ou o drama de se chamar toupeira
Na terra do meu pai havia vários montes que sempre me intrigaram. Quando digo na terra, é mesmo na terra, essa que se lavra e suja os pés.
A outra, o sítio onde se cresce ou apenas se nasce, não importa para a história, apenas que era vizinha da de Aquilino.
Os montes de terra apareciam sem eu perceber como nem porquê. Surgiam nos lameiros, terrenos junto a cursos água, bons para erva fresca e sestas olhando vacas pastar.
Nos lameiros, aqui e ali, o verde era manchado de castanho, quais pintas em cara sardenta. O caos de cores alterava-me a ordem que tentava pôr em tudo: o lameiro era verde, ladeado pelo ribeiro, escuro pela sombra das árvores que aí se encostavam e, do outro lado, um outro verde, rasteiro, de um batatal.
E depois os montes castanhos.
Essas construções desordenadas, pequenos altos de terra, moeram-me o juízo durante os verões que passava nas Terras do Demo.
Um dos dias de Agosto, em brincadeiras com o Luciano, perguntei-lhe que raio era aquilo feito de terra, no meio dos lameiros.
“Escuva terras”, largou-me ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
“Ah…que era terra já eu sabia…”, avancei, tentando ver se o outro se explicava melhor.
“São uns ratos danados, esses bichos. Sempre a fuçar, a fuçar na terra. Depois dá nisto.”
“A maneira de dar cabo deles é cortar um bocado de plástico, enterrá-lo nesses montes com o gargalo para cima que o assobio do vento na garrafa dá logo cabo deles!”.
Toma e embrulha, faltou-lhe dizer.
Toupeiras.
E não deviam gostar que lhes assobiassem nas varandas, pensei eu.
Esta história foi assim mesmo, na sua maioria, e já lá vão mais de 30 anos.
Não tenho a certeza se seriam toupeiras europeias (Talpa europaea) as escuva terras que partilhavam o lameiro do meu pai, mas é bem provável.
As toupeiras são mamíferos que pertencem à ordem Talpidae sendo mais facilmente observáveis as suas construções do que elas próprias. Vivem a maioria da sua vida debaixo do solo, escavando e construindo túneis de forma solitária, e defendendo agressivamente o seu território à excepção da época de acasalamento. Nessa altura, os machos tentam literalmente interceptar os túneis construídos pelas fêmeas, iniciando-se então o acasalamento.
As patas anteriores, com grandes garras, permitem-lhes o seu modo de vida subterrâneo, alimentando-se sobretudo de insectos ou minhocas, o seu manjar predilecto.
A anatomia especial deste animal, nomeadamente a capacidade de articulação do úmero e o grande desenvolvimento muscular nesta zona, associado às enormes garras e um osso semelhante a um polegar, colocam este animal entre os grandes construtores zoológicos. A maioria da força das patas anteriores é exercida a partir do antebraço, rádio e cúbito, sendo também necessária a colaboração das patas posteriores para empurrarem a terra que vai sendo escavada.
As construções das toupeiras garantem-lhes alguma inimizade por parte dos agricultores que se esquecem que os túneis construídos pelas toupeiras aumentam não só o arejamento dos terrenos, como contribuem para uma melhor fertilização dos mesmos.
A capacidade física destes animais é extraordinária, tendo sido observado uma toupeira, com cerca de 80 gramas, construir quatro montes de terra com cerca de 15 quilos em apenas 90 minutos. Se fizéssemos a comparação para a nossa espécie, seria o equivalente a um ser humano de 70 quilos escavar 10000 quilos numa hora.
Não consigo deixar de imaginar estas bichezas a trabalharem para o Metro de Lisboa…
Imagens:
ARKive – http://www.arkive.org
Hall, B. K. (ed). 2007. Fins into Limbs: Evolution, Development, and Transformation. Chicago: University of Chicago Press, 433 pp.
Vídeo – ARKive
A Imortalidade de Um Saco Plástico
Sobre o vórtice do pacífico.
Sobre os dramas existenciais.
Sobre a morte e a necessidade de sermos desejados.
Sobre nós.
Tudo a partir da imortalidade de um saco plástico.
P.S. – uma lição de conservação planetária, bem melhor que lamechices à Al Gore.
Fonte – “Future States”
Inspiração – Micaela Sousa, “a place to be”
O regresso da tipa
A tipa iniciou o seu degredo quando eu ouvi um dia “O Inferno são os outros”.
Exagero, sempre me pareceu, embora com os anos uma patine de verdade lhe tenha assentado. E ela começou a ir-se.
Cada vez a vejo menos. Há dias que se foi de vez, penso.
Bancos, governos corruptos e/ou incompetentes, entre muitas outras inerências à condição humana, originaram que a frase de Sartre se tornasse um mantra para o mundo. Mantra a que resisto, é certo, mas persistente.
A crise gerada por homens que comem homens, outrora apelidados de canibais mas hoje em dia baptismo de especuladores financeiros, lançou o mundo na confusão e no caos. Estados que foram em auxílio da banca, à custa dos seus cidadão, pagam agora aquela ajuda com juros muito superiores.
Como há-de ela voltar?
A tipa tem razão, melhor que não a vejam.
O Inferno são os bancos?
Talvez.
O cinismo existencialista de Sartre não foi, nem é capaz de atrofiar a alegria quando vi o último mineiro chileno sair da cova.
A tipa, cada vez mais solitária nos dias que voam, insiste em regressar-me.
Gosto dela sempre que me visita, mesmo que à saída de uma mina chilena. E ainda que a tentem afastar com Sartrices do tipo “Só se safaram porque as TV’s quiseram” ou “Havia de ser na China que iam ver o que lhes tinha acontecido”, a verdade é que ela voltou-me.
Por quanto tempo?
Não sei.
Há dias em que a tipa me volta a aparecer.
Ainda bem que voltaste, esperança.
Imagem: Bill Brandt – Miners Returning to Daylight, South Wales (1931-35)