A caranguejo ferradura adúltera

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Naquela manhã no consultório psicanalítico…

 

Outra vez a Terapeuta aguardava com a porta do consultório aberta a chegada do próximo cliente. Ela detestava ter que fazer isto porque considerava que sua sala deveria ser algo mais reservado. Simbolicamente, o consultório é quase um útero, diria Jung. Então ali estava a Dra., com seu útero aberto, tudo por causa da secretária. Desde que um caranguejo chama-maré com síndrome da hiperatividade beliscara a secretária a ponto de arrancar-lhe a carne, haviam as duas acertado que em dia de consulta daquele ou outros crustáceos a secretária não compareceria. O cliente de hoje era, de fato, um quelicerado, mas a Dra desistiu de discutir os detalhes taxonômicos com a funcionária e a liberou.

A criatura que saiu do elevador mais parecia uma dessas semi-esferas usadas para separar duas pistas seguida de um rabinho triangular esquisito. Arrastava-se com dificuldade desde o paleozóico até o presente, consultório adentro.

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Umas fiéis (abaixo) outras se divertem(acima)
Fonte: Searcy & Barret, 2010, Animal Behaviour

-Bom dia, Sra. Límula. Seja bem vinda. Como vão seus 54208 filhos? – Saudou-a a psicanalista.

-Bom dia, doutora. Veja, agora já são 115892, mas não tenho muitas notícias deles. A última vez que os vi foi na forma de ovinhos pela areia da praia.

-Huh! Compreendo. E o que me conta hoje? – Perguntou a analista ajudando a cliente, que media 30 cm, a subir no divã.

-Ah, doutora, a estação tem sido ótima. Acabamos de ter uma maré alta perfeita, o amor estava por todos os lados, as águas tépidas. A sra. já esteve no México na primavera? Tudo é tão bonito lá, as praias têm areias brancas e águas azuis…

-Sra. Límula, a senhora não veio aqui conversar sobre o México. Por que não corta o papo e vai direto ao assunto que está tentando evitar? – Disse a analista em um tom paciente, mas assertivo.

A cliente afundou no divã, seus olhos compostos eram duas bolinhas negras de tristeza.

-Tem razão. É que aconteceu uma coisa essa última maré alta. A caminho da praia eu conheci meu marido. Nos encontramos, conversamos e ele era um macho maravilhoso, tinha uma pegada firme, me fez sentir segura com ele. Passamos meses pareados na orla esperando pela maré certa e a espera foi perfeita, nosso amor só crescia.

-Eu pressinto um “mas” vindo por aí. – Murmurou a psicóloga consigo mesma.

-Mas no  dia que subimos à praia não sei explicar o que aconteceu. Assim que chegamos um grupo de quatro machinhos  veio conversar, tinham um papo agradável e meu marido não pareceu se incomodar com a presença deles ali. Eles eram simpáticos, mas não eram o tipo que uma garota escolhe como marido, inspiravam mais uma aventura amorosa do que uma relação séria. Ainda assim, suas personalidades descontraídas e sedutoras de quem passa o dia na praia esperando para a azaração me cativou. Ai doutora, meu corpo tinha urgência de sexo que nas últimas semanas eu não tinha dúvida de que seria com meu marido, mas naquele momento aqueles quatro estranhos ali não me saíam do prossoma. Começamos a cavar um ninho e eles se aproximavam cada vez mais, agora se metendo entre eu e meu marido. Aquele que deveria ser o momento de maior privacidade de um casal agora era compartilhado com aqueles quatro rapazes. – À medida que falava, a Sra. Límula procurava no rosto da terapeuta qualquer traço de reprovação que permanecia oculto. Então ela decidiu seguir adiante. – Dra, acasalamos nós seis juntos. Ao mesmo tempo em que eu desovava na areia e meu marido fecundava meus ovos aqueles quatro pervertidos também jogavam seus gametas entre meus ovos.

-A senhora gostou de ser cortejada por tantos machos? – Perguntou a psicanalista.

-Ora, doutora. Isso não é certo! Eu deveria ter deixado a praia assim que aqueles rapazes chegaram. Uma xifosura séria não deveria…- A frase foi interrompida pela analista.

-Poupe seus recalcamentos para seus diálogos internos. Se a senhora veio em busca de perdão tem uma igreja católica ali na esquina. Aqui é um consultório psicanalítico. Aqueles cinco pretendentes te encheram a bola, não foi?

-Foi sim, doutora! Alimentaram meu narcisismo. Eu adorei acasalar com aqueles cinco homens. Não achei certo com meu marido depois de tanto tempo de devoção. Mas, no que se refere a mim, eu adorei o sexo. Sou uma vadia e gosto disso! – Gritou a carangueja numa catarse que terminou em lágrimas que ela tentou esconder com as quelíceras.

A psicóloga esperou alguns instantes até que a cliente se acalmasse. – Sra. Límula, seu marido não é o único xifosuro interessante no mundo. ele é UM deles. Por que acha que não tem direito ao prazer de ter vários parceiros ao mesmo tempo se o mais interessado na sua monogamia, que é o seu marido, pareceu ceder a ela?

-Mas e a minha segurança? Isso de ter vários parceiros não é perigoso? – Foi a vez da cliente perguntar.

-Sua fecundação é externa, isso reduz o risco de doenças sexualmente transmissíveis. Ainda há outros custos possíveis, mas nenhum parece te afetar muito. Sra. Límula, parece ser uma tática entre alguns caranguejos ferradura ser monogâmicos e outros não o serem. Você deveria se preocupar menos e aproveitar mais, ainda mais sabendo que seu marido aceita essa relação aberta. – Concluiu a doutora no exato momento em que a duração da consulta se esgotou.

A terapeuta ficou assistindo enquanto aquela criaturinha tão primitiva e tão complicada se afastava a passos vacilantes. Dava para perceber que ela deixara o consultório ainda não convencida, mas a semana que se seguiria iria se encarregar de convencê-la através de seus diálogos internos.

