Um Bisturi de Argônio – Carta ao Professor de Clínica Médica
O saber não é para compreender. O saber é para cortar.
Michel Foucault
Professor,
Não sem muita hesitação resolvi sentar à frente desta tela e datilografar (sim, tenho diploma de datilografia, o que dá uma ideia da minha geração) estas reflexivas linhas. A idade e uma distância mantida cuidadosamente estável para que não se perca de vista os ares e paisagens acadêmicos, me fizeram crítico e, porque não dizer, algo ranzinza das coisas da medicina. A distância, na verdade, se articula com o tempo que a idade fez passar, e dota meu olhar com um bisturi de argônio existencial: ao mesmo tempo que espicaça fatos, coagula emoções. Sendo assim, espero que me perdoe alguma indelicadeza e/ou imprecisão no que segue. Mas é que eu tinha que falar…
Outro dia, um professor de cirurgia da faculdade me perguntou incisivamente: “Quem é o CLÍNICO deste hospital? Quem é o CLÍNICO desta cidade?” Fiquei pensando na resposta e, como sói acontecer com as perguntas em que não encontramos a anestesia de uma certeza, estou nela pensando inda agora. E dói esse pensamento. Lembremos da nobre origem da clínica médica no século XIX, na França, mais especificamente, em Paris, tendo como exemplo uma nova forma de atuar de alguns médicos do Allgemeine Krankenhaus em Viena (figura), da Escola de Medicina de Edimburgo entre outras, que, somada à mudanças epistemológicas na ciência médica, com a recém-constituída Anatomia Patológica incluída no raciocínio clínico, “colou” o nome à coisa e abriu caminho para uma medicina positiva.
À partir daí, os clínicos gerais ganharam prestígio como médicos, e calaram Moliére. Sua atividade, dividida entre o hospital e o consultório, permitia que acompanhassem uma variedade muito grande de pacientes com doenças em suas múltiplas manifestações e diversos graus de gravidade, fazendo com que ganhassem grande erudição médica dentro, obviamente, da ciência possível em cada época. O clínico geral era um sábio.
Eis que se muda novamente a episteme, como diria Foucault. Mudam os “códigos fundamentais de uma cultura” e a ordem do discurso, por conseguinte. O clínico geral – e os especialistas da Clínica Médica – passa então, cada vez mais, a ser um tipo de porta-voz de uma ciência avassaladora na qual a “medicina baseada em evidências“, para além de ferramenta cotidiana, transforma-se em imperativo ético, em um subproduto ideológico. Os cirurgiões não sofreram na carne o golpe com a mesma intensidade. Para eles há ainda o ato cirúrgico que depende de uma habilidade, uma arte, um dom e que, de uma certa forma, os blinda da “invasão de privacidade” – na relação entre ele e seu paciente e que funda a medicina -, da ciência enxerida e abelhuda, vista como um fim e não como meio de praticar medicina. A Clínica Médica sofreu ainda um outro golpe. A especialização crescente que o conhecimento técnico exige não nos dá muitas opções: doenças sistêmicas? doenças comuns? diagnósticos difíceis? O que é e em qual área da medicina atua um clínico geral moderno? Responder que nossa especialidade é o “doente” e não as doenças, não parece ser suficiente. Os hospitais mudaram. Ninguém quer ficar internado muito tempo e as fontes pagadoras pressionam para manter os pacientes fora dos hospitais. Alguns buscaram aprender algum “procedimento”. As especialidades médicas que assim o permitiam ganharam novo fôlego. Cardiologistas passaram a dominar técnicas percutâneas de diagnóstico e tratamento, ecocardiografia e outras atividades mediadas por máquinas. Gastroenterologistas e pneumologistas, aprenderam a endoscopar e biopsiar. Reumatologistas, hematologistas e oncologistas começaram a prescrever “drogas perigosas” que somente eles podem prescrever. E assim, toda a Clínica Médica foi se “ajeitando” dentro da nova episteme; se recriando à luz das necessidades; adquirindo novas habilidades e novos discursos. Ao buscar uma arte, uma habilidade, um procedimento, ao mesmo tempo em que se defendem de intrusões indesejadas e resguardam sua aura de técnico à moda dos cirurgiões, também procuram obedecer a lógica de mercado e
atender às solicitações da sociedade em busca da inovação e das novas tecnologias. Talvez o protótipo do clínico geral moderno, que vê o paciente como um todo, tendo como pano de fundo uma Matrix de dados virtuais e ainda realizando procedimentos característicos da especialidade, seja o médico que trabalha em unidades de terapia intensiva: o intensivista. Hoje, parece que o intensivista permanece ainda com algum resquício da fleuma do clínico geral de outrora. Mas, também ele, passa o plantão.
Foi assim então, que o clínico, perdeu sua Palavra. E as alunos começaram a perguntar: “que adianta ser um médico mudo?”
