Ecce Medicus – 1 ano

Quando comecei a escrever este blog, não sabia exatamente onde ia chegar. Eu queria simplesmente organizar uma porção de idéias que povoavam minha cabeça e, quem sabe, um dia colocá-las em um livro. Pela sua própria forma de ser, um weblog permite que você se cite e isso acaba por construir uma matriz de conceitos que, assim postos, são mais fáceis de visualizar e entender. Além disso, e talvez mais importante, um weblog permite que você coloque suas idéias à prova. Os comentários são úteis não para testar a popularidade mas, para saber se o que estamos pensando não contém erros lógicos, preconceitos, inconsistências ou incoerências. Por isso, não me canso de agradecer a cada comentário. Cada pessoa que perde seu tempo comigo manifestando uma opinião sobre algo que escrevi merece no mínimo, um obrigado.

Muitas pessoas que me conhecem perguntam porque ainda uso um pseudônimo. Resolvi responder essa questão somente após um ano de blog. Tenho visto muitos blogs pessoais de médicos e sobre medicina em geral. A enorme maioria é para promover clínicas e consultórios particulares. Sei que muitas idéias presentes aqui vão de encontro ao que pacientes desesperados em sua dor e sofrimento gostariam de ouvir de seus médicos particulares. Nunca neguei que muitas delas aqui expostas são derivadas de minha atividade privada. Na minha maneira de ver, esse contato é onde realmente a relação médico-paciente se dá de forma mais intensa e onde os conceitos provenientes da dúbia (ciência e arte) atividade médica são realmente postos à prova. Por isso, para permanecer público, devo continuar incógnito.

Gostaria, por fim, de agradecer a pessoas/blogs que me ajudaram no início e incentivaram a criação e manutenção do Ecce Medicus. O Amigo de Montaigne de quem recebi incentivo e instruções iniciais sobre a blogosfera; Ciência e Idéias, 100nexos,  o Rainha Vermelha e o Brontossauros em Meu Jardim e a todo o pessoal do Lablogatorios, pelos convites e projetos nos quais o Ecce Medicus se envolveu, pela mão nos widgets e pela qualidade das discussões. Esperava escrever esse post no Scienceblogs o que não foi possível (mas por motivos bons!), mas estaremos lá em breve. Aos blogs amigos, novos e antigos, sempre benvindos. E principalmente, a todos os leitores que comentaram posts, discutiram idéias e me fizeram ver todas as perspectivas de cada detalhe desta maravilhosa forma de conhecer a humanidade e os humanos que é a medicina: Muito Obrigado!

Artigo vs Artigo (ou Sobre a Metafísica da MBE)

Metrô de SP by Fabio Ornellas at Flickr

Contra um artigo, somente outro artigo!

Toda análise ou artigo que se preze atualmente vem com um final mais ou menos assim: ainda não existem estudos suficientes para justificar determinada conduta; ou estudos específicos são necessários para responder essa questão, etc…

Um vício induzido pela MBE é o de que não há artigo perfeito. Por isso, devemos criticá-los e criticá-los até descobrir todos os seus defeitos e saber, só então, se suas conclusões são aplicáveis na prática ou não. Ou ao menos, aplicá-las com mais parcimônia. Na verdade, comparamos o artigo com um modelo idealizado de estudo que foi ficando, através dos anos, cada vez mais rigoroso e, porque não dizer, divino, posto que não é, de fato, deste mundo. É sintomático analisarmos “evidências” antigas e torcermos o nariz com estudos mal-desenhados, confusos e “fracos”. Nada mais metafísico!

Se tomarmos o exemplo da crítica literária na qual não existe a figura da verdade, resta aos críticos apenas comparar um livro contra o outro. Contextualizar e intertextualizar um romance é a melhor forma de compará-lo a outras obras e mostrar no que ele é diferente. Ver no que um cientista se inspira nos outros artigos e porque os autores resolveram aplicar tantos recursos e tanto tempo na abordagem de uma pergunta, denota o que Harold Bloom – um crítico literário – chamou de “angústia da influência“, presente na poesia e que, temo, esteja presente também na ciência.

Metanálises procuram responder perguntas, como se as perguntas tivessem uma única resposta. A conclusão é inevitável: é impossível responder a essa questão com as evidências que temos hoje! Muito melhor seria a comparação de vários pontos de vista de modo que o leitor pudesse ter sua própria perspectiva do problema. Mas isso ia causar muito mais insegurança do que temos hoje. Por que ia fazer da prática um ato pensante e desconfortável. Sabedoria prática não depende de erudição teórica, depende de julgamento. Como o ato moral.

