Injustiça Fisiológica

E segurou sua mão até adormecer
E dormentes ficaram: Eles e as mãos
Até que não mais soubessem se laçavam-se ou não
as mãos ou se seriam elas parte de seu próprio ser

~ o ~ o ~

Ao terminar o pequeno verso, lembrou imediatamente de suas aulas de neurofisiologia. Lembrou da foto que o professor mostrou com os receptores cutâneos que permitiam o sentido do tato.

Receptores cutâneos e seus padrões de adaptação.

Figura. Receptores cutâneos. Painel central (amarelo). Gráfico mostrando um estímulo padrão (trapezoide) e o ritmo de disparo (representado pela sequência de retas logo abaixo) dos 4 tipos mais comuns de receptores cutâneos. Notar como os disparos (impulsos elétricos emitidos) decaem com o tempo de forma diferente de acordo com cada receptor. O receptor de Meissner (quadrante superior esquerdo) por exemplo, dispara apenas no início e no final do estímulo. Há receptores que exibem adaptação rápida (Fast Adaptation – FAI e FAII na coluna à esquerda) e os que exibem adaptação lenta (Slow Adaptation – SAI e SAII, coluna à direita). As mãos mostram as respectivas distribuições dos receptores. Modificado do Neurobiography (http://www.neurobiography.info/teaching.php?lectureid=65&mode=handout)

Lembrou também que os receptores do tato apresentam o fenômeno de adaptação e que as pequenas fibras dos neurônios tipo IV do grupo C, chamadas de nociceptivas por conduzirem os impulsos dolorosos, não. A adaptação, grosso modo, é uma diminuição da frequência e/ou intensidade dos disparos elétricos de receptores nervosos em decorrência da constância de um estímulo no tempo. Nocicepção (mesma raiz de “nocivo”) se refere a impulsos que podem levar à perda da integridade do tecido ou mesmo do organismo, ou seja, machucam. Esses estímulos não adaptam da mesma forma como os do tato por razões de proteção ao indivíduo. Assim, a dor pode persistir por longos períodos diferentemente dos estímulos mais suaves, em especial, se as condições do ambiente permanecerem constantes. Como no caso de mãos dadas e imóveis por longos períodos. Nenhuma ameaça ao indivíduo nesse caso.

Ele não pôde evitar que passasse pela sua cabeça uma certa sensação de “injustiça fisiológica”. Como podemos nos adaptar (parar de sentir) um carinho e, no entanto, deixamos que a dor continue a doer? A biologia tem lá suas razões. O curioso é a humanidade ter emergido a partir de reflexos assim. Curioso também a poesia condensar tanta neurofisiologia num verso.

Pensando bem, humanos talvez sejam exatamente isso.

Um monte de poesia condensada contidos por uma fisiologia lapidada pelo tempo e temperada com aquela pitada de injustiça; que teima em não se adaptar.

PS. Esse post é uma republicação. O original saiu no blog Ciensinando do Gabriel Cunha que infelizmente já não está mais no ar.

O Filme

filme2Vou dar só um exemplo, macaco pelado. Só um. Então, agarre-o com as suas mãozinhas glabras e suadas de desespero, com toda a força que puder. Veja só.

Pegue uma boa câmera de filmar. Pode ser celular com câmera também, óbvio. Mas bom. Nossa, como você se prende a detalhes irrelevantes, não? Depois de pegar a câmera, desça pelo elevador e ganhe as ruas. Nas ruas mora o monstro do cotidiano. Mora a vida comum. Nas ruas há vitrines e galerias e é onde está o mundo da vida. Escolha um lugar movimentado qualquer. Ligue a câmera e comece a filmar o que você vê ao seu redor. Filme tudo; vá filmando. Filme os carros, os prédios, as pessoas. Filme-as conversando, paradas ou simplesmente andando. Filme ABSOLUTAMENTE tudo. Até acabar a bateria.

Macaco pelado, você sabe manipular esses aparelhos, não? Sabe sim. Só não sabe muito bem o que fazer com eles, mas vou lhe dizer. Chegue em casa e passe o que você filmou para o computador. Assista. Passe horas, dias, assistindo até quando não aguentar mais ver o filme e me responda com toda a sinceridade – sinceridade com a qual você normalmente não está acostumado a lidar – me responda, macaquinho pelado – à pergunta que farei e que sei, sim, que é a pergunta que você mais teme que eu faça. Na verdade, é a pergunta que você luta para não se fazer!

Pobre macaco pelado… Não vou poupá-lo porque você tem andado meio arrogante nos últimos tempos, viu? É isso mesmo. Então lá vai. Depois de ter filmado tudo o que podia lá fora – no mundo da vida – depois de ter visto esse filme várias e várias vezes, me diga macaco pelado, qual é o sentido desse filme que você acabou de fazer e que viu tantas vezes? Qual é, diz? NENHUM?! Como assim? Mas você filmou o mundo REAL, coisas REAIS, pessoas REAIS, com uma câmera boa, não foi? O que foi que você captou, então? Não foi a REALIDADE? Por que isso tudo não faz sentido, macaco? Será que a realidade não faz sentido?

Nenhum sentido. A  r e a l i d a d e  n ã o  f a z  n e n h u m  s e n t i d o. Descrever a realidade o mais fielmente possível NÃO GARANTE que haja sentido! Explicar é diferente de compreender. Por melhor que seja a câmera, por mais tempo que se filme, por mais longe que se vá, ainda assim, nada fará sentido.

Essa é a sua Ciência, macaco pelado. Uma câmera. Cuidado com os filmes que você faz e principalmente com os que você vê. Agora, quer saber um jeito de como dar algum sentido para as coisas que você filma? Quer sim, eu sei. É fácil. Da próxima vez, conte uma história. Não precisa nem de câmera. Esse é o exemplo. Sacou?