Johnson, S., & Brockmann, H. (2010). Costs of multiple mates: an experimental study in horseshoe crabs Animal Behaviour, 80 (5), 773-782 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.07.019

O díptero traído

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à minha colega, Profa. Celice Silva,

sim, há coisas legais nas plantas também

 

Naquela manhã, no consultório psicanalílico…

 

Já haviam se passado cinco minutos e nada do cliente aparecer. A doutora foi conferir na ante-sala e teve um sobressalto. Sua secretária, rolo de jornal em riste, se preparava para golpear uma mosquinha de asas murchas que havia pousado sobre sua mesa. A doutora deu um ágil pulo e tomou a arma da mão da secretária, salvando assim seu cliente da morte súbita.

-Pode entrar e ir se acomodando, Sr. Megapalpus. Eu vou num segundo. – Disse a analista sem tirar o olhar de repreensão da secretária.

A mosquinha pousou bem no encosto do divã, alheio aos gritos do lado de fora da sala, no máximo percebeu uma leve vermelhidão no rosto da terapeuta e suas carótidas saltadas ao entrar na sala.

-Bom dia. Como tem andado o senhor?

-Estou sofrendo de amor, doutora! Num momento nunca tive tanta sorte com as garotas, no seguinte todas me abandonaram. Não tenho mais motivo para viver. A senhora deveria ter me permitido o alívio eterno debaixo daquele rolo de jornal – E o pequeno díptero pontuou a frase com um muxoxo do labro.

-É mesmo? Que coisa. Quer me falar mais sobre esta maré de azar? – A terapeuta era treinada em ignorar rompantes depressivos.

-Olha, doutora. Nunca fui um rapaz de muito traquejo com as fêmeas. Sabe como é, há tantos outros machos por aí com os tergitos sarados de academia. Quase nunca me dava bem. De uns tempos para cá, em uma floreira perto de casa não paravam de aparecer mosquinhas lindas pousadas sobre as belas pétalas alaranjadas que nos serviam de lençol. Elas eram perfumadas como uma flor. Tão lindas, tão acessíveis e tão… tão… tão pouco seletivas!

– E como era a vida de vocês longe da floreira? – Indagou a psicóloga.

-Relacionamento fora da floreira? Doutora, isso praticamente não existia. Elas eram insaciáveis, sempre dispostas a mais e mais. Me aceitavam como sou, me enchiam de amor e prazer. No mais, elas me escutavam e me compreendiam como ninguém. Se eu começava a falar de mim elas eram excelentes ouvintes, jamais me interromperam. Mas era só um interlúdio entre uma sessão de sexo e outra. Nós nos amando no jardim e uma chuva dourada de pólen jorrando sobre nós com o frenesi dos meus movimentos.

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É o que não pode ser que não é

Fonte: Ellis e Johnson, 2010

 

-Menos detalhes, meu amigo. Menos detalhes. Quantas eram as suas amigas especiais? Quando começaram estes casos?

-Na primavera. Foram dois meses de muita paixão. Tinha no total dezesseis amantes. – Respondeu o díptero quase orgulhoso.

– E quando e por que tudo terminou?

-Me parte o coração só de lembrar. Ontem pela manhã voltei para minhas deusas na floreira e tudo havia mudado. Nossos lençóis de pétalas alaranjadas caídas sobre a terra, assim como os cacos do meu coração. Todas haviam partido juntas, só restava na floreira os frutos compostos das margaridas em início de amadurecimento. Fiquei tão preocupado com elas, perguntei a uma aranha de jardim que passava por ali. Mas, em vez de me responder, a maldita riu de mim. Não sei se minhas amantes foram raptadas, se me usaram e se cansaram de mim.

-Senhor Megapalpus, tenho outra má notícia para o senhor. – Instantaneamente o rosto da mosca se deformou de preocupação e uma lagrima escorreu do ocelo esquerdo. – Acho que o senhor estava sendo enganado desde o início da primavera. Fêmeas meio inertes, sempre acessíveis, cheirosas como uma flor, encontros sobre as pétalas, tudo começou na primavera, chuva de pólen. Elementar, meu caro díptero, estás sendo ludibriado por flores precisando de um polinizador. Em algumas orquídeas as pétalas simulam em odor e forma uma fêmea que atrai machos para copular. Ao tentar isto os machos se cobrem de pólen que é levado a outra planta quando este macho novamente é enganado. Nunca havia ouvido falar de margaridas fazendo isto com moscas, mas é a única explicação que me ocorre.

Na saída do consultório mosca e secretária se defrontaram novamente. Desta vez ambas estavam com cara de humilhadas; esta por ter sido enganada por uma flor, aquela pela bronca que levara. O Sr. Megapalpus capensis nem se deu ao trabalho de marcar outra sessão, aquela questão seria resolvida com sangue, ou melhor, neste caso com seiva bruta.

 

Ellis, A., & Johnson, S. (2010). Floral Mimicry Enhances Pollen Export: The Evolution of Pollination by Sexual Deceit Outside of the Orchidaceae The American Naturalist, 176 (5) DOI: 10.1086/656487

A foca superprotetora

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A Dra. aguardava a chegada da próxima cliente de portas abertas, o que muito a incomodava. Seu consultório deveria ser uma alcova para estimular a falar quem em seu divã se deitasse. Consultório psicanalítico não é que nem botequim que todo o mundo que passa diante da porta deve ver o que tem lé dentro. Ainda mais um consultório para animais de todas as espécies. Estes que escondem os mais reconditos segredos aos quais só a doutora teria acesso. Estes que nela confiam. Mas desta vez a secretária estava de licença médica. Havia pego malária de um gorila que vinha tendo problemas com seu harém de quatro esposas, todas ovulando juntas. Agora a moça exigia um adicional de insalubridade e periculosidade ao seu soldo.

O sinal sonoro do elevador foi o prenúncio da chegada, mas a doutora ainda teve que esperar quase um minuto para a cliente desta manhã atravessar aos tabefes os doze metros que separavam a porta do consultório e o elevador. Era uma foca de pelagem e humor cinzentos que atravessou a antessala sem responder o “Bom dia” que a doutora lhe dirigiu. Foi direto ao divã onde subiu como pode e deitou-se de lado.