Ah! – dizem meus amigos – mas isso já não é mais medicina, isso é filosofia! Ninguém trata pacientes com filosofia. E o ciclo se fecha. A medicina não se pensa. E eu concordo que tratar pacientes com filosofia não é mesmo possível. Mas cuidar deles é sim.

Dupas e o Pós-Humano

Gilberto Dupas em 2008 (Foto: Paulo Giandalia/AE)

Gilberto Dupas foi muitas coisas. Entrei em contato com suas idéias através do livro “O Mito do Progresso” (ver excelente texto-resumo na Novos Estudos de Março de 2007). Me interessei pelo seu trabalho por sua crítica à medicina. Ela se insere num contexto de crítica ao próprio capitalismo tardio em sua vertente chamada biocapitalismo. O texto que reproduzo abaixo, publicado n’ O Estado de hoje, está dentro dessa linha de raciocínio.
Quase que numa redução fenomenológica (aprendi isso com um amigo), Dupas vai despindo o ser humano dos atributos de sua humanidade até chegar ao que chama de ciborgue e de pós-humano. Por mais que esse exercício seja perigoso e tenha seus efeitos colaterais, ele é necessário. Como ele mesmo diz “do transplante de órgãos às terapias genéticas, passando pela fabricação de tecidos de substituição, a indústria biofarmacêutica e a medicina regenerativa assumem o biocontrole de uma sociedade que se quer pós-mortal”. Não queremos a morte. Não queremos a velhice.
O sonho da imortalidade inclui “modificar geneticamente o corpo humano a fim de parar seu crescimento biológico antes do período da puberdade. (…) Tornados estéreis pelo bloqueio artificial de seu desenvolvimento, eles não seriam nem homens nem mulheres, mas seres assexuados e fisicamente imaturos, ainda que intelectualmente adultos.”  Não queremos sexo primitivo com fins reprodutivos. Ele pressupõe a maturidade do corpo e todos os efeitos deletérios que dela decorrem, da osteoporose aos pelos que teimam em crescer, das rugas às doenças cardiovasculares, do Alzheimer e o esquecimento de si ao espasmo da morte.
Por fim, termina dizendo que: “Enquanto (o biocapital) anuncia o alongamento sem fim da expectativa de vida das gerações mais velhas a custos exorbitantes, cerceando o espaço essencial da alternância de gerações, reduz a saúde dos jovens estimulando o consumismo que provoca obesidade, diabetes, cânceres e outras doenças sistêmicas geradas pelas contaminações e pela inatividade física.”
 Precocemente, aos 66 anos, de câncer de pâncreas, faleceu na madrugada de 17/02/2009, o economista,  professor e, humanista, Gilberto Dupas.

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O Ecce Medicus com as Malas Prontas

O Ecce Medicus estará de mudança para uma das maiores redes de blogs sobre ciência no mundo: o Lablogatórios deve se transformar no ScienceBlogs.com.br!
Esperamos que nos próximos dias, possamos estar funcionando regularmente. Por enquanto, ainda não está online, e novos posts e comentários aqui no Lablog estarão bloqueados até o lançamento do Sb.com.br no próximo dia 17, terça-feira. Não deixem de ler o post do Rainha explicando tudo.
Não esqueçam! http://scienceblogs.com.br/

Até  lá!

The Independent Physician

O New England Journal Medicine publica hoje um artigo sobre a independência do médico. Chama-se médico independente aquele que, além de prover cuidados a pacientes segurados e não-segurados, o faz ou de forma independente, que aqui chamaria-se autônoma, ou em pequenos grupos ou clínicas. Os dados são preocupantes. O número de médicos que migra desse tipo de prática isolada ou de pequenas associações para juntar-se a grupos maiores ou corporações onde frequentemente são empregados, é crescente como mostra a tabela abaixo.

O médico, juntamente com o contador e o advogado, entre outros, é um exemplo de profissional autônomo. Muito mais que uma relação trabalhista, aqui ‘autônomo’ também se opõe a heterônomo. Se nomos for traduzido como norma, regra, autônomo é o que faz as suas próprias. Heterônomo é o que obedece as regras feitas por outros. Não é difícil imaginar as repercussões à prática médica desse fato.