O (Infra)Vermelho e o Branco

red-filter-heart-musicO professor Miguel Nicolelis e sua equipe da Duke University Medical Center conseguiu conseguiram fazer com que ratos “visualizassem” luz em comprimentos de onda na faixa do infravermelho, o que normalmente não é possível, nem para esses animais, nem para nós. De fato, o título da matéria divulgada afirma que os roedores adquiriram a habilidade de “tocar” a luz infravermelha após a colocação de uma neuroprótese. O experimento consistia em treinar ratos a escolher cores (luz visível portanto) dentro de uma gaiola com objetivo de receber uma recompensa. “Depois de treiná-los, os pesquisadores implantaram nos cérebros dos ratos um arranjo de microeletrodos com diâmetro aproximado de 1/10 de um fio de cabelo na região cortical responsável pela sensação táctil proveniente de seus bigodes. Ligado aos microeletrodos havia um detector de infravermelho. O sistema estava programado de tal forma que quando o sensor de infravermelho disparava, era gerado um impulso elétrico no córtex sensorial do rato. O sinal aumentava em frequência e intensidade conforme o animal se aproximava da luz. No início, os ratos se confundiam e coçavam o nariz. Depois de aproximadamente 1 mês de treinamento, os ratos utilizavam o focinho para localizar a fonte de infravermelho como alguém que procura algo no horizonte com a mão em aba sobre os  olhos. Levavam a cabeça para frente e para trás, procurando pela intensidade do sinal. E funcionou. Um achado importante, segundo Nicolelis, foi o fato de que tal adaptação não causou uma perda da função primária – tátil – das vibrissas do rato. Uma avenida ficcional se abre diante dessa nova possibilidade. Imaginar homens com possibilidade de “ver” ondas eletromagnéticas e outros tipos de entes invisíveis aos nossos olhos é fantástico. Além disso, a possibilidade reparar lesões neurológicas (cegueira, surdez, afasias, etc), utilizando a plasticidade do sistema nervoso é uma consequência óbvia.

A coisa toda é muito interessante. Fiquei com isso na cabeça, quando no Twitter me aparece uma palestra do Augusto de Campos tentando responder à questão: “O que é a poesia?”. Nessa palestra, Campos usa uma estorinha contada por Arnold Schönberg, o “louco” do dodecafonismo na música, quando se defrontou com a pergunta “O que é a música?”. A anedota tal como Campos contou na palestra (apesar de que o interessante e bonito portal Musa Rara dá uma outra versão) é esta:

Um cego perguntou ao seu guia: — Como é o leite?
O outro: — O leite é branco.
O cego: — E o que é esse “branco”? Me dê um exemplo de algo que seja “branco“!
O guia: — Um cisne. Ele é totalmente branco e tem um pescoço longo e curvo.
O cego: — Pescoço curvo? Como é isso?
O guia, imitando a forma do pescoço do cisne com o braço, fez com que o cego o apalpasse.
O cego: “Ah! agora eu sei como é o branco…”

Se a anedota explica (ou complica) nossa compreensão do que é a música, deixo aos seletos leitores. Tudo isso foi mesmo para dizer que se alguém perguntasse a um rato stendhaliano neuroprotetizado de Nicolelis o que é o infravermelho, talvez ele respondesse: “Infravermelho? Não sei o que é. Só sei que me dá muita vontade de coçar o nariz…”

Eric Thomson, Rafael Carra e Miguel A. L. Nicolelis. February 12, 2013 in the online journal Nature Communications.

Veja a palestra de Augusto de Campos.

As Origens do Emaranhamento

gasparzinhoEste é um post de um autor convidado, oculto e que faz parte de uma blogagem coletiva do SBBr. Saiba mais clicando aqui. Os leitores também podem tentar adivinhar quem seja o blogueiro entre os participantes.
Por Blogueiro Oculto
O post de hoje é sobre ocultismo. E vai ter fantasmas também. E muita ciência. Quer ver? Vamos lá:

oculto.:adj. Do latim occultu-, «idem», particípio passado de occulĕre, «esconder; ocultar»

1.subtraído à vista, escondido; encoberto; 2. que apenas se conhece pelos efeitos; 3. invisível; 4. ignorado; 5. misterioso; 6. que não pode ser explicado pelas leis naturais, sobrenatural; 7. não explorado

O conceito de “elemento oculto” permeia os mais variados campos do conhecimento humano. Em especial, na verdade, quando há algum nível de desconhecimento: é a incógnita das equações matemáticas ou o sujeito oculto da gramática, é ainda o contaminante de reações químicas ou o elemento que falta em Hamiltonianos na modelagem teórica correta de experimentos. À boca pequena, diz-se mesmo que quando médicos diagnosticam pacientes genericamente com uma “virose”, o que há de fato é algum elemento que eles desconhecem e previne um diagnóstico mais preciso.

Um dos elementos ocultos historicamente mais famosos são as “variáveis escondidas” propostas por Einstein e colegas a fim de justificar que a nascente Física Quântica não poderia ser como de fato é.

Não entendeu? Eu explico. Imagine um sistema formado por duas partes. Duas bolas, por exemplo. Uma azul, outra vermelha. Melhor ainda, pense quanticamente: cada bola pode ser azul ou vermelha e o estado quântico é uma-bola-azul-e-uma-bola-vermelha. Agora separe as duas partes. Quando você olhar para uma delas e descobrir que ela é vermelha, imediatamente você sabe, sem olhar para a outra, que ela é azul, e vice-versa. Mas, e aqui tem uma grande MAS exclusivamente quântico: a bola para a qual você olhou até o momento anterior à medida é azul E vermelha e só “define” sua cor no ato da medida. Consequentemente, a outra bola, não importa quão distante ela esteja, metros, quilômetros, anos-luz distante, IMEDIATAMENTE, define sua cor também.

Ora, “imediatamente” é um conceito completamente avesso à Teoria da Relatividade de Einstein. Em Relatividade não há NADA imediato: toda informação leva um tempo para se propagar e, no máximo, se propaga com a velocidade da luz. Com a interpretação do parágrafo anterior e sua Teoria da Relatividade em mãos, Einstein, Podolski e Rosen escreveram um trabalho onde afirmavam categoricamente que havia aí um paradoxo: a interpretação só poderia estar errada pois, afinal, a Relatividade estava correta. Abre parênteses: Einstein, dentre tantos, ajudou a construir a Física Quânica não apenas “positivamente”, desenvolvendo-a, mas especialmente por criticá-la, questioná-la, tentar mostrar que havia problemas e instigando seus colegas, defensores da Física Quântica, a achar interpretações coerentes para contornar os supostos problemas. Fecha Parênteses.