Alguém poderia pensar entretanto, que o clínico não é necessário. Que sua sabedoria totalizante não teria lugar no mundo da velocidade, do procedimento, da hiperespecialização, da virtualização dos corpos. Que ele logo ficaria desatualizado, ultrapassado pelo vagalhão feroz de ciência médica produzido diariamente por milhares de jornais científicos ao redor do mundo. “Não dá” – dizem os próprios médicos a si e aos colegas. Mas, para estupefação testemunhada diariamente de alguns, os próprios pacientes, entre eles alguns médicos que, pasme, também ficam doentes, requisitam os serviços do clínico. Por quê?
Eu tive bastante contato com um professor de patologia cuja vida foi dedicada a estudar o fígado e o pâncreas. Ironia do destino, teve o diagnóstico de câncer de pâncreas agressivo. Já bem magro e cansado de terapias de pouco efeito, embora pleno de seu raciocínio claro e agudo, me confessou que os médicos ficavam um pouco intimidados por ele ser uma autoridade mundial na doença que o consumia. A gota d’água foi o fato dele mesmo ter que comunicar à família (esposa e filhos) seu diagnóstico, além de discutir o prognóstico. “Nunca”- me disse, sem carregar nas emoções – “me faltaram bons médicos. Sempre me trataram com muito carinho e respeito onde quer que eu fosse. Mas me faltou UM médico.”
Foi imerso nas profundezas dessas memórias – e é incrível como com o chegar da idade, as memórias formam cada vez mais nossos pensamentos – que li que um professor de Clínica Médica ministrava um curso sobre os Fundamentos da Homeopatia.
“Homeopatizar” a Clínica Geral me parece um caminho que, se por um lado, valoriza a avaliação do ser humano como um todo (não usarei “abordagem holística” aqui dada a contaminação desta expressão com outros tipos de charlatanismo) que é o que fazemos, por outro, fere a própria origem da clínica, calcada profundamente em conhecimentos científicos válidos. Se essa abordagem – a científica – nos trouxe para o imperialismo cientificista da prática médica contemporânea, outras formas de “ver” o paciente devem ser procuradas. Não somos cientistas e não somos curandeiros. Somos médicos e isso já é ser duplo, tal como os “humanos” de Aristófanes no Banquete. Mutilados que fomos, nossa metade científica nos transforma em autômatos repetidores de “evidências”. O vazio existencial que fica nos impele a procurar a metade oposta – humana – e ela NÃO está nas alternativas à medicina! Pelo contrário, está nela própria, professor. E para encontrá-la talvez seja necessário reduzir fenomenologicamente a medicina ao seu núcleo duro, dissecá-la até que surja o encontro que a define: a relação médico-paciente. E “histologicamente” do que é tal relação constituída? Alguma pista? Sim. Ela é feita de linguagem! Nada mais humano e a um só tempo, científico. Para chegar a isso, talvez seja mesmo necessário um metafísico bisturi de argônio. Posso emprestar o meu, existencial, que consegui na distância e no tempo. Porque, creia, o senhor vai precisar.
Solo Epistemológico
Muito vem se discutindo nos EUA sobre o armazenamento eletrônico de informações médicas. Grandes empresas do setor tecnológico, como Google e Microsoft estudam oferecer o serviço. Os gigantes empregadores americanos, como AT&T, Intel, Wal-Mart entre outras, fundaram uma holding, a Dossia, com objetivo de armazenar dados médicos de seus trabalhadores com óbvios interesses previdenciários.
No último número da New England, um artigo sobre o assunto é seguido por um outro comentando as desventuras do armazenamento no meio eletrônico. A velha discussão do “standard” rather than “customized” care. Nas palavras dos autores:
“Perhaps most important, we should be cautious in using templates that constrain creative clinical thinking and promote automaticity. We must be attentive to the shift in focus demanded by electronic medical records, which can lead clinicians to suspend thinking, blindly accept diagnoses, and fail to talk to patients in a way that allows deep, independent probing. The computer should not become a barrier between physician and patient; as medicine incorporates new technology, its focus should remain on interaction between the sick and the healer.”
O armazenamento eletrônico de informações médicas é uma realidade. Mais cedo ou mais tarde, até pela falta de espaço, isso iria ocorrer. O grande passo foi dado com a digitalização das imagens e a abolição do filme radiológico que muitos hospitais já vêm utilizando no Brasil.
Tenho dúvidas sobre se isso aumentaria a restrição ao creative clinical thinking a que se referem os autores. Para mim, essa restrição já existe, com ou sem o meio eletrônico e é um interesse de seguradoras, de hospitais, de quem faz política de saúde só pensando em custos e até, diria, de médicos tecnocratas. Concordo que será muito mais fácil com essa ferramenta arrancar o privado da relação médico-paciente, tornando-o público e submetendo-o, assim, aos automatismos de administradores, influências da mídia; o que só faz aumentar o medo por processos, as inseguranças profissionais, insatisfações pessoais, gerados pela tensão já aqui descrita.