Quando levantei a questão do público e do privado na medicina baseada em evidências era exatamente sobre isso que gostaria de escrever. Quais implicações teríamos se esse médico trabalhasse para o Estado, para si mesmo ou para uma empresa com ações na bolsa de valores que tem como objetivo primordial remunerar acionistas?

Delirium e Afeto

73578533.jpgPhoto by Ian Waldie/Getty Images

Ela tinha para lá de oitenta. Estava restrita ao leito por contenções nos punhos e tornozelos. Esforçava-se para soltá-las, em vão. O escuro do quarto transformava o monitor com suas luzes coloridas, números e ondas balançantes em um abajur tristonho que iluminava de soslaio a face e os cabelos brancos desgrenhados. Entrei devagar e a chamei pelo nome que estava escrito na parede. Desorientada no tempo e no espaço, não entendia porque estava restrita, tendo beliscado enfermeiras, além de retirar cateteres e a própria monitorização, colocando sua vida em risco.

Ela não conversou comigo. Tomei sua mão como forma de interromper suas tentativas de retirar as faixas e ralhei com ela sobre suas “travessuras”. Surpreendentemente, ela começou a acariciar minha mão como se fosse a de um bebê. Com cuidado, solicitei à enfermeira que soltasse a outra mão e ela passou a fazer aquele tipo de carinho que se faz nos gatos. Olhei perplexo para a enfermeira. Não sabia o que fazer. Troquei de posição com a enfermeira e ela continuou a fazer carinhos. Pareciam movimentos automáticos das mãos em busca de um contato. Quando a deixamos sem nossas mãos, imediatamente ela começou a tirar os cabos dos eletrodos e o cateter nasal. Não tinha jeito. Prescrevi um comprimido de um neuroléptico e fui ver outro paciente.

Aquilo, entretanto, me deixou bastante perturbado. Uma paciente idosa, com quadro demencial grave contrai uma infecção que a deixa num estado de delirium. O delirium (escrito assim mesmo em latim para não confundir com delírio – desvio mórbido da razão) é um estado confusional acentuado, geralmente causado por uma doença clínica (infecção, distúrbios metabólicos, medicamentos, etc), onde o paciente apresenta enormes dificuldades com o pensamento coerente, além de uma diminuição do sensório. Muitas vezes, os pacientes ficam agressivos e recusam-se a receber cuidados. Sobra, em geral, muito pouco do humano neles. Lampejos; por vezes, um brilho de consciência no olhar; um nome a que chamam insistentemente. E só. Nada mais para fazer lembrar o que foram essas pessoas. Essa paciente entretanto, tinha deixado sobrar ‘afeto’.

Uma paciente que não sabe onde está, quem é, nem qual propósito de
estar ali; que não pode cuidar de si, nem alimentar-se sem auxílio; que
não formula nem profere uma frase sequer com sujeito, verbo e
predicado, poderia tecnicamente demonstrar afeto por outro ser humano?
Teria o afeto adentrado as camadas mais instintivas de seu intelecto?
Aqueles segmentos mais antigos do sistema nervoso dos mamíferos
responsáveis pelo que podemos chamar comportamentos automáticos como
esvaziar a bexiga ou procurar reproduzir-se, por exemplo? Nesse
momento, deixei-me levar por um delírio (para ficar bem clara a
diferença..)

Teria a paciente passado toda sua existência cuidando dos filhos e depois, dos netos, dedicado talvez, uma vida toda ao afeto de grandes e pequenos, de tal forma que esse comportamento tivesse sido incorporado aos seus instintos básicos de vida? Não, deve mesmo haver uma explicação bem mais neurofisiológica que dê conta desse fenômeno. Alguma área desreprimida, responsável por conexões neuronais que possam agir através de receptores do tato, em arcos-reflexo, movimentando músculos, de forma que movimentos automáticos possam de fato ser produzidos, sem que isso na verdade, signifique realmente um afeto. Sim, eu sei.

Deve mesmo haver. Mas minha explicação é muito mais poesia…

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A Origem da Pressão Arterial III

Chegamos ao final desse exercício evolucionário que fiz quando era R3. Fiquei impressionado com esse tipo de raciocínio e procurei repeti-lo sempre que me defrontei com problemas complicados na Medicina – não, isso não vale para doenças raras e esquisitas. É muito mais produtivo – no sentido de propiciar insights e apontar caminhos para pesquisa -, aplicá-lo a doenças altamente prevalentes que envolvam dificuldades de tratamento.

