A Insustentável Leveza do Exame
O Dr. Nelson, um médico sênior de um grande hospital público de São Paulo, foi avisado por sua mãe de que o pai, Seu Nilson, não andava nada bem. Ao fazer uma visita, verificou mesmo que o velho pai, que tinha 80 e alguns anos, de fato não apresentava o vigor de outrora. Tinha um conjunto de queixas vagas e algumas palpitações. Levou-o ao hospital onde resolveu fazer uma “bateria de exames”. Colheu várias amostras de sangue e fazendo os “x” nos quadradinhos do impresso do laboratório, ficou com alguma dúvida se solicitaria os exames de marcadores tumorais, mais especificamente um, chamado antígeno carcinoembrionário (CEA na sigla em inglês). Solicitou também exames cardiológicos e radiografias.
Os exames regulares vieram com poucas alterações, que ele mesmo corrigiu. O ecocardiograma revelou alguma disfunção cardíaca; o eletrocardiograma, arritmias próprias da idade, sem repercussão clínica; as radiografias não mostraram achados dignos de nota. Entretanto, o tal do CEA resultou algo elevado. CEA é uma proteína oncofetal que aumenta no plasma de pacientes com vários tipos de cânceres, inclusive o carcinoma colorretal. A tentação de usá-lo como uma ferramenta diagnóstica é muito grande, mas lhe faltam duas qualidades básicas: sensibilidade e especificidade. Ou seja, o exame tem muitos falsos positivos e muitos falsos negativos, o que o inviabiliza como ferramenta de rastreamento.
Sem saber muito bem o que fazer, realizou algumas “consultinhas de corredor” (procedimento amplamente disseminado entre a classe médica) com gastroenterologistas que conhecia. Corta para uma dessas consultas, mas vamos acompanhar o raciocínio do Gastro e não do Dr. Nelson que começa: “Putz, fiz uns exames no meu pai. Dá uma olhada”. Dr. Gastro “Ah. Tá bom, né? Só o CEA tá um pouquinho elevado”. Dr. Nelson “Então. Faz o quê?”. Dr. Gastro pensa <<pô, o cara é médico, me traz os exames do pai, com CEA elevado. Por que raios ele pediu o CEA? E se for um câncer de cólon? Não posso “comer bola”…>> e diz “Ah, pede uma colonoscopia…” Dr. Nelson “Melhor, né? Tira a dúvida”. Dr. Gastro “É. Tira a dúvida”. Repetiu esse procedimento algumas vezes, sempre obtendo a mesma resposta. Resolveu fazer o exame.
Marcou a colonoscopia num hospital privado e bem aparelhado da cidade. A colonoscopia, como já se disse, é um procedimento que necessita uma limpeza mecânica dos cólons para poder visualizar-se os detalhes do intestino grosso internamente. No preparo, que consiste de fortes laxantes, Seu Nilson ficou completamente confuso, desidratou-se e sua pressão arterial caiu. Foi levado à sala de exame e, como é praxe, foi sedado. Ou tentou-se sedá-lo. Ficou mais agitado, combativo. O exame transcorreu com extrema dificuldade e terminou com Dr. Nelson sobre o Seu Nilson, enquanto o médico realizava a colonoscopia! O paciente ficou sonolento quando tudo acabou e apresentou certo desconforto respiratório. De comum acordo, o médico e o Dr. Nelson resolveram encaminhar o Seu Nilson à UTI para observação. Quem estava de plantão? ==> Karl!
Recebi o paciente e por muito pouco não o coloquei sob ventilação mecânica, por meio de um tubo orotraqueal. A radiografia estava alterada, a oxigenação, ruim. Colocamos uma máscara para ventilação com pressão positiva com melhora. Mais tarde, ele apresentou febre e foram iniciados antibióticos. Ficou uns três ou quatro dias na UTI e mais alguns no hospital, a confusão foi passando devagar e ele teve alta bem.
Ah, esqueci. Logo depois de sua admissão na UTI, recebi um laudo médico: “Colonoscopia normal”.
Cerveja e Medicina II
Neste post, continuaremos a visitar a saga de pesquisadores ligados à fabricação de cerveja que contribuiram de forma importante para a prática médica contemporânea.
