O Tempo Siamês

http://olhardomiguel.files.wordpress.com/2009/09/tempo.jpgNunca tive anos tão curtos formados por dias tão longos…”
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O Tempo sempre me intrigou muito. Desde muito cedo tive a consciência de que o tempo poderia passar rápido ou devagar de acordo com o meu modo de estar no mundo. Infelizmente, eu não tinha controle sobre isso. Pelo menos me contentava em percebê-lo.

Os gregos tinham dois termos para designar o tempo: áeon e khronos (não confundir com Cronos, pai de Zeus, uma divindade primeva da mitologia grega). O primeiro significa “época da vida”, existência ou vida mesmo, destino. Se considerarmos a origem da palavra, ayu ou yu (de onde vem também iuvenis), podemos também atribuir a áeon o significado de vitalidade. De forma geral, segundo Ferrater Mora, áeon significa o tempo de duração de uma vida.

Khronos, por sua vez, significava “duração do tempo” e o tempo como um todo, como uma esteira infinita. Significa ainda em grego moderno, o ano. Então, em seus sentidos primários, áeon e khronos designam uma época ou parte do tempo e o tempo em geral, respectivamente. Por isso, palavras como “cronômetro” e “era”; “cronologia” e “jovem” significam o tempo sob diversos aspectos de acordo com as duas interpretações.

Para mim, entretanto, Khronos e Áeon são deuses que gostam de brincar conosco. São eles que permitem a percepção do tempo de forma diferente e por isso possibilitam a solução do paradoxo do início do post. Essa frase, que deve fazer sentido para muita gente, sintetiza os domínios de cada deus: os anos curtos “aeônicos” e os dias longos “khrônicos” confundem nossa consciência do tempo. Alguém poderia dizer, “por isso, os meses devem ter a duração normal e o tempo passa sem sobressaltos”. Sim, seria uma possibilidade dialética de solução. Mas não seria a mais bela.

A mais bela solução é que a frase do meu existencial amigo é um bisturi que separa os deuses siameses do tempo e me faz ver seus artifícios. Na minha cabeça mortal, minha dimensão do tempo é demasiado importante e me subjuga frequentemente. Me leva a crer que o tempo é meu senhor e me faz esquecer que tanto Khronos quanto Áeon são, na verdade, prisioneiros da eternidade do milésimo de segundo no qual se vive intensamente.

Consultei. Mora, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. 2001. pág 671-685.

O Ato Médico

O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º O exercício da medicina é regido pelas disposições desta Lei.
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades
humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua
capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção
à saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.”

Está havendo uma discussão, na minha opinião necessária, porém mal conduzida, sobre quais as responsabilidades do médico na sociedade brasileira. Tentarei, atendendo a pedidos, esclarecer meu ponto de vista sobre o assunto devagar, visto que o problema requer uma reflexão que o calor da discussão pode confundir. A discussão é sobre o que um médico pode ou não fazer, cujo projeto de lei, ora em trâmite no Congresso Nacional, se convencionou chamar de lei do “Ato Médico”.

Como está explícito nas primeiras linhas do projeto acima, sua pretensão é reger o exercício da medicina. O que tem sido alegado por muitas sociedades médicas, em especial a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), é que a profissão médica, apesar de muito antiga, foi a última a ter seu exercício regulamentado por lei. Esse fenômeno ocorreu também em outros países. Outras profissões da área da saúde, bem mais recentes, como nutricionistas e fisioterapeutas, tiveram sua regulamentação estabelecida há vários anos. Essa indefinição de papéis permitiu o aparecimento de uma zona cinzenta onde vários profissionais poderiam atuar sobre um mesmo problema, sobrepondo-se. Nutricionistas e nutrólogos, psiquiatras e psicólogos, fisiatras e fisioterapeutas, e mesmo enfermeiras e médicos, teriam de discutir o que pertence à esfera profissional de cada um de modo que também as responsabilidades ficassem claras. A tentativa de definir o papel do médico foi de encontro com o espaço ocupado por outras profissões e a chiadeira foi muito grande.

De um lado, os médicos que buscam definir legalmente sua área de atuação; de outro, os vários profissionais da área da saúde se sentiram invadidos e tolhidos profissionalmente, já que vinham exercendo seu papel com autonomia e excelência, mas que agora terão que, de certa forma, subordinar-se a um profissional médico. Achei o tom das declarações de ambos os lados inadequado. Posso criticar especificamente as declarações das sociedades médicas: o que deveria ser uma carta de compromissos está se tornando uma disputa por territórios.