Desta feita, os três sugeriram duas possibilidades para resolver este aparente paradoxo: ou há, na Física Quântica, variáveis ocultas que fazem a transmissão da informação e, obviamente, ainda não haviam sido consideradas e/ou descobertas ou havia algum tipo de “ação fantasmagórica à distância” (olha os fantasmas que eu prometi aí!) responsável pelo efeito. Mais um parênteses: vindo de cientistas de alto gabarito, a menção explícita a “fantasmas” chega a ser engraçada e surpreendente.

A questão manteve-se e foi estudada por muitos e por muito tempo. Coube a Bell colocar a existência das variáveis ocultas numa simples desigualdade matemática (a desigualdade de Bell) e ao físico Alain Aspect a testar essa desigualdade e, surpreendentemente, violá-la, descartando definitivamente a existência das variáveis escondidas propostas por Einstein. Mas então, perguntará você: se a parte oculta da questão não existe, isso significa que há fantasmas agindo por aí? É claro que não.

De fato, a aventada “ação fantasmagórica à distância” tornou-se uma das mais emblemáticas e potencialmente aplicáveis faces da Física Quântica. Nascia ali o Emaranhamento. Em termos simples, e voltando ao nosso exemplo lá do começo do texto, as duas bolas estão emaranhadas e por isso, não importa quão distante elas estejam, ainda assim formam um único sistema, delocalizado e, por isso, quando a cor de uma se define, a da outra, imediatamente, também se define, pois elas formam um único sistema. Esse tipo de fenômeno é exclusivo da física quântica e não tem, nem pode ter, análogo clássico. De fato, é este fenômeno um dos pilares das propostas de transmissão, criptografia e computação quânticas, e do teletransporte (“Beam me up, Scotty!”) que um dia farão (farão mesmo?) seus caminhos para o nosso dia-a-dia e que hoje começam a se tornar reais em laboratórios ao redor do mundo.

[Este texto é parte da primeira rodada do InterCiência, o intercâmbio de divulgação científica. Saiba mais e participe em: http://scienceblogs.com.br/raiox/2013/01/interciencia/]

O Bloqueio dos Prótons

Este é o último post da série sobre as aquaporinas, um dos mais “geniais” sistemas de transporte molecular já descoberto, que contou com os posts O Poder dos Prótons e Uma Passagem para Água.

Do ponto de vista biológico, portanto, faz sentido as aquaporinas não permitirem a entrada de espécies protonizadas. Mas, do ponto de vista bioquímico isso não é tão simples. A pergunta “Como?” é a que deve ser cientificamente respondida, mas apenas recentemente  estudos com simulações elucidaram os mecanismos de bloqueio dos prótons.

São três os dispositivos capazes de efetuar o bloqueio dos prótons pelas aquaporinas[1,2]. A pergunta sobre qual seria o mais importante, ainda se constitui objeto de discussão acadêmica. A figura abaixo mostra o canal de uma subunidade da AQP1 onde quatro moléculas de água (de cor mais forte, no centro) demonstram as interações com os resíduos aminoácidos da estrutura do canal. Os mecanismos são:

(a) Estreitamento. Por restrição de tamanho, pouco acima do ponto médio do canal, o poro se estreita de 8 Å para 2,8 Å (aproximadamente o diâmetro de uma molécula de água). Isso provoca a desidratação do H3O+, o que obrigaria a molécula a desfazer-se de sua carga.

Figura 1. Mecanismos de bloqueio de prótons pelas aquaporinas. (modificado de [1])

(b) Repulsão eletrostática. Um resíduo de arginina (R-195, na figura) na região de maior estreitamento do poro impõe uma barreira aos cátions, incluindo o H3O+. No foco da controvérsia, alguns estudos mostram que talvez esse mecanismo seja o mais importante no bloqueio dos prótons pois ele está presente virtualmente em toda família das AQP. A retirada deste resíduo reduz drasticamente a especificidade aos prótons.

(c) Reorientação do dipolo. Duas hélices parciais formadas por resíduos Asn-Pro-Ala (chamados NPA motifs) se encontram no meio do canal, formando um campo magnético bipolar que alinha a molécula de água através da formação de duas pontes de hidrogênio. Isso orienta perpendicularmente a água, fazendo com que as pontes O-H apontem para fora do canal, impedindo a condutância dos prótons pelo efeito Grotthuss. Mais elegante, esse mecanismo foi o proposto inicialmente [3,4].  A figura 2 mostra como o campo magnético bipolar exige que a molécula de água tenha uma orientação específica para entrar no canal a um baixo custo de energia.


Figura 2. Modelagem da organização preferencial da cadeia de moléculas de água da aquagliceroporina (GlpF) de E. Coli. (Acima) Três conformações representativas da cadeia de água. (A) Com as pontes de H orientadas para o extracelular. (B) Conformação preferível. Note que entre a molécula 6 e a 7, o alinhamento entre H e O (branco e vermelho, respectivamente) é quebrado. (C) Com as pontes de H orientadas para o intracelular. (Abaixo) Gráfico ilustrando a energia necessária para a reorientação das moléculas de água (nas abscissas) e a orientação das pontes de H (ordenadas) por duas metodologias diferentes (linhas vermelha e verde). As letras A, B e C correspondem às conformações acima, sendo a B a de menor trabalho termodinâmico . (A partir da referência [3])

Os dispositivos de bloquear prótons presentes nas aquaporinas, seja pelo posicionamento estratégico de cargas ao longo de um canal, seja pelo “desengajamento” da corrente de moléculas de água que quebra o “teletransporte” dos prótons, são exemplos interessantes da “luta” na qual os seres vivos se envolveram para chegarmos onde estamos. Tal luta não se dá apenas no nível macroscópico da concorrência entre as espécies e a seleção natural. Ela ocorre também no nível subcelular – das moléculas -, e mostra a dificuldade de resistir e manter-se estável na agressividade do ambiente natural, o que pode bem ser entendido como “viver”. Parece, então, ter sido evolutivamente vantajoso para célula manter os sistemas de transporte de água e prótons separados de modo a poder controlar o volume e a concentração dos solutos do citoplasma, por um lado, e o metabolismo energético, por outro, de forma independente[4]. A família das AQPs é filogeneticamente antiga, estando presente nos procariotas, o que indica a urgência desse controle já nos primórdios da vida na Terra. De fato, domar precocemente as vicissitudes da água parece mesmo ter sido imprescindível para que os seres vivos prosseguissem dependendo dela.

 

Referências Bibliográficas

[1] Kozono D, Yasui M, King LS, et al.: Aquaporin water channels: atomic structure molecular dynamics meet clinical medicine. J Clin Invest 109:1395-1399, 2002.