Doenças graves afetam o organismo como um todo. Quadro sistêmicos podem levar à morte por meio de mudanças no meio interno no qual as células vivem. Um dos mais importantes mecanismos é o aumento (ou diminuição) da concentração hidrogeniônica no espaço extracelular. Os íons hidrogênio têm o poder de interferir em muitas reações biológicas, apesar de ter uma concentração 3,5 milhões de vezes menor que a do Sódio nos fluidos orgânicos. Sua concentração no soro é de 0,000 000 040 M/L ou 40 nM/L, da mesma ordem de grandeza do Molibdênio (20 nM/L) e menor que as concentrações de elementos como Zinco (15 μM/L), Cobre (20 μM/L) e Selênio (1 μM/L). A concentração hidrogeniônica é importante em qualquer reação química na qual enzimas participem. Sua interferência em processos vitais no organismo é, hoje, óbvia. Mas, os médicos demoraram-se um pouco a perceber isso. Os cervejeiros, não.
A Cervejaria Carlsberg foi fundada em 1847 por Jacob Christen Jacobsen. Tendo herdado uma pequena fábrica de seu pai em 1835, quando tinha 24 anos, experimentou certa vez, uma lager bávara e ficou obcecado pela ideia de fabricar uma em terras dinamarquesas. Quando explosões para uma estrada-de-ferro encontraram água num subúrbio de Copenhagen, ele encontrou o local ideal para por em prática seu plano. Quase três décadas mais tarde, já tendo sido vencedor de vários prêmios e com a Carlsberg conquistando o mercado europeu, Jacobsen inovou mais uma vez. Fundou em 1876, junto à cervejaria, um laboratório para pesquisas que pudessem “auxiliar o processo de fermentação, malteamento e produção de cerveja em larga escala”. O laboratório tinha dois departamentos: Fisiologia e Química. O segundo chefe do laboratório de Química foi Sören Peter Lauritz Sörensen (1868-1939).
Em 1909, Sörensen (figura ao lado) publicou dois artigos, totalizando 170 páginas, intitulados Études Enzymatiques I e II, em alemão e francês na revista do Laboratório Carlsberg (Comptes-Rendus des Travaux du Laboratoire de Carlsberg). Neste trabalho, Sörensen esclarece um dos pontos mais obscuros da bioquímica (ops, ainda não existia esse termo!) da época: a relação entre a atividade das enzimas e a acidez do meio. Não se poderia prever a concentração hidrogeniônica imposta à solução pela adição de ácido porque as preparações enzimáticas funcionavam como um tampão e essas substâncias tinham sua concentração variável conforme o modo de preparação. Ele imaginou que, se segundo Arrhenius, sendo a ação de um ácido caracterizada pela emissão do H+, seria possível que o agente modificador da atividade enzimática fosse o íon hidrogênio, em outras palavras, que o fator determinante fosse a concentração hidrogeniônica. Trabalhando com sua hipótese, Sörensen pôde comparar a atividade das enzimas com a concentração hidrogeniônica de várias misturas, demonstrando que a concentração de íons hidrogênio mais favorável à ação de uma determinada enzima era sempre a mesma, não importando o tipo de preparação, nem a quantidade de ácido adicionada e – o que causou enorme espanto – nem do tipo de ácido (sulfúrico, fosfórico ou cítrico)!
Como se não bastasse, no mesmo trabalho, Sörensen inventou a escala do pH. A figura acima, do trabalho original, talvez tenha sido a inspiração última depois de desenhar tantos gráficos e colocar potências negativas de base 10 nas abscissas, optou por utilizar o cologaritmo, que se traduzia em números mais palatáveis. A grandeza foi representada pelo símbolo pH•, o p proveniente de potenz ou puissance significando potência, ou mais precisamente, o expoente negativo. Com o tempo, o ponto representando o íon hidrogênio foi suprimido por razões tipográficas e ficamos com o familiar pH.