– Meu filho, doutora. Não sei o que fazer com ele. Vocês psicanalistas vivem dizendo que é tudo culpa da mãe, pois eu queria ver o que seria do Sr. Freud sem sua mãe judia! Isso não é culpa da mãe, né? – Foram as primeiras palavras da foca naquela sessão.

– Sra. Halichoerus, bem vinda. Como é que a Sra. está? – Perguntou a terapeuta com um sorriso forçado, ciente do histórico da cliente.

– É impressionante que eu precise pagar alguém para me perguntar como estou. Ninguém se preocupa com como é que eu estou! Meu filho? Um desnaturado. Não fica ao meu lado, nada pela praia com outros filhotes que não lhe são boa companhia, entra na água e some por aí, nem mamar ele mama. Ele é jovem demais para sair de casa.

– Que idade mesmo tem seu bebê?

foca superprotetora

Se fosse seu filho você o perderia de vista?

Fonte: Animal Diversity Web

– Só 17 dias, meu filhinho. Pode uma coisa dessas? Essas crianças de hoje não têm coração, nunca ajudam em nada e não se preocupam com suas velhas mães quando resolvem sair de casa. Sabe que eu já perdi peso desde que meu filhinho me abandonou? Estou me sentindo tão fraca. – Disse a foca com os olhos rasos d’água.

– É mesmo? E por que a senhora emagreceu?

– Porque não tenho saído para pegar peixes?

– E por que não? – Interrogou a doutora.

– E se meu filhinho retorna e eu estou no mar procurando comida? Não podia correr o risco! – Concluiu a foca.

– Mas Sra. Halichoerus, filhotes da sua espécie tendem a desmamar aos 15 dias de idade. São muito independentes desde cedo na maioria dos casos. A senhora não pode querer controlar a vida dele. – Ralhou a analista.

– A senhora diz isso porque não é o seu filho. Sabe que nem ganhar peso ele ganha? Os outros filhotes na praia estão grandes e gordos. Saudáveis. Meu filho está esquelético. O bebezinho de uma amiga ganhou 5 kg em uma semana, já meu filho perdeu 2 kg, pesa só 40 kg. A senhora sabe que ele pode até morrer por causa disso? Aposto que não, nem filhos deve ter! – Disse a foca com os bigodes eriçados e um ar que seria aterrorizante se sua aparência não fosse tão dócil.

A doutora adotou seu tom mais severo e recolheu-se para longe do abajur onde a foca não a podia enxergar. – Minha vida pessoal não lhe diz respeito. Estamos aqui para falar sobre a senhora. Além do mais, filhotes de foca mal nutridos podem sim ter problemas, mas seu filhote está saudável, 40 kg é mais do que suficiente para ele. Por que a senhora sente tanta culpa?

Agora todas as defesas da cliente pareciam ter desmoronado. Ela largou-se prostrada no divã e disse em um sussurro rouco: – Dra., acho que escolhi o pior ponto da praia para ter meu filhote, perto demais da margem. Temos muitas tempestades e quando o vento aumenta as ondas varrem a praia. A primeira vez que meu filhote foi para a água foi numa tempestade dessas, levado por uma onda. É tudo culpa minha! – Dito isto a foca pôs-se a chorar.

Passados uns dois minutos e meia caixinha de lenços a psicóloga recomeçou a falar.

– Tenho certeza que ele sabe como a competição por um lugar na praia é acirrada, Dona Halichoerus grypus. Se ainda não o sabe, logo descobrirá. A senhora não deve se culpar por isto. O que importa é que seu filho é mais franzino do que seus colegas, mas é saudável. Sabe do que mais? Estou certa de que nessas incursões marinhas que a senhora tanto se preocupa, seu filhote estava aprendendo muito sobre como capturar peixes. Logo mais todos os seus colegas irão perder o peso que ganharam sob as barras das saias de suas mães quando forem para o mar. E então será a vez do seu guri se destacar e engordar novamente.

– Ah, mas é tão duro deixá-los ir embora. Eu olho para meu filhote e não o vejo como uma foca adulta. Para mim ele será para sempre a coisinha branca e felpuda de grandes olhos negros que eu vi nascer e criei. – Dizia a mãe superprotetora quando o final da sessão foi anunciado.

– Até breve, Sra. Halichoerus. Não se preocupe nem se culpe tanto. Vá aproveitar a vida que ela é curta. – Despediu-se a analista com um sorriso ao ver as formas roliças da foca afastando-se pelo corredor.

Jenssen, B., Åsmul, J., Ekker, M., & Vongraven, D. (2010). To go for a swim or not? Consequences of neonatal aquatic dispersal behaviour for growth in grey seal pups Animal Behaviour, 80 (4), 667-673 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.06.028

A acará abandonada

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Naquela manhã no consultório psicanalítico…

 

A Dra. acabava de retornar de férias antecipadamente. Ela havia decidido viajar depois que mais uma de suas recepcionistas pediu as contas, mas interrompeu sua folga a pedido de uma peixinha de quem gostava muito. Não é costume entre os analistas conhecer de tão perto seus clientes, mas a doutora era próxima da família antes de atender a Sra. Amphilophus, por isso conhecia bem todos os personagens. A peixinha era casada com um marido dedicado e tinha uma linda ninhada de alevinos, eles moravam em uma casa linda e ampla. Em suma: uma família perfeita.

– O que houve, minha querida amiga? – Perguntou a analista com a testa franzida de tensão ao ver a peixinha com os olhos mareados e fazendo biquinho de quem ia chorar.

– Dra. que tristeza vê-la nesse dia. Minha família tão linda está desmoronando. Meu marido me deixou. Que tragédia! – E a acará pôs-se a soluçar.

A psicanalista precisou esperar um pouco até que a cliente se recompusesse. – É ruim, não? Quer me falar um pouco sobre como está se sentindo?