[2] Chen H, Wu Y, Voth GA: Origins of proton transport behavior from selectivity domain mutations of the aquaporin-1 channel. Biophys J 90:L73-75, 2006.

[3] Chakrabarti N, Tajkhorshid E, Roux B, et al.: Molecular basis of proton blockage in aquaporins. Structure 12:65-74, 2004.

[4] Eisenberg B: Why can’t protons move through water channels? Biophys J 85:3427-3428, 2003.

Uma Passagem para a Água

Este post faz parte de uma série cujo primeiro é O Poder dos Prótons.

Na fisiologia clássica, por volta da década de 20, quando se descobriu que a membrana plasmática das células era uma dupla camada lipídica, formulou-se a hipótese de que a água pudesse penetrar no meio intracelular através da própria membrana, seguindo forças osmóticas. Entretanto, uma série de pesquisadores, por meio de medidas biofísicas (que analisam potenciais de membrana), notaram que a permeabilidade de algumas membranas à água era 10 a 20 vezes maior do que a esperada caso a passagem ocorresse apenas através delas[1]. Previram, assim, a existência de um canal para passagem da água.

No início da década de 80, Peter Agre era um hematologista envolvido no estudo do fator Rh (o “positivo” ou “negativo” dos tipos sanguíneos) trabalhando no Instituto Nacional de Saúde dos EUA. Estava interessado em induzir a formação de anticorpos em coelhos sensibilizando-os com um peptídeo parcialmente purificado do fator Rh. Os coelhos reagiam fortemente produzindo anticorpos que, no entanto, não reagiam com o cerne da molécula de Rh mas sim, com uma outra proteína que acreditava-se ser um fragmento do grande polipeptídeo. Parecia uma contaminação do experimento. Mas essa proteína de 28 kilodaltons (kDa), tinha algumas propriedades estranhas. Não se corava com os procedimentos habituais e quando foram procurá-la na membrana de hemáceas, verificou-se que era extremamente abundante. Com aproximadamente 200.000 cópias por hemácea, era uma das proteínas mais comuns na célula! Nas palavras de Agre (descendente de imigrantes nórdicos) “era como se alguém, andando pelo norte desértico da Suécia, de repente, encontrasse uma cidade de 200.000 habitantes que não constasse em nenhum mapa”. Estudos subsequentes revelaram que a proteína tinha características de um canal pois dispunha-se ao longo da espessura da membrana. Uma série de elegantes experimentos revelou que ela era um canal de água sendo batizada com o sugestivo nome de aquaporina 1 (AQP1). Peter Agre recebeu o prêmio Nobel de Química em 2003 por sua descoberta (Figura abaixo). Orgulho do pai, que havia trabalhado com Linus Pauling, acabou abandonando a hematologia. (Veja a interessantíssima “palestra do prêmio” (em inglês, 45 min) no portal do Nobel).


Figura 1. Peter Agre. Prêmio Nobel de Química de 2003

As aquaporinas constituem uma família de, até o momento, algumas centenas de proteínas de membrana. Nos mamíferos já foram identificadas doze, sete das quais estão presentes no rim. Nos últimos anos, pesquisas têm explorado a seletividade e as funções multitransportadoras das aquaporinas. Isso levou a uma divisão do grupo em aquaporinas clássicas e aquagliceroporinas. Estas últimas também transportam passivamente glicerol e outros polióis bem como alguns solutos e, ao que parece, são filogeneticamente até mais antigas que as aquaporinas clássicas[2]. A AQP1 é uma proteína de membrana altamente permeável à água. Sua condutância é de aproximadamente 3 x 10^9 molec / subunidade / seg permitindo que uma molécula de água trafegue a ~0,02 cm/s [3]. A AQP1 forma 4 complexos na membrana celular (subunidades), cada um formando um canal de água independente (figura 2). Um quinto poro é formado no centro do complexo e há indícios de que possa conduzir íons, mas o transporte passivo de água através da membrana celular é mesmo a maior função fisiológica da AQP1 [4].

Figura 2. Foto de simulação do transporte de água por uma molécula de aquaporina. As subunidades são constituídas de túbulos que estão em cores diferentes. As moléculas de água (pequenos bumerangues azuis) permeiam a subunidade à direita (em dourado). Esta imagem ganhou o prêmio de melhor foto científica da revista Science™ na edição de 24 de Setembro de 2004 e pode ser encontrada aqui, juntamente com uma animação do transporte das moléculas de água.

É surpreendente o fato de que, mesmo transportando água tão eficientemente, as aquaporinas sejam impermeáveis aos íons. A razão disso seria a proteção do meio interior celular para que a maquinaria metabólica possa funcionar adequadamente e em “silêncio biológico” – o que pode até ser uma definição bonita de Saúde, mas teleológica demais para servir a nossos propósitos. Até o mais enxerido de todos íons, o próton e seu alterego H3O+, não consegue passar pelas reentrâncias do canal de água. Como isso se dá? Como isso ocorre se os prótons teleportam-se de um lugar para outro livremente na Mattrix aquática, materializando-se e evaporando em qualquer lugar bastando para isso um “fio de água” por onde possam passar…

É o que tentarei descrever no próximo e último post da série.

Referências Bibliográficas

[1] Finkelstein A: Water Movement Through Lipid Bilayers, Pores, and Plasma Membranes: Theory and Reality (Distinguished Lecture Series of the Society of General Physiologists). New York, John Wiley & Sons Inc, 1987.

[2] Nielsen S, Frokiaer J, Marples D, et al.: Aquaporins in the kidney: from molecules to medicine. Physiol Rev 82:205-244, 2002.

[3] Preston GM, Carroll TP, Guggino WB, et al.: Appearance of water channels in Xenopus oocytes expressing red cell CHIP28 protein. Science 256:385-387, 1992.

[4] Zhu F, Tajkhorshid E, Schulten K: Theory and simulation of water permeation in aquaporin-1. Biophys J 86:50-57, 2004.