Solo Epistemológico
A Reforma Neoliberal da Saúde no Chile vem sendo elogiada, em especial, pelo Banco Mundial, que se refere a ela como exemplo para outros países. Entretanto, há uma série de críticas quanto a forma como ela vem sendo realizada desde seu início, no governo Pinochet (1973–1989).
Este artigo da PlosMedicine analisa as mudanças realizadas e chama atenção para o aumento dos gastos e o financiamento público do sistema privado:
“The Chilean health system has been studied extensively [1]. Its current form is the result of a major reform undertaken by the Pinochet government following the coup d’état in 1973. Pinochet’s reform established competition between public and private health insurers and promoted private health services, following neoliberal principles. Neoliberalism is an economic and political movement that gained consensus in the 1980s among international organisations like the International Monetary Fund and the World Bank. This movement demands reforms such as free trade, privatisation of previously public-owned enterprises, goods, and services, undistorted market prices, and limited government intervention. After the publication of the World Bank’s 1993 report, “Investing in Health” [2], Chile became a model for neoliberal reforms to health services.
In this Policy Forum, we assess the effects of the Chilean reform from Pinochet until 2005, and including the transition to democracy in 1990. We suggest that the use of Chile as a model for other countries of the health benefits of neoliberalism is seriously misguided. We stress the dominant role of the public health system in Chile, while most other studies have assessed the introduction of a private insurance sector as part of the neoliberal reform. Revisiting the Chilean health reform after 25 years, we come to new conclusions that could be important for countries such as Ecuador and Bolivia, which are preparing health reforms, and even for the United States, with its current debate on universal health insurance.”
E conclui:
- The Chilean health system underwent a drastic neoliberal reform in the 1980s, with the creation of a dual system: public and private health insurance and public and private provision of health services.
- This reform served as a model for later World Bank–inspired reforms in countries like Colombia.
- The private part of the Chilean health system, including private insurers and private providers, is highly inefficient and has decreased solidarity between rich and poor, sick and healthy, and young and old.
- In spite of serious underfinancing during the Pinochet years, the public health component remains the backbone of the system and is responsible for the good health status of the Chilean population.
- The Chilean health reform has lessons for other countries in Latin America and elsewhere: privatisation of health insurance services may not have the expected results according to neoliberal doctrine. On the contrary, it may increase unfairness in financing and inequitable access to quality care.
Solo Epistemológico
Esse artigo saiu no último número do JAMA (é free!). Tem como novidade a forma como foram apresentadas suas conclusões. O objetivo era mostrar se uma droga (gemcitabina) aumentaria a sobrevida de pacientes com câncer de pâncreas operado.
Apesar do resultado negativo – o que não se constitui no problema em si – a conclusão do artigo foi a seguinte:
“The addition of gemcitabine to adjuvant fluorouracil-based chemoradiation was associated with a survival benefit for patients with resected pancreatic cancer, although this improvement was not statistically significant.”
Há todo um racional baseado em outro estudo na discussão, entretanto eu, sinceramente, ainda não tinha visto um resultado ser reportado desta maneira. Normalmente, conclusões como esta são reportadas ao contrário, por exemplo: “Não houve diferença estatística entre os dois grupos, apesar de tendência favorável ao grupo do tratamento”.(Se algum prezado leitor tiver mais exemplos desse fenômeno, por favor, permita-me saber também!)
Solo Epistemológico
Texto de Michael Berger de 2002. Arranha algumas idéias deste blog, cita bons exemplos, percebe uma faceta da crise, porém não se dá conta da doença maior… Nem a racionalidade clássica, nem o esclarecimento, muito, muito menos a medicina baseada-em-evidências, são os tratamentos para o misticismo, idolatria e irracionalidade que teimam em aumentar, como bem nota o autor.
A Medicina e o Bezerro de Ouro
créditos ao Blog do Paulo Lotufo
Solo Epistemológico
Será objetivo deste blog sublinhar artigos, peças publicitárias, textos ou fotos, seja da mídia leiga ou de revistas especializadas, que demonstrem mudanças paradigmáticas no comportamento médico contemporâneo.
Iniciaremos com o artigo do New England Journal Medicine de 28/02/08 sobre a diminuição no número de autópsias com objetivo de evidenciar a causa mortis. Em contrapartida, as autópsias medico-legais vêm aumentando…
Defende-se que tal fenômeno seja decorrente de uma mudança no conceito contemporâneo de doença, mas não no conceito de crime, assunto que abordaremos novamente com mais detalhe.
Obs. Os termos autópsia e necrópsia têm sido usados indistintamente. Entretanto, têm significações diferentes. A saber, autópsia é literalmente ver com os próprios olhos e necrópsia, ver a morte. Por representar mais corretamente o ato médico de se procurar a causa mortis numa preparação cadavérica, autópsia é o termo que utilizaremos. Ver também.