– Um caco, doutora, não sou a sombra do ciclídio que um dia fui! Passo a maior parte do dia arrasada, me escondendo pelos cantos para chorar sem meus filhotes verem. Tenho também rompantes de ira contra o desgraçado. O pior é que não posso me deixar abater, se eu sucumbo ao sofrimento deixo de dar a assistência que meus bebês precisam. Eles são os únicos que continuam me amando e precisam tanto de mim, Dra. Ah se soubessem como são importantes na minha vida neste momento tão difícil!

– E a Sra. tem notícias do dito cujo? – Interrogou a terapeuta.

– Não sei de nada. Fico esperando que ele retorne o tempo todo, mas o tempo vai passando e eu vou ficando mais e mais desconfiada de que minha espera é vã. – Disse a acará com os olhos fundos e os opérculos caídos.

– Minha amiga, não quero entristecê-la ainda mais, mas acho que você merece a verdade, mesmo que ela doa. Seu marido não volta mais. Ele sabe que seu pico de fertilidade já passou, sabe que os filhos de vocês já estão crescidos. Neste momento seu marido deve estar com um novo território se exibindo para mocinhas solteiras e cheias de hormônios com as quais ele irá constituir uma nova família. – Esclareceu a psicanalista com muito tato, mas sem rodeios.

Agora a acará chorava convulsivamente exaurindo o estoque de lencinhos que a Dra. deixava ao lado do divã. – O que será de mim agora, minha amiga? – Perguntou a cliente.

– Agora? Agora a senhora irá enxugar estas lágrimas, voltar para sua casa e cuidar com todo o amor daqueles pequeninos que precisam muito ainda de você. Você sabe como o mundo é perigoso para alevinos. E já que o pai não irá mais ajudá-la mesmo, melhor você se virar. – Aconselhou a analista de sua poltrona.

– Sim, são tantas ameaças, me desgasto tanto defendendo aquela casa de invasores e cuidando dos meninos depois que ele me deixou. Mas tenho uma dívida com meus pequenos, preciso segurar as pontas e voltar para eles. Eu só queria saber por que isso foi acontecer justo agora e justo comigo.

– Minha amiga, razões não vão mudar os fatos. E não se julgue a única, só eu sei como aparecem casos como o seu por este divã. Volte para casa e vá cuidar de quem ama você. – Encerrou a psicóloga.

A doutora acompanhou sua amiga com os olhos vermelhos de tanto chorar até a porta. Em seguida sentou-se em sua mesa, abriu seu caderno de anotações e escreveu: “Sra. A., o marido a deixou ao final do período fértil para aumentar suas chances de deixar descendentes com outra parceira. Tudo só ocorreu depois que seus descendentes já estavam maiores, podendo depender apenas do cuidado da mãe.” Deu um suspiro, fechou o caderno, e jogou-se de costas na cadeira.

 

Lehtonen, T., Wong, B., Svensson, P., & Meyer, A. (2010). Adjustment of brood care behaviour in the absence of a mate in two species of Nicaraguan crater lake cichlids Behavioral Ecology and Sociobiology DOI: 10.1007/s00265-010-1062-5

E

 

Lehtonen, T., Wo
ng, B., Lindström, K., & Meyer, A. (2010). Species divergence and seasonal succession in rates of mate desertion in closely related Neotropical cichlid fishes Behavioral Ecology and Sociobiology DOI: 10.1007/s00265-010-1061-6

A andorinha decepcionada

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico.

 

A doutora estava mostrando à nova secretária como funcionava o sistema de marcação de consultas. Era um mau começo de dia para a psicanalista, que estava novamente às voltas com uma secretária por treinar. Sua última funcionária pedira demissão depois de ter se identificado com um caranguejo ermitão e ido morar sozinha numa casinha simples no alto de uma montanha.

A primeira cliente do dia chegou ainda bem cedo. Era uma andorinha do barranco que vinha sempre passar as férias de inverno pelas bandas do Brasil.

– Bom dia, dona Riparia. – Acolheu-a a doutora. – quer ir se acomodando enquanto eu termino com a secretária aqui?

Ao entrar no consultório a doutora já havia percebido o semblante mal-humorado da andorinha. – Como foi de viagem? – Perguntou a analista tentando ser simpática.

– Longa, cansativa e monótona, doutora. – A avezinha migrava até 11 mil km todos os anos dos Estados Unidos até o Pantanal.

– É, estou vendo que a senhorita não está nada bem hoje. O que foi que houve? – A andorinha não conseguia ver direito a doutora na contra-luz do abajur de chão.

– Ah, doutora, vim invernar com ódio no coração. Ódio da minha mãezinha.

– Que sentimento mais triste. E o que levou uma filha tão dedicada a se sentir assim? Saturou-se de ajudar seus pais a cuidar de seus irmãos? – A doutora bem sabia que a mães e filhas sempre tinham seus atritos.

– Nada disso, não aguento mais morar com meus pais. Em casa só sirvo de babá. Não tenho uma vida minha própria! A senhora acredita que na última ninhada mamãe colocou oito ovos e quem teve de chocar e depois dar de comer a todos fui quase sempre eu? – Piava a andorinha num tom melancólico e irritado.

– E nos anos anteriores não foi sempre assim, dona Riparia?

– Agora é diferente, tudo mudou. – Respondeu a andorinha reticente.

– Minha amiga, sinto que você não quer me contar tudo o que aconteceu. Deste jeito não temos mais o que conversar hoje e terei que encerrar a sessão. – Disse a terapeuta com voz doce, mas assertiva.

A andorinha deu um longo suspiro e baixou os olhos. – Doutora, desconfio que minha mãe anda traindo meu pai. Sabe estes oito pretensos irmãos de que cuidei? Pois alguns ali não tinham nada a ver comigo ou com papai. Eram criaturinhas estranhas, intransigentes e apressadas. Não me deixavam em paz um minuto e o pior é que eu tenho certeza de que nem meus irmãos mesmo eles eram. Ai que ódio! Como eu sou burra, devia ter deixado eles morrerem de fome ou minha mãe que os alimentasse. Depois que ela começou a demorar em suas saídas do ninho, receber visitas. Nunca imaginei que minha própria mãe… Humpf! E pior é que o bobo do meu pai não desconfiou de nada. Mas comigo que ela não irá mais poder contar, ela que arranje outro trouxa para enganar.