Hoje, nenhum médico intensivista, nefrologista ou pneumologista pode cuidar de um paciente grave sem uma dosagem do pH e de seus correlatos no sangue, como o CO2, sódio, cloreto e a quantidade de bicarbonato dissolvido. Em 2009, completou-se 70 anos do falecimento de Sörensen e 100 anos da invenção do pH, mais uma grande ferramenta que devemos a um mestre cervejeiro! Mais um motivo para comemorar. Prost, Sr. Sörensen!
Cerveja e Medicina
Hoje, 24 de Setembro, é o aniversário de 250 anos da Cervejaria Guinness. A cerveja é hoje uma bebida apreciada no mundo todo. Há quem afirme desempenhar ela um papel importante até na evolução da espécie humana (valeu, Átila). Seu processo de fabricação depende da fermentação de cereais e lúpulo que, apesar de provavelmente descoberto de forma acidental, necessita um controle rígido em cada um de seus passos. Atualmente, o processo é automatizado e tem-se um moderno e eficaz controle da temperatura e do pH. Mas nem sempre foi assim. As fórmulas das cervejarias famosas eram guardadas sob segredo de estado. O processo, quase alquímico, era dominado por uns poucos “feiticeiros” que não podiam deixar nada escrito e transmitiam seus conhecimentos ao “pé-do-ouvido”.
Na virada do século XIX para o XX, quando a ciência se estabelece como hoje a conhecemos, dois pesquisadores chamam a atenção. Primeiro, por trabalharem em cervejarias e, segundo, por fazerem importantes contribuições à prática médica. Contribuição que não é aquela depois do plantão, quando queremos relaxar. Na verdade, foram mudanças de paradigma do pensamento médico. Comecemos pois, com a aniversariante.
Em 1899 a Guinness Brewing Company of Dublin contratou um jovem de 23 anos, recém-formado em Oxford em química e matemática. Seu nome era William Sealy Gosset (foto ao lado). Gosset fora contratado por seus dotes químicos. O que um matemático faria em uma cervejaria? Entretanto, ao observar o processo de fermentação, notou que a amostra de levedura necessária a uma mistura era de difícil quantificação. Os técnicos tinham que pegar uma amostra de cultura e examiná-la ao microscópio, contando o número de células que viam! A quantidade de leveduras em qualquer processo de fermentação é fundamental. Gosset verificou que as anotações dos técnicos seguiam uma distribuição estatística particular chamada de Poisson, conhecida há mais de um século. Gosset então, criou regras e métodos de medição que levaram à quantificação das amostras de levedura muito mais exatas. Gosset queria publicar seus resultados, mas a Guinness não permitia esse tipo de divulgação com medo de perder as fórmulas tão secretamente mantidas. Ele entrou em contato com Karl Pearson, então editor da Biometrika, a revista de estatística mais badalada da época, e publicou um artigo com um pseudônimo. A figura abaixo mostra a primeira página do segundo artigo de Gosset, de um total de três, usando o codinome Student, publicado na Biometrika em 1908. O artigo integral “remasterizado” pode ser baixado aqui.
Bibliografia
[1] Uma senhora toma chá.. Como a estatística revolucionou a ciência no século XX David Salsburg.
[2] Senn, S. (2008). A century of t-tests Significance, 5 (1), 37-39 DOI: 10.1111/j.1740-9713.2008.00279.x
Sobre Prêmios e Responsabilidades
“Quando comecei a escrever este blog, não sabia exatamente onde ia chegar. Eu queria simplesmente organizar uma porção de idéias que povoavam minha cabeça e, quem sabe, um dia colocá-las em um livro. Pela sua própria forma de ser, um weblog permite que você se cite e isso acaba por construir uma matriz de conceitos que, assim postos, são mais fáceis de visualizar e entender. Além disso, e talvez mais importante, um weblog permite que você coloque suas idéias à prova. Os comentários são úteis não para testar a popularidade mas, para saber se o que estamos pensando não contém erros lógicos, preconceitos, inconsistências ou incoerências.”