O Poder dos Prótons

Há um poder, silencioso e gigantesco que, entre outras coisas, é o responsável pela água na forma como a conhecemos no nosso planeta. Se a água é, por sua vez, a matriz de todas as formas vivas daqui, então tal poder também estará presente em cada ser vivo. A explosão de vida da Terra teve que lidar com ele para que pudesse florescer e, de fato, quando nos escapa esse controle, uma fera enjaulada foge e a vida diminui ou mesmo acaba. Podemos chamar isso de “doença”. Nos próximos posts vou tentar contar a história do Poder dos Prótons e seus desdobramentos na fisiologia e fisiopatologia dos seres vivos, em especial, dos humanos.

O Hidrogênio poderia, para todos os efeitos, ser considerado um elemento-traço. Para se ter uma ideia, sua concentração é 3,5 milhões de vezes menor que a do Sódio nos fluidos orgânicos. No soro, ela é da mesma ordem de grandeza do Molibdênio (20 nM/L) e bem menor que concentrações de elementos como Zinco (15 mM/L), Cobre (20 mM/L) e Selênio (1 mM/L) [1]. Como pode o Hidrogênio com uma concentração de 0,000 000 040 M/L ou 40 nM/L influenciar tão decisivamente os processos biológicos? Quais as razões que levam o íon hidrogênio a desempenhar um papel tão importante?

A primeira delas é, sem dúvida, a água. Todos os fenômenos biológicos ocorreram e ocorrerão sempre em soluções aquosas desde que a estrutura celular que caracteriza os seres vivos neste planeta seja mantida. A água tem, como se sabe, estranhas propriedades quando comparada a outros hidretos da família do Oxigênio (a família 6A na tabela periódica – Enxofre, Selênio, Telúrio e Polônio): altos pontos de fusão e ebulição, alta constante dielétrica (conduz correntes bem), alta tensão superficial (forma gotas muito resistentes), entre outras (Tabela 1).

Grupo

3A

4A

5A

6A

7A

B2H6 : -92.5

CH4 : -164

NH3 : -33.4

   H2O : +100

HF : -87.7

   H2S : -60.7
   H2Se : -41.5
   H2Te : -2

Tabela 1. A água tem um ponto de ebulição anormalmente elevado quando comparado por extrapolação em relação aos hidretos do grupo 6A (Oxigênio, Enxofre, Selênio e Telúrio). Os hidretos dos outros grupos são mostrados para comparação (3A Boro, 4A Carbono, 5A Nitrogênio e 7A Flúor). (Retirado daqui)

A grande maioria das estranhas propriedades da água provém da habilidade que ela tem de formar pontes de hidrogênio. Como se sabe, a ligação do Oxigênio aos dois átomos de Hidrogênio dá à molécula de água o formato de um “V” com um ângulo de 104,5o. Essa ligação é formada por um par de elétrons compartilhado (a chamada ligação covalente). O Oxigênio, no entanto, atrai o par de elétrons para bem perto de si (maior eletronegatividade) e transforma a molécula de água em um minúsculo imã com seus 2 pólos: o positivo (Hs) e o negativo (O). Quando um átomo de H, carregado positivamente, fica preso entre dois átomos de O, que têm cargas negativas, ele passa a funcionar como uma ponte entre os dois. Essa atração é 90% eletrostática e 10% covalente (há evidências de que eles podem realmente dividir orbitais, fazendo com que não consigamos saber qual ligação é a covalente), e cada molécula de água tem o potencial de fazer 4 pontes. Além disso, pode-se dizer que a ponte de hidrogênio é cooperativa isto é, uma vez formada a primeira ponte, a molécula torna-se mais apta a formar outras pontes e o fenômeno se dissemina. O contrário também é verdadeiro, ou seja, é mais difícil romper a primeira ponte, sendo que a energia necessária para romper as subsequentes vai, progressivamente, ficando menor. Isso transforma a água em um “sincício”, tipo um tecido tridimensional; daí a poderosa força de atração intermolecular que dota a água de seus elevados pontos de ebulição, fusão e tensão superficial. A formação das pontes de hidrogênio faz com que a entalpia (energia) do sistema fique mais negativa e a entropia (grau de desorganização) menos positiva ou, trocando em miúdos: a água se organiza!. Organiza-se com baixo custo, o que significa que é difícil tirá-la desse estado de organização e, na dependência da temperatura e pressão, temos a explicação de muitas das suas “estranhas” propriedades. Ou seja, se a água fosse apenas H2O seria um gás na faixa de temperatura que permite que seres vivos sobrevivam. No estado líquido, ela está na forma de (H2O)n, com n→∞, constituindo mais pontes de H que qualquer outro solvente e com quase tantas pontes quanto ligações covalentes. Esse sistema é interessante pois pode rearranjar-se rapidamente frente a estímulos como solutos ou alterações de temperatura, como uma rede tridimensional capaz de mudar o tamanho de seus “buracos” de acordo com o tamanho dos “peixes” que nela caem.

Além disso, a água demonstra uma extremamente baixa mas mensurável capacidade de formar íons. Ioniza-se devido a flutuações do campo magnético de seu dipolo causadas por vibrações complexas de sua estrutura molecular e também por posicionamentos espaciais favoráveis de suas pontes de H. Após a ionização, o H+ não permanece livre muito tempo (menos que 1% do tempo total) e é hidratado para formar o hidroxônio, oxônio ou hidrônio (H3O+). Os três átomos de H da molécula são equivalentes na ligação com o O e organizam as pontes com as moléculas de água adjacentes. O H3O+ exibe uma mobilidade frente aos campos elétricos de testes que é absurdamente maior que a prevista para um cátion monovalente (como o Lítio, por exemplo, que apresenta inclusive uma forma de hidratação semelhante). Qual seria a explicação para esse fenômeno?

Um próton pode viajar em uma solução aquosa de duas maneiras: uma, chamada hidrodinâmica, em que o H3O+ difunde-se como uma molécula comum abrindo caminho pelo meio aquoso; outra, chamada prototrópica e essa merece uma explicação. Em 1905 [2], foi sugerido que a transferência do próton poderia ocorrer por uma “rede” de pontes de hidrogênio, um processo que envolveria uma série periódica de polimerizações da água entre H9O4+ (cátion de Eigen) e o H5O2+(cátion de Zundel), conhecido como efeito Grotthuss [3], proton-wire ou proton-jumping, ou ainda water-wire. Isso só é possível, devido à efêmera duração da ponte (cada ponte tem uma duração média de 10 psec, sendo que 1 picosegundo = 10-12s) e à facilidade com que a água as forma e “re-forma”, como vimos. Dizemos então, que a alta condutividade do próton em meio aquoso ocorre devido a “mudança de identidade das moléculas de água que participam das pontes” pois os núcleos de H vão passando de uma para outra conforme esboça a figura 2, sendo que o que entra, é diferente daquele que sai.