– Mas, Riparia, independentemente das escapadas de sua mãe, os filhotes não são seus irmãos do mesmo jeito? – Provocou a analista.

– O que? Aquelas pragas? Se fossem meus irmãos de todo, filhos de papai e mamãe, eu saberia. Mas não vou me dedicar a criar falsos irmãos que quase nada têm a ver comigo. Não mesmo! Nunca mais cuido de filhotes que não sejam meus parentes próximos. Ai, doutora, não sei mais o que fazer.

– Bom, por que não sai do ninho dos seus pais? Não procura sua própria toquinha no barranco e um marido só seu? – Depois da pergunta da psicóloga a andorinha permaneceu alguns momentos em silêncio e uma gota lhe escorreu das glândulas de sal.

– É, doutora, acho que você está certa. Vou é ter meus próprios filhotinhos, arranjar um bom marido que me respeite e a quem eu respeite como minha mãe não respeitou meu pai. Estou decidida a não voltar mais para o ninho dos meus pais este verão. – Decidiu-se a avezinha pegando mais um lenço de papel para enxugar os olhos. – Obrigada, doutora.

A doutora acompanhou a cliente até o parapeito da janela da sala de espera, de onde ela alçou voo rumo ao norte.

– Doutora, já ligaram cinco vezes passando trote. Telefonam, eu atendo e não dizem nada. – Avisou a recepcionista.

– Não, querida, é um tamanduá cliente meu.

 

Cornwallis CK, West SA, Davis KE, & Griffin AS (2010). Promiscuity and the evolutionary transition to complex societies. Nature, 466 (7309), 969-72 PMID: 20725039

O gobião na secura

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Naquela manhã no consultório psicanalítico

– Doutora, a senhora poderia vir receber o seu paciente, por favor!

Já era a terceira vez que a nova secretária interfonava para o consultório, mas a psicóloga estava bastante ocupada e ainda não era o horário do próximo paciente. A doutora tinha uma preferência por atendentes bonitas, mas ultimamente não podia escolher muito. Desde que a última secretária se apaixonara por uma hiena lésbica bem-dotada que frequentava o consultório e fugira para Botswana com seu novo amor, a doutora contratou a primeira moça que lhe apareceu pela frente e não queria perdê-la. A secretária tinha 1,88 m, pesava no máximo 50 kg, até aí poderia ser uma modelo esquuálida se a pele do seu rosto não lembrasse areia fina depois da chuva, seu cabelo não parecesse um tamanduá enrolado para dormir e se entre um dente o outro não passasse um dedo.

Na antessala um gobião olhava lânguido para a secretária enquanto fazia uma reverência e estendia ao objeto de seus desejos um buque de flores de plástico.

– Senhor Chlamydogobius, o senhor já chegou! Deve estar ansioso para conversarmos. Por que não devolve as flores do consultório odontológico ao lado, para de beijar a mão da minha secretária e se apressa a tomar o seu lugar no divã?

– Ah, doutora. Não tenha pressa. Eu poderia esperar a eternidade ao lado desta beldade. – Respondeu o peixe soltando coraçõezinhos pelos olhos. A doutora o arrastou pela nadadeira caudal para dentro de sua sala deixando para trás um rastro gosmento como seu amor.

chlamydogobius

Muito tempo sem namorada reduziu seus critérios?

Fonte: www.fishbase.org

– Então, meu amigo australiano, sobre o que quer conversar hoje? – Veio a voz suave, mas num tom claramente repressor, de um ponto invisível atrás do espaldar do divã.

– Sobre o amor! Estou apaixonado. – Declarou o gobídeo ainda fitando a porta.

– Ah, mas isto é muito bom! E desde quando o senhor está amando assim? – Perguntou como que casualmente a analista, mas já ciente do caso.

– Para falar bem a verdade, acho que desde que vi sua secretária. Foi paixão à primeira vista.

– Quanto tempo faz que o senhor está solteiro? – Agora não havia nem sinal de casualidade.

– Não vejo qual o interesse de sua pergunta, mas agora que falou, acho que já faz um bom tempo desde que a última garota passou pela minha toca. Como não saio muito dela, acabo dependendo de alguma fêmea ativamente passar por lá. – O peixinho agora parecia intrigado.

– Veja, meu amigo, essa paixão arrebatadora é fruto do longo período de espera. Você…

– Não é, não. Eu amo sua secretária. Como é que ela se chama mesmo? – Interrompeu o cliente negando a terapeuta, que se calou e ficou esperando que ele terminasse.

Alguns instantes de silêncio pareceram ao peixe uma eternidade. Para quebrar aquela situação constrangedora ele precisava falar novamente.

– A Sra. acha isso mesmo? – Perguntou o cliente com olhos de peixe morto.

– A paixão, Sr. Chlamidogobius, é proporcional ao volume de esperma acumulado*. – A voz detrás do divã disse com assertividade incontestável.

-  Mas… – ouviu-se um longo suspiro. – Essa visão não é muito romântica, não é mesmo?

– Veja bem, é claro que o senhor sabe o que é uma fêmea bonita. Só que, à medida que o tempo passa, vai baixando seus critérios com receio de ficar sozinho até chegar a um ponto de achar irresistível uma mulher como minha secretária. Se o senhor a conhecesse logo após encontrar uma fêmea bonita certamente não a desejaria tão vorazmente. – À medida que a dra. falava o peixinho parecia ficar revoltado, mas lhe restava pouca energia para discutir. – O que quero do senhor é que volte na próxima semana e que, daqui até lá, faça um exercício: encontrar-se com o maior número de fêmeas que conseguir. Se na próxima semana essa paixonite não passar, serei madrinha de casamento de vocês dois!

– De verdade, doutora? – Exclamou o peixe excitado. – Onde é que tem uma boa joalheria por perto?