Assim começa o post do aniversário de 1 ano do Ecce Medicus, que foi em fevereiro de 2009. Passados 7 meses, ainda não sei onde essa aventura – que toma um tempo enorme – vai parar! Isso porque o prof. Osame Kinouchi e o Laboratório e Divulgação Científica da USP – Ribeirão Preto, organizaram um concurso para blogs chamado Prêmio ABC (Anel de Blogs de Ciência). Foi feita uma votação entre os blogs cadastrados no ABC, que poderiam votar em três blogs de cada categoria. É portanto, uma votação de pares. Blogueiros votando em blogueiros! Fiquei sabendo ontem que o Ecce Medicus venceu a categoria “Mente e Cérebro, Saúde e Medicina”! Os outros blogs participantes da categoria são simplesmente fantásticos, alguns devidamente linkados no blogroll ao lado (ver a lista completa aqui).
O fato é que um prêmio como esse, eleito por pares, em meio a tantas opções de qualidade, é simplesmente inimaginável para mim. O dia-a-dia de um médico comum é algo totalmente fora desse fantástico mundo. Escrevo o que vivo, o que leio e o que me perguntam. Não sou repórter; tampouco divulgador científico. Fiquei me questionando muito sobre porque um prêmio de tal relevância foi conferido ao Ecce Medicus. Confesso que não encontrei resposta satisfatória. Um concurso sempre comete algumas injustiças.
Fica então, a surpresa de saber da relevância do que é aqui publicado; a alegria e orgulho enormes de ser reconhecido pelos pares (o que para um médico é absolutamente tudo); e a responsabilidade de ser universal, como disse Dostoiévsky, escrevendo sobre sua própria aldeia.
Não poderia deixar de agradecer a pessoas/blogs que são parte integrante desse projeto. Em especial o Rainha Vermelha do Átila e o Brontossauros em Meu Jardim do Carlos Hotta, chefes, líderes e amigos. Ao prof. Osame Kinouchi e ao LDC, pela iniciativa. Esse prêmio é dedicado a todos os amigos/blogueiros do Scienceblogs Brasil e aos leitores do Ecce Medicus, com quem aprendo diariamente.
Muito Obrigado.
Positive-Paper Bias Unequivocally Demonstrated
Muito interessante o que um ortopedista americano fez. Escreveu um artigo fictício sobre a eficácia de um antibiótico com dois resultados diferentes, um positivo – sim, o tratamento com a droga é melhor que o que temos hoje – e um negativo – não, o tratamento com a droga é igual aos tratamentos atuais -, e os enviou a várias revistas médicas. Teve o cuidado de colocar 5 erros metodológicos em ambas versões, exatamente no mesmo lugar. Erros não óbvios, mas que um revisor experiente com certeza notaria. Aguardou então, as respostas das revistas.
O resultado estava de acordo com sua hipótese inicial. Os artigos que demonstravam um efeito positivo do antibiótico sobre os tratamentos convencionais tiveram uma facilidade de publicação significantemente maior que os artigos que não evidenciaram diferença alguma. Pior, mesmo a metodologia dos artigos positivos foi menos criticada que a dos negativos, sugerindo que os revisores deram mais importância à novidade do que a própria metodologia. Um verdadeiro “pecado” para um cientista!
Essa é uma comprovação inequívoca de um viés (bias) de publicação conhecido como positive-paper bias. As revistas médicas são empresas. Geram recursos vendendo separatas para a indústria farmacêutica, publicando anúncios (da indústria farmacêutica) e, finalmente, faturam alguns caraminguás com assinaturas. O “Ibope” de uma revista é o fator impacto. Quanto mais um artigo da revista é citado, mais seu fator impacto tenderá a ser empurrado para cima. Artigos positivos tendem a ser mais citados e lidos que os negativos. Até para serem desmentidos. Conclusão: as revistas médicas publicam muito mais artigos nos quais um efeito é demonstrado do que artigos nos quais nenhuma diferença se demonstra, mesmo que a metodologia desse artigo seja de pior qualidade.
Triste? Há outros tipos de viéses de publicação, alguns dos quais já falamos aqui, como por exemplo, o da língua e o da nacionalidade dos pesquisadores. O próprio positive-paper bias já foi abordado. Dá um certo desânimo quando essas coisas vêm à tona novamente. Isso porque acreditamos na ciência e é difícil vê-la servindo a outros interesses que não o do conhecimento. Ainda bem que essa semana tivemos uma grande notícia!