Essa é uma daquelas leis que, no meu caso específico, não afetará em nada o meu trabalho. Se pensarmos bem, a questão específica é sobre responsabilidades. Responsabilidades geram consequências. O número de processos civis contra médicos cresce ano a ano. Eu já participei como perito e membro de comissões técnicas ou éticas de processos contra médicos. Em uma unidade de terapia intensiva de um hospital de grande porte nas quais internam-se políticos, intelectuais e celebridades em geral, nunca vi ninguém – médico ou não – clamando por ser responsável por algum procedimento ou conduta relacionado a um paciente complexo ou com uma família complexa (podemos definir isso depois). O que vejo é exatamente o contrário. Ninguém quer assumir responsabilidade alguma – repito, médico ou não. Grande parte dos profissionais da equipe multidisciplinar que atendem nas UTIs nas quais trabalho, são A FAVOR do tal Ato Médico! Eu particularmente, trabalho muito com fisioterapeutas. Nunca precisei prescrever alguma conduta. Sempre pude discutir abertamente com profissionais que, muitas vezes, eram bem mais experientes que eu. Fiz-lhes a seguinte pergunta: “No caso de um médico prescrever uma extubação (retirada da cânula orotraqueal que conecta o paciente a um ventilador mecânico) com a qual você não concordasse, qual seria sua conduta?” A grande maioria tentaria argumentar com o médico, no que muitos, dizem, teriam sucesso. “E caso o médico se mostrasse irredutível?” A esmagadora maioria realizaria o procedimento com a alegação de que “a responsabilidade final cabe ao médico!” Ela tem que caber a alguém, afinal.

Como médico, também tenho o mesmo problema com outros médicos. Sou plantonista de UTI e estou vendo um paciente complexo. Avalio, penso, pesquiso e tomo algumas condutas que julgo serem pertinentes. Chega o médico do paciente e toma condutas, digamos, totalmente díspares. O que fazer? É uma questão de responsabilidades. Posso tentar discutir, apresentar evidências de que aquilo não é o correto, mas a palavra final cabe a ele. E, agora chegamos ao ponto: se a conduta se mostrar equivocada, a responsabilidade (civil e até criminal) é dele, assim como as penas da lei! Qualquer discordância de minha parte tem que levar isso em consideração. O médicos intensivistas discutem muito (o que também acho que é uma discussão mal posta) sobre a questão das UTIs “abertas” e “fechadas”. É exatamente a mesma situação!

Há uma necessidade de regulamentação da profissão médica. Há uma necessidade premente de estabelecer o responsável técnico por procedimentos relacionados à saúde e sua manutenção. Suspeito que essa delimitação tenha como objetivo consequência um número maior de processos civis (que aumentam ano a ano). Se por um lado, acusações de arrogância e falta de bom senso por parte dos médicos são pertinentes (algumas situações já presenciadas por mim mesmo!), por outro, não há como negar uma certa hipocrisia por parte das sociedades não-médicas: a quem deverá ser imputado um eventual erro? Qual o grau de responsabilidade que se pode atribuir à cada procedimento específico? E quanto ao diagnóstico? São questões difíceis de responder sem ideologizar o debate que, para o meu gosto, já está ideologizado demais.

No dia em que uma lei substituir o entendimento e o relacionamento cordial entre profissionais de alto nível, sejam eles médicos de várias especialidades ou uma equipe multiprofissional da qual faz parte um médico, eu espero estar aposentado. Não delegarei jamais meu relacionamento com qualquer profissional da saúde, seja médico de outra especialidade, seja não-médico, a um conjunto de regras e definições. Prefiro uma fórmula mais buberiana: “Eu” reconheço “tu” como o “outro” ao meu lado e em “tu” vejo o profissional que sou e também o que queria ser: sob TODOS os aspectos, cuidar de pessoas, para mim, é um encontro.

Ecce Medicus – 2 anos

O Ecce Medicus faz 2 anos. Considerando que são criados aproximadamente 175.000 blogs por dia e que a grande maioria dos blogs têm uma vida média de 3 meses, o Ecce Medicus é um sobrevivente. Isso só foi possível graças aos leitores que constroem o blog comigo. Muitas pessoas já me disseram que os comentários aqui são tão interessantes, ou mais, que os posts. Isso me deixa feliz. Feliz por ter proporcionado um fórum para discussão da medicina e de como ela deve ser pensada. Fosse só isso e eu já teria dado como pronto esse projeto que iniciou-se 2 anos atrás. Mas, há outros planos…

Segue uma antologia dos 10 posts mais visitados no último ano, já no Scienceblogs Brasil, e dos últimos 10 posts preferidos meus. Podem dar palpite. O Ecce Medicus é uma “casa de tolerância” nesse sentido. Obrigado.

Os Dez Posts Mais Visitados – em ordem de popularidade (fonte Google Analytics – valeu Paulinha!)

1. O Bumbum de Gisele
2. Gripe Suína
3. Sobre a Letalidade da Gripe Suína
4. Mortes por Gripe Suína
5. Resistência Bacteriana
6. Cisto Sinovial
7. Mais Sobre o Rubor Facial
8. Cientista Documenta Relação Sexual dentro de Ressonância Magnética
9. A Teoria da Vitamina D e a Despigmentação da Pele Humana
10. Design Pulmonar – Projeto Tabajara?

Meus Dez Posts Preferidos – sem ordem de preferência (fonte Sistema Límbico do Karl)

1. Deus, Um Desejo
2. Pára-quedas, a Ciência e Eu
3. Romances e Pacientes
4. O Caramujo e a Estrela
5. Acromegalia II
6. Sobre Elefantes, Cegos, Paralelas e Pacientes
7. Diagnóstico e Intuição
8. O Desdiagnóstico
9. Seria a Informação Científica uma Commodity?
10. El Inglés, Idioma Internacional de la Medicina