A doutora se despediu do cliente na antessala com a intenção de proteger do assédio sua secretária. Ela agora estava com olhos que pareciam arregalados mesmo através das espessas lentes de seus óculos fundo de garrafa. O Sr. Chlamidogobius não pode evitar encarar o objeto de seu amor, mas subitamente começou a enxergar coisas que pareciam não estar ali antes, como a pinta muito escura e peluda do tamanho de uma digital que havia na testa da menina.

 

Svensson, P., Lehtonen, T., & Wong, B. (2010). The interval between sexual encounters affects male courtship tactics in a desert-dwelling fish Behavioral Ecology and Sociobiology DOI: 10.1007/s00265-010-1007-z

 

*Pequeno dicionário amoroso.

O peixe cachimbo grávido

Naquela manhã no consultório psicanalítico

 

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– Ah, que gracinha! Quanto falta para a senhora dar à luz? – Perguntou a secretária novata tentando causar uma boa impressão e interagir com o paciente que acabava de entrar.

– Ora pois! Eu sou macho. Estás a estranhar-me? – O peixe cachimbo respondeu com forte sotaque português e muito mal humor.

A secretária, ligou para a analista: “Doutora, está aqui uma senhora grávida que diz ser macho. Mando entrar?”

– Entre, meu colega d’além mar. – Acolheu-o a psicóloga com um sorriso largo. – Há quanto tempo? Pois vejo que me traz boas novas, está grávido.

O peixe cachimbo entrou no consultório e logo se fez confortável no divã. Era longo o seu histórico de terapia, um caso clássico de crise de identidade, desses de ilustrar livro-texto. A despeito dos anos de terapia o bicho não conseguia quebrar o ciclo de repetir, recordar e reelaborar, talvez não fosse da sua natureza.

– Doutora, até sua secretária me confunde, no estuário todos se põem a rir de mim, caranguejos, camarões, vieiras. Ninguém me dá o devido respeito. Estou farto disto! – Desabafou o peixe cachimbo.

– Sei. E o que o senhor pretende fazer a respeito, Sr. Syngnathus?

– O que eu posso fazer, se nem minha parceira me respeita? – O peixe fez o bico mais comprido do reino animal.

– O senhor se respeita? – Perguntou a analista em tom de desafio.

– Ora pois! É claro que sim. – As nadadeiras dorsais do Sr. Syngnathus agora estavam eriçadas. Após o rompante de ira os longos segundos de silêncio fizeram o peixinho pensar de fato na pergunta à medida que suas nadadeiras baixavam novamente.

– A senhora acha que eu deveria me impor mais? Mas como? A mãe dos filhotinhos que carrego agora é uma fêmea grande, forte, tem quase 3 cm a mais que eu. É prepotente, agressiva. Ela me oprime! Não tem quem se imponha diante dela, espanta a todos os que se aproximam de mim. Na verdade, sei que estão todos a rir de mim dizendo que não sou eu o macho do casal. Só não escuto isso mais constantemente porque ela põe para correr todos os que resolvem criticar nossa relação.

– Então ela te protege vez por outra? – A analista perguntou num tom quase de afirmação.

– Sim, é muito protetora. Lhe adimiro neste ponto, quem me dera saber me impor desta maneira. Quando é assim com os outros não me importo, mas passa que o mesmo modo de lidar com os outros animais do estuário é o jeito dela em casa. Chega a me colocar medo. – Confessou o peixe cachimbo à boca miúda

– Sr. Syngnathus, a relação de vocês é de muita complementaridade, não é? Um é bastante o oposto do outro. Estou certa? – O peixe se restringiu a acenar afirmativamente com a cabeça, meio envergonhado do que assentia.

– O pior é que de uns tempos para cá apareceram mais fêmeas no pedaço. Nunca a vi tão agressiva. Sempre acabava sobrando uma grosseiria para mim. Ela criava confusão com casais a namorar, arrumava casos por aí, até em brigas se envolveu. Eu, por minha vez, só queria saber de romance. – O peixe cachimbo com aquela barriga cheia de filhotes e aquela cabeça cheia de problemas era uma imagem aterradora para a analista.

– O senhor é responsável pela sua vida. Não adianta se queixar, faça por merecer ou aceite a frustração desta relação de vocês. O senhor já considerou mudar-se para um lugar com menos fêmeas, talvez um lugar onde houvesse muito mais mulheres do que homens? – Perguntou a doutora.

Um lampejo de alegria varreu o rosto do peixe cachimbo de opérculo a opérculo e ele abriu o primeiro sorriso desde que a sessão começara.

– A Sra. acha que daria certo? Sabe, vou agora mesmo procurar um novo lugar para ir morar. Faz todo sentido, doutora. Muito obrigado, prometo que irei tentar.

Silva, K., Vieira, M., Almada, V., & Monteiro, N. (2010). Reversing sex role reversal: compete only when you must Animal Behaviour, 79 (4), 885-893 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.01.001

O opilião aproveitador

ResearchBlogging.org

Naquela manhã no consultório psicanalítico

 

– Ah, que horror! – A doutora, preocupada, correu para a antessala ao ouvir o grito de sua nova secretária. Desde que sua última pedira demissão, apavorada com um tubarão martelo enorme que estava deprimido pelo fim da simbiose de limpeza com uma peixinha recifal, ela decidiu contratar uma estudante de veterinária para o cargo. Pelo menos veterinários seriam mais acostumados à fauna que comparecia ao consultório. Na recepção sua secretária estava de pé sobre a cadeira, com um tamanco na mão pronta para atirá-lo. No outro canto do cômodo uma criatura cheia de longas pernas se encolhia contra a parede com os omatídeos arregalados.

pseudopucrolia

O Sr. Pseudopucrólia sobre o divã da doutora.

Foto de Glauco Machado

 

A terapeuta se colocou entre a secretária e o aracnídeo. – Calma, abaixe o tamanco. Ele é um cliente e é inofensivo. Não é uma aranha, mas um opilião. – Depois voltou-se para o bichinho sorrindo e convidou-o a entrar no consultório. Ela não imaginou que uma veterinária não teria familiaridade com animais menores.