Agradecimentos à maria do C&I, pela notícia e links.
Certezas Médicas III
De onde vêm, do que são constituídas e como se mantém as certezas médicas? No último post, discutíamos que nem mesmo a medicina baseada em evidências – o paradigma positivista da racionalidade ocidental aplicado ao pensamento médico – tem, muitas vezes, o poder de mudar certas condutas médicas. O exemplo escolhido não foi gratuito.
O uchedo ou whdw foi o primeiro conceito fisiopatológico a dar resultados do ponto de vista terapêutico. Segundo Robert Steuer [1], ele marca a passagem que a medicina egípcia antiga fez dos conceitos mágico-religiosos a uma prática empírico-racional. Sua interpretação passou por doenças como a lepra, varíola, sífilis ou como sintoma de dor ou inflamação. Hoje, se aceita que o whdw significava um princípio etiológico básico aderido às matéria fecais dos intestinos. Quando o whdw é absorvido e passa para o sangue, o coagula e destrói, produzindo abscessos e outras formas de supurações e também a putrefação generalizada do organismo que hoje, mais de 4000 anos após, chamamos de sepse.
A hipótese do whdw derivou de ideias religiosas e da experiência com a mumificação [2]. Durante a vida do indivíduo, o médico era o responsável por evitar os efeitos nocivos do whdw por meio de medidas terapêuticas. Acreditava-se que o envelhecimento era decorrente da ação crônica do whdw. Por isso, eram prescritos enemas e enteroclismas para os mais diversos males. Heródoto escreveu que os egípcios purgavam-se por 3 dias consecutivos no mês e Diodorus Siculus que o faziam em intervalos de 3 a 4 dias. Anúbis (na figura ao lado) era o deus egípcio do embalsamamento e patrono dos embalsamadores além de, não por coincidência, ter poderes médicos. Acredita-se que toda a teoria do whdw seja proveniente da dificuldades do embalsamamento. Os intestinos, principalmente os cólons, cheios de fezes, eram fonte muito importante de bactérias com capacidade de putrefação. Não se conseguia um embalsamamento perene se não se controlasse essa variável. Daí a correlacionar a presença de fezes com doenças no vivo parece ter sido um passo óbvio. O conceito de whdw se transformou na medicina grega antiga no de perittoma. O conceito de perittoma acabou não constando explicitamente no Corpus Hyppocraticum, mas lá há referências indiretas a ele o que nos permite imaginar que também eram utilizadas lavagens intestinais com fins terapêuticos na Grécia Antiga.
A tal ponto que esse tipo de procedimento passou à era moderna. Por muitos anos, as lavagens intestinais e os enemas constituíram, juntamente com as sangrias e as ventosas, os únicos tratamentos possíveis para uma série de moléstias humanas. As peças de Moliére – em especial “O Doente Imaginário” – são pródigas em exemplos e em críticas à medicina praticada na época.
Retornando então ao nosso assunto inicial. Como mudar da “noite para o dia” um conceito que tem mais de 4000 anos de idade? Quando digo que a medicina é mais velha que a ciência é sobre isso que estou falando. O bom-senso, que todo ser humano alega ter, é composto pela palavra “senso” que pode ser entendida como um “juízo”, uma opinião sobre algo. Quando adicionamos a palavra “bom” estamos atribuindo um valor a esse juízo ou opinião. Quando digo que faço medicina baseada no bom-senso, estou expondo a quem quer que esteja me ouvindo os meus juízos e valores sobre minha atividade profissional, obviamente acompanhados de meus preconceitos, traumas, intenções e outras tantas facetas da “pessoa do meu ser” (como diria uma amiga), boas ou ruins, agradáveis ou não. O mesmo ocorre com as “boas intenções”!
Ser médico é isso. É lidar com uma profissão que tem uma história de mais de 4000 anos, que foi abalroada pela ciência positivista do século XVII e XVIII, se recriou com muita dificuldade após isso e que, recentemente, sofreu um novo impacto, talvez de magnitude semelhante, com o advento da revolução da informação. As certezas médicas continuam a existir e, porque não dizer, a sobreviver a todas essas revoluções. Médicos não podem se dar ao luxo de praticar um ceticismo radical, porque ele pode ser paralisante. Não podem se dar ao luxo de acreditar em qualquer medida, porque elas podem ser enganosas. Enquanto isso, lavagens intestinais serão prescritas com a melhor das boas intenções guiadas pelo bom-senso.