Figura 2. Esquema simplificado do efeito Grotthuss

 Isso funciona parecido com o hipnotizante Pêndulo de Newton, na figura abaixo.

Pêndulo de Newton (fonte Wikipédia)

Mas…

O íon hidrogênio tem uma densidade de carga altíssima e isso ocorre porque ele é um cátion-anão (monovalente no qual não existem elétrons circulantes) sendo seu raio 105 vezes menor que qualquer outro. Por essa razão, tem um grande campo magnético ao seu redor. Assim, mesmo estando presente em concentrações baixíssimas nas soluções e devido sua alta mobilidade, o H3O+ é um “pentelho iônico” e pode afetar a conformação de proteínas, ácidos nucléicos e membranas biológicas, bastando para tal, que haja uma “brecha” eletrostática (cargas) na solução. Esse é o “poder dos prótons”, capazes de alterar todos os processos biológicos, portanto. Fenômenos semelhantes ocorrem com a hidroxila OH entretanto, sua mobilidade nas soluções tem sido bem menos estudada. Pesquisas recentes [4] demonstram que sua mobilidade também é anormalmente alta para um ânion de seu porte e, portanto, mecanismos semelhantes ao do H3O+ podem também ocorrer. Tanto o H+ como o OH são gerados pela destruição e destruídos pela formação de uma molécula de água. Se considerarmos que a água é, em ordem de grandeza, a mais concentrada substância dos sistemas vivos (55,3M – o que é 400 vezes mais concentrado que o sódio), e que ela provê uma fonte simplesmente inesgotável para esses íons, entenderemos porque eles se comportam de maneira tão diferente de outros íons de carga e massa semelhantes.

Com toda essa mobilidade e onipresença, é natural esperar que prótons penetrem as células com facilidade, podendo fazê-lo através da membrana ou por meio de canais, específicos ou não, para seu transporte. Tal fluxo é tão fundamental quanto o de água para a célula, pois está ligado à produção da energia que sustenta o metabolismo celular. Mas como evitar então, que o transporte de água em abundância através da membrana não cause uma catástrofe iônica na célula? Como evitar que os “pentelhos iônicos” dos H3O+ saturem as cargas das proteínas e as deformem fazendo com que percam sua função e, assim, parem o funcionamento da maquinaria celular?

É o que mostraremos no próximo post.

Referências Bibliográficas

[1]  Tietz N: Clinical Guide to Laboratory Tests, 3rd ed. Philadelphia, W. B. Saunders, 1995

[2]  Decoursey TE: Voltage-gated proton channels and other proton transfer pathways. Physiol Rev 83:475-579, 2003.

[3]  Agmon N: The Grotthuss mechanism. Chem Phys Lett 244:456-462, 1995

[4]  Tuckerman ME, Marx D, Parrinello M: The nature and transport mechanism of hydrated hydroxide ions in aqueous solution. Nature 417:925-929, 2002

Ciência sobre a Divulgação da Ciência

Um recente comentário nesse blog diz respeito a uma questão que virou, ela mesma, motivo de investigação científica, e permanece atualíssima, como se pode notar. Parece mesmo que esse tal “diário de menininhas” acabou virando um veículo de importância para a população, seja “letrada” sob determinado assunto, seja considerada leiga. Por permitir comentários e perguntas diretas aos autores, os blogs acabam desempenhando um papel que permite a transposição dos grandes abismos entre decisões tecnocráticas, descobertas científicas, de um lado, e o entendimento geral da grande massa de não-técnicos de outro. Pelo menos foi o que algumas autoras concluiram.

Em um estudo que teve este blog como objeto ou, mais especificamente, comentários dos leitores feitos a partir de posts sobre a campanha de vacinação contra a gripe A de 2010, Fausto e col. concluiram que os blogs são ferramentas úteis para propagação de informações sobre saúde ao público não-especializado. Nas suas palavras “This approach enlightens the internet blogs as useful tools for searching about health information by the lay public, indicating that the official health campaigns should reinforce their strategies to disseminate health information in a simple and understandable way to the general public, in order to inform and influence individual and community decisions that improve health.”

Pelo que soube, o estudo foi bastante bem recebido no encontro sobre informação e saúde em Bruxelas, o que significa que mesmo em países onde as desigualdades são menores que as nossas, o acesso a informação clara e objetiva é fundamental e desejado. Gostaríamos de parabenizar as autoras Sibele Fausto, Fabiana Carelli, Lúcia Eneida e Helena Neviani pelo excelente trabalho e agradecer a divulgação. De minha parte, tê-las como leitoras é uma honra e tanto. Espero sempre poder corresponder às vossas expectativas.

Para concluir, como não poderia deixar de ser, vamos a um exercício de reflexão. Se esse é um blog de divulgação científica e torna-se, ele mesmo, objeto da ciência, quando escrevo um post divulgando a ciência que o estudou, estou divulgando o quê? O blog propriamente dito ou a ciência que o motiva? Apesar desta pergunta ter me incomodado alguns segundos, entendi que sua relevância era pequena e que este meta-post é bem mais um agradecimento/reconhecimento que uma divulgação aos meus poucos porém altamente seletos (e queridos!) leitores como ficou aqui cartesianamente demonstrado.

ResearchBlogging.org Fausto S, Carelli F, Rodrigues LE, Neviani EH (2012). The Brazilian blog Ecce Medicus and the information on H1N1 flu vaccine for lay people: a case study in Health Communication. Annals of the European Association for Health Information and Libraries Conference, 13th, Brussels, 224-226.  http://sites-final.uclouvain.be/EAHIL2012/conference/?q=node/1444.

 

Os Mestres do Preconceito

“Clínicos são intérpretes prudentes das experiências de saúde de seus pacientes”.