O aumento da pressão arterial de aves e mamíferos se faz através de um impressionante aumento da resistência circulatória dos animais de sangue quente. Esse aumento da resistência periférica é a alternativa mais “econômica” encontrada pela natureza para propiciar a redistribuição do fluxo de sangue. A tabela abaixo mostra a variação de fluxo sanguíneo regional no repouso e no exercício. O aumento do fluxo pode chegar a 20 vezes o valor de repouso. Como conseguir um aumento tão grande de fluxo economizando o máximo de energia? O aumento simples do débito cardíaco não seria a saída mais econômica por duas razões: a primeira é que várias regiões seriam perfundidas sem necessidade – apenas os grupamentos musculares envolvidos necessitam de maior suprimento. A segunda é que uma bomba capaz de aumentos abruptos de fluxo dessa monta teria que ter uma estrutura muscular muito maior que o coração dos mamíferos  e aves atuais. Provavelmente, essa alternativa terminou num beco sem saída e nosso coração foi poupado de mais essa carga, mesmo assim, ainda nos causa muitos problemas!

Data on flow from Wade 0 L, Bishop J M. Cardiac output and regional blood flow. Oxford: Blackwell, 1962. It has been assumed that the arterial pressure rises from 100 to 130 mmHg (13.3 to 17.3 kPa) in exercise while the venous pressure remains approximately constant. Pressure = kPa; Flow = litres.min-1;Resistance = kPamin.litres-1

Com esse conceitos, entendemos perfeitamente o que é um choque circulatório; conceito que médicos de unidades de terapia intensiva explicam a familiares de pacientes com certa dificuldade. Não é para menos! Choque circulatório é quando essa capacidade de dirigir o fluxo de sangue para os mais variados orgãos, em especial, os músculos que são, em kilos, os maiores do organismo, é perdida. Isso gera muita fraqueza, hipotensão postural (queda da pressão na posição em pé), diminuição da diurese, entre outras alterações. A pressão costuma estar baixa, mas nem sempre. Claro, é uma questão de conteúdo e continente; quando a resistência circulatória cai, o continente aumenta para o mesmo conteúdo.

Referência: Harris, P. Evolution and the cardiac patient. Cardiovascular Research, 1983, 17, 373-378.

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A Origem da Pressão Arterial II

http://e-heart.org/Photos/03_Cardiomyopathy_Photos/%C2%A9CardiomyopathyCartoons%202.jpg

Tipos de cardiomiopatia. A hipertensão crônica pode causar a hipertrófica (HCM). O coração fica “musculoso” para vencer a alta pressão sistêmica.
O problema é que os vasos que o nutrem, não “crescem” na mesma proporção. Tirado do e-heart.

Voltando ao nosso exercício evolucionário.

Quem respondeu metabolismo e homeotermia acertou parcialmente. Homeotermos gastam mais. Se o consumo de oxigênio de um peixe gira em torno de 1 mL/kg/min, um mamífero consome 4 a 8 mL/kg/min – 4 a 8 vezes mais. Um homem adulto em repouso consome 250 mL de O2/min, o que dá uns 3-4 mL/kg/min se tiver 70 kg. Morcegos 30 mL/kg/min, aves mais ou menos 10 mL/kg/min. Uma das alternativas evolucionárias para manter esse alto consumo foi o aumento do débito cardíaco, quantidade de sangue bombeada pelo coração em 1 minuto. Podemos dizer sem medo de cometer um erro grosseiro que o débito cardíaco de aves e mamíferos é aproximadamente 4 a 8 vezes maior que o de peixes, anfíbios e répteis. Com isso, ele dá conta do aumento do consumo, mas não explica o porquê das altas pressões. Qual seria a necessidade de trabalharmos com pressões sistêmicas tão estranhamente elevadas? Andamos em círculos!

Insisto na relevância disso pois, nessa questão reside não só a base evolucionária de, se não todas, pelo menos da grande maioria das doenças cardiovasculares, e também da compreensão do que é o choque circulatório. Então, qual é o conceito-chave que explicaria o aumento pressão arterial dos mamíferos e, consequentemente, do homem?

A reposta virá, prometo, no próximo post da série.