[1] Robert O. Steuer & J.B. Saunders. Ancient Egyptian & Cnidian Medicine. The Relantionship of Their Aetiological Concepts of Disease. Berkeley and Los Angeles. 1959. 104pp.
Atualização
[2] Ruy Peréz Tamayo. El concepto de Enfermedad. Su evolución a través de la história. Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología. Ciudad del Mexico. 1988.
Viver e Sobreviver – O Debate sobre Eutanásia
Scarlett Marton produziu um raro texto sobre o debate da eutanásia e cuja leitura recomendo fortemente. Por seu equilíbrio e abrangência, incomuns para um opúsculo de três páginas (mas não para escritores de sua envergadura), permite entender ao menos os tópicos envolvidos nessa importante questão não respondida da contemporaneidade: por que alguns países aceitam a pena de morte e não aceitam a eutanásia? Por que lutamos a todo custo para prolongar a sobrevivência, e consideramos que há vidas desprovidas de valor, como a de idosos e debilitados, que acabam isolados do convívio social?
Essas e outras incômodas perguntas são discutidas pela professora titular de filosofia contemporânea da USP, recém chegada de um ano sabático na Sorbonne – onde também leciona. Coordenadora do GEN – grupo de estudos de Nietzsche – tem várias publicações sobre esse filósofo, além de teses orientadas sobre aspectos de sua filosofia.
A Velha Medicina
Costumo dizer aos meus alunos para nunca se esquecerem que a medicina é mais velha que a ciência. Aliás, bem mais velha. Assim como os barbeiros, alfaiates, cozinheiros e açougueiros exercem profissões bem mais antigas que a ciência pós-iluminista que conhecemos hoje, o médico também tem uma profissão que por muitos anos prescindiu da ciência para existir. E nem por isso os médicos eram menos respeitados. A bem da verdade, a máxima de um velho professor de Radiologia e Clínica Médica aposentado era: “Sou do tempo em que a Medicina era péssima e os médicos, ótimos. Hoje, a Medicina é ótima, já os médicos…” Guardadas as devidas proporções e respeitada a ranzinzice própria da idade, a máxima tem um certo fundo de verdade: a associação com a ciência trouxe melhores resultados aos pacientes, mas não garantiu maior prestígio aos médicos. Diriam alguns que o que importa é o resultado com os pacientes. Eu diria que sim. Mas por que tanta infelicidade e doenças? Tanta insatisfação com a medicina, com os médicos, consigo mesmo! Esse “prestígio” que reclamo não é para minha vaidade. Esse “prestígio” é fruto de um reconhecimento que por sua vez, é fruto de um bem-estar, despertado ou provocado por um agente curador (healer), que não existe mais.
É interessante procurarmos então, o momento em que, pela primeira vez, o médico despiu suas vestes obscurantistas, preconceituosas e, porque não dizer, místico-religiosas, e vestiu um avental branco, com intuito de entender o que ocorria com um semelhante que insistia em sofrer. Detalhe, ainda não nos despimos totalmente de tais vestes: o avental não é nossa única fantasia. Nem sei se os pacientes querem isso – acho que não. Mas, quando foi esse momento inicial precursor da virada que transformou a medicina numa profissão diferente do açougue, da barbearia, da alfaiataria e da cozinha profissional?
Foi ao cuidar de seus mortos. Ironia da história. Somente quando o homem propôs-se a tratar seus mortos de modo a conservá-los – por motivos místico-religiosos, é verdade – pelo maior tempo possível é que surgiram teorias que permitiram propostas de tratamento para algumas doenças. Isso ocorreu há mais de 4000 anos atrás, no Egito.
Pensando na origem das certezas médicas para o post que completará a série, cheguei ao Egito e digo que, certamente, muitas de nossas atuais certezas, vêm de lá.
Desenho do Jok do Jokbox.