R.E.G. Upshur [1] (grifos meus)

Ao GENAM, com carinho

O esforço do Homem (antropos) para compreender o cipoal de significados sobre o qual é lançado no momento em que nasce é crucial para sua sobrevivência. Hoje, a infinidade de códigos e linguagens que devemos interpretar e traduzir para lidar com o mundo é gigantesca. A medicina, da forma como a entendo, qual seja, centrada na relação entre o médico e o paciente, propõe um desafio interessante porquanto aproxima duas visões de mundo, às vezes muito diferentes. Ao médico, cabe ainda um outro desafio que é o de aplicar o conhecimento científico  – quase uma epistéme aristotélica – a uma prática fronética ou prudente, reconhecida desde sempre como técnica (techné), citando Aristóteles, o pai dessa zorra toda que, aliás, já tem alguns milênios.

O que tentarei demonstrar nesse pequeno espaço, seguindo os caminhos do autor abaixo [1], é que um pouquinho de preconceito é bom para o médico, tanto em sua tarefa de fundir sua visão de mundo àquela que o paciente vê, como quando lida com a massa enorme de conhecimento científico e tenta aplicá-la no ser que lhe pede socorro. Thomas Bayes (1701?-1761) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002), cada um a seu tempo e a seu modo, trataram desse preconceito filosófico. Um obscuro monge inglês pertencente a uma seita não-conformista (seja lá o que isso realmente queira dizer) e um alemão, brilhante aluno do sacana do Martin Heidegger, nascidos com 200 anos de intervalo, teorizaram sobre o valor do preconceito, ou pré-conceito, ou pré-juízo (como no inglês, prejudice) no ato de compreensão humana das coisas do mundo. Eu os chamo mestres do preconceito.

Bayes

Thomas Bayes (1701? – 1761)

A Estatística pode ser entendida como a ciência que se ocupa da quantificação da incerteza e, por essa razão, o cálculo probabilístico ocupa um papel central nela. Há duas formas básicas de se abordar a probabilidade de um evento ocorrer. Um, chamado objetivo, é testar a ocorrência do evento em um número muito grande de vezes, de modo a estabelecer a frequência do resultado que se quer estudar. É chamado de frequentista. O outro leva em consideração a probabilidade desse evento ocorrer antes que procedamos ao teste. Poderíamos até pegar os dados de um frequentista que trabalhou duro para obtê-los e ter acesso a essa distribuição antes de testar o evento. Chamamos isso de probabilidade a priori. De posse dessa probabilidade a priori, podemos modificar nossas expectativas ao avaliar, por exemplo, o risco de uma paciente com mamografia positiva ter, de fato, câncer de mama [2]. O interessante é que, quando essa distribuição não está disponível, podemos colocar nossas próprias expectativas na fórmula. Para a estatística bayesiana vale a opinião pessoal sobre o evento, vale a nossa propensão em acreditar na distribuição a priori, por isso, também é chamada de subjetiva. A nós, interessa a origem dos a prioris clínicos. Há evidências de que clínicos utilizamos a experiência prévia muito mais que dados estatísticos consistentes [3]. De qualquer forma, o teorema de Bayes permite que reajustemos o grau de crença em uma hipótese com base em novas informações. Ou em outras palavras, nossas preconcepções, sejam diagnósticas, prognósticas ou terapêuticas, devem ser reavaliadas a cada novo dado, cotejadas com novas evidências e, por fim, modificadas em novas possibilidades.

Gadamer

Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002)

Em 1960, Gadamer publica Verdade e Método, seu magnum opus, onde reforça a característica ontológica da compreensão humana, ou como ficou conhecida mundialmente, da hermenêutica filosófica. “Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey; mas tampouco é, como em Husserl, um ideal metodológico último da filosofia frente à ingenuidade do ir vivendo. É, ao contrário, a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo”- diz ele lá na página 347 [4] (itálicos originais). Gadamer demonstra que a interpretação e a compreensão são constitutivos do homem lançado ao mundo. Nessa demonstração, o pré-conceito tem um papel fundamental. Quando interpretamos um texto, realizamos, na linguagem de Gadamer, um projeto. Como nessa citação:

“é preciso (…) considerar que cada revisão do projeto inicial comporta a possibilidade de esboçar novo projeto de sentido; que projetos contrastantes podem se entrelaçar em uma elaboração que, no fim, leve à visão mais clara da unidade do significado; que a interpretação começa com pré-conceitos que são, pouco a pouco, substituídos por conceitos mais adequados. (…) Aqui, a única objetividade é a confirmação que uma pré-suposição pode receber através da elaboração. E o que distingue as pré-suposições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas se revelam insubsistentes? (…) Há, portanto, um sentido positivo em dizer que o intérprete não chega ao texto simplesmente permanecendo na moldura das pré-suposições já presentes nele, mas muito mais quando, em relação com o texto, põe à prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade, de tais pressuposições”. [5]

A aproximação inicial a um assunto provoca uma impressão que nos impele emitir juízos que definem padrões lógicos ou generalizações em nosso esforço eterno de tentar prever comportamentos, sequências ou comparar coisas novas com aquelas que já conhecemos. Essa primeira impressão não é a que fica. Ela deve ser continuamente corrigida à luz de novas informações. Os a prioris bayesianos e os projetos hermenêuticos estão muito mais próximos do que poderíamos jamais supor. Eles têm valor ontológico ou, em outras palavras, são criadores de conhecimento válido. Na medicina, essa proximidade sempre foi patente; só não tinha nome. Como diz Upshur “a dimensão hermenêutica da medicina desvia nossa atenção de discussões sobre dicotomias simplistas tais como se a medicina é uma arte ou uma ciência; ou se o conhecimento clínico é subjetivo”. A medicina é um humanismo. A doença tira o Homem de sua unidade habitual e abre caminho para visões não-totalizantes de seus padecimentos. O que é, então, o esforço clínico em compreender o Homem em suas profundidade espiritual e complexidade biológica? Nesse contexto, Arte e Ciência são interpretações, discursos possíveis sobre uma mesma coisa-em-si humana. Subjetivos? É óbvio que somos; dado que sempre tratamos de individuais subjeitos.

 

[1] Upshur, REG. Prior and Prejudice. Theoretical Medicine and Bioethics 20: 319–327, 1999.

[2] Pena, SD. Thomas Bayes “é o cara”. CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 228, pg 22-29 – Julho/2006 (ver o pdf)

[3] Gill CJ, Sabin L, Schmid CH. Why clinicians are natural bayesians. BMJ. 2005 May 7;330(7499):1080–3. DOI: 10.1136/bmj.330.7499.1080 (Open Access) – veja também as cartas, correções e comentários.

