O Nome do Doente. Poder e Identidade nas Práticas de Saúde no Brasil
Hoje, trazemos uma contribuição da professora Tatiana Piccardi da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com quem temos tido um contato enriquecedor e jubiloso. O texto parte da nomenclatura atribuída aos agentes das práticas de saúde – pacientes e seus familiares incluso -, pelas formas contemporâneas da gestão em saúde, para fazer uma crítica da ética dos discursos envolvidos nessas práticas, concluindo que as novas terminologias podem ser “sinais e sintomas” dessas mudanças. Já comentamos sobre o assunto há alguns anos. De minha parte, deixaria o questionamento sobre se tais novas terminologias não seriam – elas mesmas – os vetores de tais mudanças, dada a possibilidade da linguagem de construir e constituir tais realidades. Bem, deixo que o texto fale por si. E ele é eloquente.
Por Tatiana Piccardi
Quando os discursos institucionais trazem à cena os agentes do sistema de saúde e os categorizam em grupos (gestores, profissionais de saúde e pacientes/familiares), apagam o fato de que esses grupos não se alinham com exatidão e não podem ser sequenciados como grupos paralelos entre si. No caso dos gestores, sua menção os traz à cena como sujeitos alinhados a práticas políticas em saúde, práticas tais que, em tese, cabe a eles viabilizar em benefício do sistema. Trata-se, portanto, de sujeitos cuja subjetividade tende a ser apagada por força da atuação política. Sua fala é, assim, predominantemente institucional e se dá de cima para baixo.
Os profissionais de saúde, por serem os que interagem mais ou menos diretamente com os doentes e seus familiares, ocupam uma posição diferente nessa rede de relações. Ao mesmo tempo em que se alinham às prescrições de uma prática médica norteada por princípios objetivos e externos ao sujeito – inclusive políticos –, manifestam necessariamente sua subjetividade durante sua prática, sem o que não haveria a possibilidade mesma de interagir e se comunicar com seus pacientes e pessoas a eles relacionadas. Sua fala, portanto, oscila entre a fala institucional e a fala pessoal, ou seja, entre a fala prevista para o exercício da função e as falas espontâneas próprias das relações pessoais, em que as diferentes posições sociais dos sujeitos em questão não afetariam de modo predominante a interlocução.
O paciente e familiares, por sua vez, interagem com os médicos (e profissionais de saúde de modo geral) de forma predominantemente espontânea, o que significa dizer que sua prática, enquanto sujeitos enfermos que, em princípio, estão mais fragilizados e dependentes que seus interlocutores, ocorreria de modo a que a subjetividade fosse a tônica. Haveria por parte de tais sujeitos – antes de efetuar-se uma análise mais acurada – maior liberdade no falar e maior vazão dos sentimentos vários que permeiam esta prática interlocutiva.
Da perspectiva dos estudos da linguagem que se atêm ao estudo dos discursos produzidos nos diferentes campos da atuação humana, em especial os discursos ditos constituintes[1], o modo de articulação dos três grupos de agentes acima mencionados explica-se em função da força que os discursos político e científico exercem na esfera da saúde pública. Gestores e profissionais de saúde teriam sua prática fortemente determinada por tais discursos, que constroem uma certa identidade para tais sujeitos, que, por sua vez, a reforçam no sentido de marcar o pertencimento ao grupo. Ocorre que o paciente e seus familiares não estão alheios a essa determinação. Sua espontaneidade e subjetividade explicitada não os coloca fora das coerções. Seu comportamento, inclusive linguístico/comunicativo, dá-se por coerção dos mesmos discursos, como o reverso necessário à prática de poder instituída pelos discursos político e científico.
Na interlocução com o médico (destaco o médico porque é na relação com ele que as coerções discursivas aparecem mais evidenciadas), o doente ocupa a posição assimétrica de “paciente”, de quem se espera todo um modo de comportar-se e reagir, em geral caracterizado pela subordinação ao médico e a suas prescrições, e pela não contestação à prescrição, uma vez que se subentende que o saber do médico se sobressai e ocupa lugar epistemológico superior aos saberes do paciente. Na relação com o sistema de saúde, personificado em gestores em diferentes níveis, o paciente ocupa a posição assimétrica de “usuário”, de quem se espera igualmente todo um modo de comportar-se e reagir, que se caracterizaria pela subserviência, uma vez que o saber burocrático do sistema não pode ser contestado.
As intricadas relações de poder no sistema público de saúde, de que inevitavelmente se impregna o SUS, não são novidade no âmbito das discussões sobre linguagem, conhecimento e poder. Michel Foucault há muitos anos discutiu a questão em sua obra. Em Microfísica do poder (2004), há textos que tratam especificamente das relações de poder na medicina. Em O nascimento da clínica (2006), desenvolve de modo brilhante as condições históricas que determinaram a ruptura que houve entre a prática médica do século XVIII e a prática médica que se inicia no final do século XVIII e início do XIX (período no tempo considerado marco para o que se convencionou chamar de medicina moderna). Nesta obra, não se trata tanto, segundo o autor, de apontar as modificações havidas nos discursos médicos de um século a outro no que se refere à descrição das doenças e dos sintomas, ou mesmo de se avaliar as diferenças nas práticas médicas nos dois momentos, mas se trata, sim, de apontar as condições históricas que tornaram possível, de um século a outro, transformar de modo tão radical a relação médico e doente, a ponto de torná-lo secundário enquanto interlocutor, seja denominando-o “paciente”, seja denominando-o “usuário”.
Atualmente as condições históricas permitem rotular o doente de “cliente”, tendo-se em vista a crescente mercantilização da medicina na esfera privada. Ou ainda de “cidadão”, da perspectiva da gestão política que levanta a bandeira do direito à saúde. Permanece ainda assim assimetria. No primeiro caso porque, ao contrário do que ocorre em outras esferas do comércio, o “cliente” paga pelo que em geral não recebe; no segundo caso porque o “cidadão” não é respeitado como tal. De qualquer modo, a nomenclatura para referenciar o sujeito que procura atendimento médico no Brasil (paciente, doente, usuário, cliente, cidadão) é sempre problemática ideologicamente, sendo seu uso jamais neutro ou isento. O surgimento de novas terminologias é a contrapartida discursiva visível de profundas mudanças no modo como se relacionam os agentes do sistema de saúde.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6ª. ed., trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Forense, 2006.
________. Microfísica do poder. 19.ed., org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2004.
[1] Discursos constituintes são aqueles que, por sua tradição e força institucionalizante, são base para a produção de outros tantos discursos (os exemplos centrais são os discursos religioso, político e científico).
Foto do Street Anatomy.