Agora o opilião, um macho cheio de espinhos e bolotas nas pernas posteriores estava seguramente deitado no divã – O que tem a me contar, Sr. Pseudopucrolia? – Perguntou a dra.

– É a danada da culpa, doutora. Não sei mais o que fazer com ela.

– E o que te causa tanta culpa? – A doutora estava com um vestido até os joelhos e os cabelos, meio revoltos, soltos por cima dos ombros. Não havia um cliente que não a achasse linda.

– Doutora, sou um pai dedicado, protejo dos predadores meus futuros filhotes em seus ovos, mas no fundo sei que só estou me aproveitando disso. – O opilião respondeu fazendo um muxoxo de tristeza com as pedipalpos.

– E como é que você se aproveita dos seus filhotes? – A analista perguntou enquanto cruzava as pernas e reclinava o corpo para ouvi-lo melhor.

– Cuido bem dos meus ovinhos, mas é tudo uma desculpa para seduzir as mulheres. Tem um monte de fêmeas que ficam caidinhas por um bom pai e eu me aproveito disso. Desde que consegui minha primeira leva de ovos desta estação reprodutiva já acasalei com outras cinco! – Disse o aracnídeo, gabando-se.

– Entendi. É comum que as fêmeas gostem de rapazes que saibam cuidar bem dos seus filhotes, protegê-los e ajudá-los a sobreviver. Não há do que se envergonhar por ser um bom pai, você não está obrigando elas a nada.  Pode ter certeza de que, enquanto você cuida dos seus ovinhos, elas estão por aí, se alimentando, tem até muitos outros ovos mais para deixar com outros machos, se assim preferirem.

– Exatamente, doutora. Às vezes até invejo os machos sem cria, que passam o dia vadiando, sem ninguém a se preocupar além de si mesmos. Mas tenho certeza que na hora do amor é o meu ninho que estará cheio e eles estarão tristes e solitários. Sabe que tem uns caras que, tamanho o desespero, chegam a roubar os ovos de outros pais para fingir que são seus? Um verdadeiro horror! – Confidenciou o cliente.

– Pois acredito em você. Aliás, isso é mais comum do que o senhor pensa aqui no consultório. – Disse a analista.

– A senhora quer ver uma foto dos meus filhos? Olha que lindos. – O Sr. Pseudopucrolia sacou de um bolso da carteira a foto abaixo. Nada muito visualmente atraente.

 

pseudopucrolia ovos

O bom pai e seus filhinhos

Foto de Glauco Machado

 

-Hum, que gracinha. – Disse a terapeuta sem conseguir disfarçar muito bem o desinteresse.

-Você achou? Quem sabe não gostaria de passar lá em casa um dia desses para conhecê-los melhor? – O opilião estampou um sorriso sedutor nas quelíceras encarando a doutora.

A terapeuta lançou-lhe um olhar de repreensão encaminhando-se à porta. – Estamos conversados por hoje, senhor Pseudopucrolia. Passar bem!

O opilião saiu visivelmente envergonhado do consultório enquanto a doutora dava um profundo suspiro ao notar a escrivaninha da secretária vazia exceto por um bilhete onda a palavra DEMISSÃO podia ser lida à distância.

 

Nazareth, T., & Machado, G. (2010). Mating system and exclusive postzygotic paternal care in a Neotropical harvestman (Arachnida: Opiliones) Animal Behaviour, 79 (3), 547-554 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.11.026

A rainha paranóica

Naquela manhã no consultório psicanalítico.

 

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A doutora saiu de sua sala ao ouvir os tambores e trombetas e chegou bem a tempo de ver a comitiva real saudando a entrada da rainha enquanto sua secretária, ainda na primeira semana no cargo, se encostava contra a parede oposta assustada.

– Vossa Majestade, que honra recebê-la mais uma vez! Vamos entrando, por favor. – E a analista escoltava a rainha para dentro do consultório.

A rainha havia mudado bastante desde que a doutora a vira pela última vez. E não era apenas a substituição da aparência jovial esbelta e pequena por um traseiro enorme que a rainha agora arrastava atrás de si como um produto das gerações seguidas de filhos que produzia. Antes ela emanava o viço de ter acabado de tornar-se rainha e o frescor que sua única oportunidade de acasalar na vida a tinha concedido. Nesta manhã a rainha parecia exausta e desconfiada.

– O que vossa majestade me conta? – Interrogou-a a terapeuta na penumbra.

– Doutora, nunca imaginei que ser rainha fosse tão duro. Desde que eu era apenas uma larvinha protegida dentro da célula de cria onde cresci eu sonhava em ser uma rainha. E agora que este sonho se realizou sinto falta das coisas boas da vida. – A abelhinha estava deitada no divã, mas percebia-se que seu corpo estava teso.

– É verdade, o poder cobra seu preço. Mas diga-me, o que a perturba?

– Olha, passo o dia todo perambulando pela colméia, eliminando feromônios para inibir as insurgentes e botando incontáveis ovos. O tempo todo minhas operárias se queixam da carga de trabalho e exigem mais ovos, principalmente querem irmãs. Sempre irmãs! Às vezes me pergunto quem é mesmo que manda naquela colméia.

– Trivers também se perguntou isso e as notícias não são as melhores. – Respondeu a psicóloga.

– Todos me perseguem! – Queixou-se a suprema sem escutar o comentário.

– Não é verdade. – Disse a analista.

– Ninguém acredita em mim – Retrucou a rainha.

– Eu acredito, majestade.

– A doutora diz isso só para me agradar.

– Eu não estou aqui para te agradar!

– Por que não? – Perguntou a rainha com olhar tristonho e as asinhas baixas.

rainhaparanoica

Esse círculo branco em cima da rainha não é a coroa

Fonte: D. A. Alves

 

A abelha agora olhava ao redor, tensa. E continuou: – Na verdade, acho que minhas súditas, hemolinfa da minha hemolinfa, estão se rebelando contra mim. – Por fim revelou a monarca em um sussurro e engolindo em seco.