[4] Gadamer HG. Verdade e Método. II Parte, Volume I. Editora Vozes. Tradução Flávio Paulo Meurer.

[5] Reale & Antiseri. Hans-Georg Gadamer e a Teoria Hermenêutica. in História da Filosofia, pag 627-639.

PS. A conotação extremamente negativa que temos hoje do preconceito vem do Esclarecimento. Para o homem iluminista, cartesiano, um juízo acerca de alguma coisa deve ser tomado de forma isenta e desprovida de qualquer pré-concepção a respeito do assunto. Como uma tabula rasa, deveríamos absorver as evidências e chegar a conclusões óbvias, conclusões as quais qualquer pessoa racional chegaria ao analisar as mesmas provas. No Esclarecimento, o objetivo é o projeto cartesiano de obter um conhecimento metodologicamente seguro, limpo de interferências e inferências pessoais. Posteriormente, essa pre-concepção das coisas adquiriu um valor moral – como no pecado de “julgar um livro pela capa” -, até incorporar temas diversos como racismo, xenofobia, diversidade cultural, sexual e etc.

UTI. Uma boa referência às virtudes de Aristóteles, além claro, do “Ética a Nicômaco” é o livro de Enrico Berti “As Razões de Aristóteles“.

Vampiros e Bruxas

É possível distinguir, dentre muitos, dois arquétipos oriundos do medo humano de relacionar-se com outros seres humanos: um masculino e um feminino.

O arquétipo feminino é a bruxa ou feiticeira. Mulher de grande sabedoria e variadas formas, ora jovens e sedutoras, ora velhas e asquerosas, que ao induzir os homens ao erro e utilizando de múltiplos ardis, em geral, de forte apelo sexual, consegue o que deseja e, invariavelmente, leva suas vítimas à morte. A bruxa representa o medo masculino da sabedoria feminina. Uma mulher sábia era um ser bastante complicado de lidar se considerarmos o ambiente onde surgiram tais lendas, em geral, o período medieval. Subversiva frente ao poder fálico emanado pelos homens, portadora de outra visão da sociedade, a bruxa por não contar com a força física masculina, utiliza-se de um tipo diverso de poder, desconhecido dos homens e por essa razão, temido, dado que não se enfrenta com espadas (clássico símbolo fálico). Os homens que a elas resistem devem travar uma luta interna contra a concupiscência de seus sentimentos, pois é por meio dessa “fraqueza” que a bruxa se tornará forte e o vencerá. Nada mais proto-cristão. A perseguição e as fogueiras nas quais foram queimadas centenas de mulheres, entretanto, testemunham a forma como a ascese monástica – uma amputação traumática que transcendia a virilidade dado que mutilava também a capacidade de amar o sexo oposto – dizia, como a ascese monástica lidava com um poder que jamais conseguiria vencer.

O arquétipo correspondente para as mulheres não é o feiticeiro ou bruxo. Este, povoa o imaginário feminino no mesmo local onde as moças estão habituadas a duelar e, por isso, não provoca espasmos. Sem dúvida, quem ocupa esse lugar é o vampiro. Antiquíssima lenda de várias culturas, foi com Bram Stoker que ganhou corpo e fama. O livro de Stoker é de 1897, final da época vitoriana, período de rigidez de costumes e aparências, que apesar de tudo, falhou em coibir a libido humana, a feminina incluso. O vampiro assim, representaria o homem sedutor, quase irresistível, ao qual a mulher reluta em entregar-se, dada as seríssimas consequências de seus atos, mas que, ao mesmo tempo, proporciona-lhe um prazer sexual indescritível, um arrebatamento quente e úmido que a eleva acima das coisas mundanas a ponto de implorar pelo contato com o monstro. Da mesma forma, a vampira para os homens, ocupa o mesmo espaço que uma bela bruxa e não se constitui em nova ameaça (para quem já vive, no caso, naturalmente ameaçado).

Se concordamos até agora, poderemos também concordar que tentativas recentes de transformar vampiros, lobisomens e sacis-pererê em doenças, são cada vez mais frequentes. Assisti, sem deixar de sentir um pouco de pena do elenco, o filme Daybreakers (2009) cujo título no Brasil é o bizarro 2019 – O Ano da Extinção. (Vou mandar um spoiler agora, se você pretende assistir essa porcaria, não leia o parágrafo até o fim). No filme, uma epidemia de vampiros acomete a espécie humana e vai transformando todos. Consequência óbvia, conforme os humanos vão escasseando, os vampiros vão passando fome, de tal forma que um sujeito do mal (Sam Neill) inventa um banco de sangue gigantesco para extrair sangue humano sem que se transforme os coitados em vampiros acabando com os já “parcos recursos ainda existentes”. No final, descobre-se uma cura para a “doença” de ser vampiro e salva-se a humanidade.

O que quero chamar a atenção aqui é que os vampiros do filme não têm nada de sedutor. As mordidas são muito mais parecidas com “estupros mandibulares” que com sensuais mordiscadas no pescoço de virgens ofegantes. Sangue pra todo o lado, no melhor estilo trash. Não que eu quisesse manter a lenda dos vampiros exatamente a mesma, desde há dois séculos. Mas, quando tentamos transformar um mito em doença, na verdade o que estamos fazendo é racionalizá-lo. Algumas doenças desempenharam esse papel, estigmatizadas que foram, a ponto de incorporar temores primordiais. (Ver a Sífilis e, recentemente, a AIDS). Nada de novo aqui. A racionalização é um procedimento iluminista (século XVII). Tudo o que tememos, tendemos a racionalizar, seja por meio de procedimentos científicos, seja por meio de crenças religiosas (e nesse ponto está o mérito da igreja católica no período medieval já que o povo vivia morrendo de medo de tudo quanto era demônio, espírito, etc) e aqui o termo “racionalizar” ganha um significado mais amplo.

Contudo, racionalizar um mito não significa matá-lo. Significa jogá-lo para baixo do tapete e isso quer dizer que ele retornará transmudado em outra coisa, voltando a assombrar os incautos. Veja se essa não é uma história de vampiro real!

A persistência dos mitos é o principal obstáculo ao pensamento livre. Matar mitos é uma luta individual, solipsista até, que dura toda a vida consciente. Enfrentar quimeras, muitas das quais nem sabemos quem são: é esse o método que nos livra das garras, presas, quebrantos e feitiços dos vampiros e bruxas que somos e habitamos em nós.