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Ticonderoga-class Cruiser e a Pesquisa em Evolução

Como os leitores desse blog já sabem, a New Scientist publicou a opinião de 16 “renomados especialistas” sobre o que faltaria ser estudado na teoria da evolução, que completa 150 anos em 2009. Como também já sabem, cometi um post sobre a que achei mais estapafúrdia. Entretanto, há algumas muito boas. A melhor, na minha opinião, reproduzo abaixo:

“Evolution’s big gap is the lack of serious research funding. The US spends barely $1 billion a year on basic non-medical biological research, only a few per cent of which goes to evolutionary theory. To look at it from another angle, evolutionary theorists get far less support than a single US navy Ticonderoga-class cruiser ($37 million per year running costs) – of which 22 are operational. Only a few hundred researchers work on evolutionary theory proper, mostly in Europe and the US. We need thousands more, especially in China and India.”

Geoffrey Miller is an evolutionary psychologist at the University of New Mexico, Albuquerque

Sensacional! Teoria da Evolução tem verba menor que navio da marinha americana (que aliás, tem um website!). Deixo então, a irremediável questão: o que faz as agências de fomento liberarem mais verba para pesquisa em Biologia Molecular que para a Teoria da Evolução, já que, suponho, o entendimento daquela depende da compreensão desta?

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Honestidade Evolutiva?

Marine iguanas (Amblyrhynchus cristatus) line up on each others’ backs on Genovesa Island, Galapagos, Ecuador
(Image: David Day /SplashdownDirect / Rex) retirada da própria página da New Scientist

Aproveito para comentar um artigo da New Scientist de 29 de Janeiro. Foi solicitado a vários biólogos midiáticos (Dawkins, Elaine Morgan, entre outros) que escrevessem quais as lacunas da teoria da evolução a serem preenchidas nos próximos 200 anos. Essa pérola foi escrita por Frans de Waals (primatologista da Universidade de Emory, Atlanta, EUA):

“Why do humans blush? We’re the only primate that does so in response to embarrassing situations (shame), or when caught in a lie (guilt), and one wonders why we needed such an obvious signal to communicate these self-conscious feelings. Blushing interferes with the unscrupulous manipulation of others. Were early humans subjected to selection pressures to keep them honest? What was its survival value?”

Vi a chamada no blog do Marcelo Leite, aliás com um comentário que tem a mesma linha de argumentação deste post. Essa pergunta não faz o menor sentido se entendermos que doenças (no caso da ruborização, apenas uma alteração da fisiologia normal) são respostas maladaptadas de reações normais do indivíduo. A ligação do rubor facial com emoções é mero uso inadequado da rede vascular facial, assim como o rubor causado pela ingestão de nifedipina (medicação para abaixar a pressão), o dos sintomas climatéricos (menopausa) e também o associado ao próprio frio. Não passou pela cabeça de ninguém que a ruborização facial poderia ter uma outra função e estar sendo utilizada de forma ilegítima por uma outra via, sem relação com comportamentos habituais sujeitos portanto, a uma pressão seletiva? A face está envolvida em reflexos hemodinâmicos complexos, via nervo trigêmio, como por exemplo, o reflexo do mergulho – um estímulo parassimpático fortemente bradicardizante causado pela imersão da face humana em água a 10ºC. Esse reflexo é tão poderoso que pode curar arritmias graves! Só funciona na face. Por quê? Quando todos os outros vasos se contraem no frio, os da face dilatam (ou permanecem inalterados) e nos deixam de bochechas vermelhas. Por quê? Esses vasos têm um comportamento peculiar que precisamos decifrar ou hominídeos foram submetidos a pressões seletivas que os obrigaram a não enfiar a cara em bacias de água fria?

Caberia aos biólogos evolucionistas (sim, porque médicos, ainda não há!) linkar fatos relevantes como se fez com a anemia falciforme, fibrose cística e a própria insuficiência cardíaca, entre outros, de modo a descobrir qual a implicação de cada resposta, contar sua história evolucionária e entender qual seria a resposta maladaptada para, no caso da Medicina, tratá-la. Isso sim seria muito interessante e, diria, necessário à Medicina atual, refém que está do paradigma do risco. Pensar numa “pressão seletiva para se manter honesto” é de dar dó. Depois, a gente fica chateado quando querem cortar nossas bolsas no exterior!!

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