– Mas isto é muito grave! – Exclamou a terapeuta. – O que a levou a concluir isso?

A rainha fez sinal para que a doutora se aproximasse e olhou para a porta antes de prosseguir com a voz cada vez mais baixa. – Doutora, tem aparecido uns machinhos meio esquisitos das células de cria. Tenho certeza que aqueles não são filhos meus. E, se não são filhos meus, isso só pode ser sinal de um golpe de estado. Bem que a plebe me ameaçou. Se meu reinado não lhes satisfizesse então elas se reproduziriam.

– E você tem certeza de que estes machos são filhos de suas súditas revoltosas? Acho que deveria se preocupar menos, tenho certeza de que são descendentes da antiga rainha? – A voz da analista vindo daquele canto escuro e invisível atrás do divã não deixava a rainha nem um pouco à vontade.

– Você acha que poderiam ser netos da falecida? – A abelha eriçou as anteninhas pensando consigo mesma. – Isso explicaria por que eles nem se parecem comigo, explicaria a presença daquelas operárias tão velhas e ranzinzas e explicaria a devoção de minhas operárias ao cuidado com a minha prole. Talvez então não seja pura falsidade da minha corte. Talvez não estejam querendo me depor ou, pior, arrancar-me a cabeça. – Os ocelos da rainha recomeçavam a ganhar brilho e um esboço de sorriso surgia em seus palpos labiais.

– E não se esqueça que estas operárias remanecentes nem são aparentadas suas, elas não teriam nada a perder em deixar seus filhos aos cuidados das operárias que deveriam se ocupar da sua prole. – Lembrou a psicóloga.

– Estou tão aliviada. Nem dormia mais direito com medo de tornar-me uma Maria Antonieta de seis pernas, ficando com as cerdas brancas da noite para o dia antes da execução. Doutora, te devo a estabilidade política de meu reino. – Bradou a monarca.

– Nosso tempo se esgotou, majestade. Posso esperá-la na próxima semana?

Ao abrir da porta a comitiva real imediatamente se curvou em reverência. A rainha caminhou para fora do consultório parecendo muito mais leve. – Pode apostar, doutora. Até logo.

 

Alves DA, Imperatriz-Fonseca VL, Francoy TM, Santos-Filho PS, Nogueira-Neto P, Billen J, & Wenseleers T (2009). The queen is dead–long live the workers: intraspecific parasitism by workers in the stingless bee Melipona scutellaris. Molecular ecology, 18 (19), 4102-11 PMID: 19744267

Os babuínos entediados

Naquela manhã no consultório psicanalítico

ResearchBlogging.org

A Doutora recebeu o aviso afobado de sua secretária e foi à porta. Na sala de espera havia cerca de 30 babuínos chacma espalhados nos bancos, sentados sobre o cesto de revistas e na mesa de centro. Ao ouvir o estalo da porta todos se voltaram para ela ao mesmo tempo. A secretária era nova em sua função, o que a espantara tanto em geral era parte da rotina da psicóloga.

– Quem é o primeiro? – Ela perguntou com tranquilidade. Uma mão se ergueu e quase instantaneamente todas as outras levantaram-se também.

– Você, entre. – Disse a Dra. apontando para um macho grande com os pelos de trás da cabeça mais arrepiados e o focinho mais longo que os demais.

O babuíno a seguiu consultório adentro e em um instante estava acocorado sobre o espaldar do divã.

– Doutora, estou incomodado. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma rotina monótona. – Disse o bicho coçando com o indicador o umbigo.

– Ué, e porque você não procura sair dessa rotina? Vá fazer coisas diferentes.

– Impossível, Dra.! Temos que viver em grupo para conseguirmos alimento mais eficientemente e nos protegermos de predadores. Se decido me catar quando todos estão indo beber água, ora, então isto não é bem vida em grupo, não é mesmo? – Disse o macacão.

– Bom, há riscos que se tem de correr para mudar. Poderia vez por outra, quando estivesse sem nenhum predador espreitando, fazer algo diferente. – Sugeriu a analista.

– A Sra. não entende. Se decido fazer algo diferente logo todos estão fazendo igual a mim. E então deixa de ser diferente, volto à rotina. – A psicóloga parecia intrigada, mas compreendia o que estava acontecendo.

– Essa imitação não costuma ser assim o tempo inteiro. Ela deve ser pior antes de vocês começarem a comer, em vegetações mais fechadas e em grupos mais próximos. – Afirmou a analista.

babuinos

All together now!

Fonte: www.gemata.com

 

– Puxa, doutora, é isso mesmo. Como a senhora sabe? – Agora era o macaco que estava intrigado.

– Minha profissão exige estes conhecimentos. Mas então, sabendo disso, por que você não aproveita momentos em que a tropa esteja saciada, em vegetação aberta e mais afastados entre si para cuidar de seus próprios interesses? – Sugeriu a terapeuta.

– É, deve funcionar. Mas essas ocasiões são tão raras. – Lamentava-se o babuíno quando a doutora respondeu.

– E olhe, pare de falar mal da rotina. Pare com essa sina anunciada de que tudo vai mal só porque se repete. Pensando firme, nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas: dia azul, lua cheia, primavera, barulho do mar.

– É, você tem razão, é essa rotina que garante nossa sobrevivência. – Finalizou o babuíno. – Até a próxima, doutora.

A terapeuta acompanhou o grande macaco até a porta. Ao ouvir o clique da maçaneta todos se voltaram para a analista ao mesmo tempo.

– Quem vem agora? – Ela perguntou outra vez. Todas as mãos se levantaram novamente.

A psicóloga escolheu uma das muitas fêmeas ali presentes que a acompanhou ao consultório e sentou-se no alto do espaldar do divã.

– Doutora, estou incomodada. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma tediosa rotina, a senhora pode me ajudar? – A analista deu um suspiro longo como seria aquele dia.

 

King, A., & Cowlishaw, G. (2009). All together now: behavioural synchrony in baboons Animal Behaviour, 78 (6), 1381-1387 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.09.009