O Que Você Vai Ser Quando Morrer?

“A decomposição humana começa aproximadamente 4 min depois da morte. O início da decomposição é dominado por um processo chamado autólise ou auto-digestão. Conforme as células do corpo são privadas de oxigênio, o dióxido de carbono aumenta no sangue, o pH diminui e as escórias acumulam-se, envenenando as células. Concomitantemente, enzimas celulares (lipases, proteases, amilases, etc.) começam a dissolver as células de dentro para fora, causando sua ruptura, liberando fluidos ricos em nutrientes. Esse processo inicia-se precocemente e progride mais rápido em tecidos com alto teor enzimático (tal como o fígado) e com alto conteúdo de água (como o cérebro), mas afetará todas as células do corpo. A autólise normalmente não se torna aparente até alguns dias. Primeiro, são observadas vesículas preenchidas por fluidos e descolamentos de grandes extensões na pele. O corpo fica à temperatura ambiente (algor mortis), o sangue deposita-se no corpo causando a descoloração na pele (livor mortis), e o citoplasma celular coagula devido ao aumento da acidez (rigor mortis). Depois que uma quantidade suficiente de células se rompe, os fluidos ricos em nutrientes tornam-se disponíveis e o processo de putrefação pode começar.” [Vaas, 2002, em tradução livre por minha conta e risco]

Muitos dos que não acreditam na vida após a morte – eu incluso – pensam em deixar um legado de ações, lembranças, livros e/ou artigos já estariam de bom tamanho; quem sabe filhos… A decomposição de um corpo humano envolve uma série de reações bioquímicas, como se sabe. Quando um corpo humano é cremado, o que em geral ocorre a temperaturas maiores que 1000°C, todos os fluidos são evaporados e o que resta são cinzas dos ossos. O mineral presente nos ossos é a hidroxiapatita cuja a fórmula é Ca5(PO4)3(OH). O calor, entretanto, a transforma em sais de fosfato de cálcio [Ca3(PO4)2]. Gayle E. O’Neill chegou a quantificar as substâncias presentes nas cinzas de corpos cremados e encontrou a seguinte composição: Fosfato 47,5%; Cálcio 25,3%; Sulfato 11,00%; Potássio 3,69%; Sódio 1,12%; Cloreto 1,00%; Sílica 0,9%; Óxido de Alumínio 0,72%; Magnésio 0,418%; Óxido de Ferro 0,118%; Zinco 0,0342%; Óxido de Titânio 0,0260%; Bário 0,0066%; Antimônio 0,0035%; Cromo 0,0018%; Cobre 0,0017%; Manganês 0,0013%; Chumbo 0,0008%; Estanho 0,0005%; Vanádio 0,0002%; Berílio <0,0001%; Mercúrio <0,00001%. Muitas dessas substâncias têm cor. Quando misturam-se com água e umas com as outras, reações interessantes podem ocorrer. Foi o que o fotógrafo David Maisel descobriu.

Maisel visitou um antigo hospício no estado do Oregon nos EUA. No prédio abandonado, pode verificar que muitos dos internos que lá vieram a falecer, foram cremados por que nenhum familiar veio reclamar o corpo. As cinzas, armazenadas em latas, permaneceram durante décadas a mercê do tempo, mesmo depois da instituição ser desativada. Infiltração de água e mudanças de temperatura, fizeram com que os sais reagissem com o metal da lata, provocando reações inusitadas. Cada lata, como cada personalidade ali confinada, tem um padrão de cor e desenho totalmente diferente das outras.

É como se a personalidade da pessoa ficasse estampada no corpo da lata. Maisel fotografou com detalhe todo o local e publicou um livro sobre o assunto. É interessante observar os padrões. Ver como as reações com substâncias bastante semelhantes ocorreram de forma única e especial para formar uma individualidade que, mesmo que lá houvesse milhares de milhões de latas, jamais se repetiria. Como seres humanos viventes que, numa metáfora mórbida da morte que se volta sobre si, refletem a vida que tiveram numa instituição para desajustados e, mesmo mortos, tornam a diferenciar-se, na igualdade de seu confinamento, em múltiplos padrões de cores e texturas. Um luxo só. Como dizer que sua morte foi vã?

Morrer é uma arte.

ResearchBlogging.org

Vass AA, Barshick SA, Sega G, Caton J, Skeen JT, Love JC, & Synstelien JA (2002). Decomposition chemistry of human remains: a new methodology for determining the postmortem interval. Journal of forensic sciences, 47 (3), 542-53 PMID: 12051334