Carta-Resposta do Prof. Maurício Rocha e Silva

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Segue a carta do prof. Maurício Rocha e Silva sobre a suspensão de revistas médicas brasileiras pelo JCR, conforme publicado neste blog. As opiniões do autor não são necessariamente as mesmas do editor do blog. Esperamos, entretanto, que isso possa fomentar um debate salutar sobre as publicações científicas brasileiras, debate de importância maior para amadurecermos no nosso papel de relevância científica que conquistamos a duras penas. Todas as perguntas dirigidas ao autor do texto lhe serão encaminhadas por email e me comprometo a publicar integralmente, tanto as questões, quanto suas respostas. (Me reservarei, contudo, no direito de editar eventuais textos ofensivos e em “caps lock” abusivo).

Ainda a propósito da suspensão de revistas pelo JCR

Mauricio Rocha e Silva

Editor, Clinics

Clinics foi suspensa por um ano do Journal Citation Reports (JCR) 2012. A suspensão foi provocada por dois artigos publicados em 2011. A suspensão significa que CLINICS não teve Fator de Impacto divulgado para 2012 pelo JCR. Este é responsável pela publicação do fator de impacto de 8.841 periódicos científicos mundiais. Mas não é a única agência avaliadora no mundo, como veremos adiante.

O Hospital das Clínicas e a Editoria de Clinics estão examinando determinados aspectos do ato de suspensão e entendem que não existem fundamentos dentro das regras JCR em vigor que justifiquem esse ato.

Há que notar que, até hoje, o site JCR continua a afirmar que “Suppressed titles were found to have anomalous citation patterns resulting in a significant distortion of the Journal Impact Factor.” (Títulos suprimidos apresentaram padrões anômalos de citação, que resultam numa distorção significativa do Fator de Impacto da Revista). Isto só pode significar que a condição obrigatória para suspensão é uma distorção significativa do Fator de Impacto.

E qual foi a distorção significativa provocada em nosso fator de impacto? Clinics foi suspensa pela publicação de dois artigos na Revista da Associação Médica Brasileira sobre pesquisa científica brasileira em áreas específicas do conhecimento: aparelhos cardiorrespiratório e locomotor. Estes artigos citam 330 artigos brasileiros, dos quais 127 publicados pela CLINICS. Estas 127 citações representam apenas 18% de todas as citações recebidas pela CLINICS em 2011 (total 704 citações) Como consequência, o Fator de Impacto de Clinics elevou-se em 22% (de 1,687 para 2,058). Como é que esta distorção de fator Impacto é comparada com outras no sistema ISI? Para isso realizamos uma avaliação por amostragem pesquisando 200 revistas não suspensas pelo JCR e escolhidas randomicamente. Convidamos qualquer leitor a fazer o mesmo: escolha o seu método de randomização e veja o que aparece. Esta análise revelou 31 revistas (15,5%) com elevações de Fator de Impacto iguais ou superiores aos 22% da Clinics. Estendendo esta amostragem para o universo de 8841 revistas pode-se esperar encontrar cerca de 1300 revistas com “distorções” iguais ou superiores às da CLINICS. Nenhuma dessas foi suspensa. Entenda-se: não estou acusando de distorção estas revistas semelhantes à CLINICS e não suspensas. Estou simplesmente mostrando que o que não é infração ética para tantas, subitamente virou infração para Clinics.

Como notei, o JCR não havia instituído essa modalidade de impropriedade de citação em 2011, quando os artigos foram publicados. As primeiras revistas suspensas por stacking o foram em Junho de 2012. Três revistas foram suspensas por citações circulares. Só então é que se ficou sabendo que esta modalidade passara a existir. Consequentemente, a nova regra foi aplicada retroativamente à Clinics. Mesmo agora, junho de 2013, as regras continuam obscuras e dão a JCR margem para ações discriminatórias.

Vale repetir: o JCR não detém monopólio mundial de avaliação de impacto. Duas outras grandes instituições também o fazem. (1) A editora científica Elsevier, a maior do mundo, sediada na Holanda, possui um site  www.scimagojr.com, que divulga um impacto entendido pela CAPES, pela FAPESP e pelo CNPq como equivalente ao da JCR. Continuamos ali representados e quem quiser saber quanto será o nosso impacto Scimago 2012 só precisa esperar até o próximo mês de julho. (2) SCIELO, uma das mais importantes experiências de catalogação científica do mundo, sediada em São Paulo, publica também um Fator de Impacto. Continuamos ali representados. A suspensão de Clinics no JCR choca de frente com a não suspensão no Scimago e na SCIELO.

Mesmo que comentaristas inseridos neste e noutros blogs prefiram discordar de nossa posição, seria muito mais conveniente evitar a indecorosa e anônima pressa de criminalizar um evento entendido pela própria JCR como mera decisão técnica. CLINICS foi apenas excluída do JCR em 2011. Tudo o mais referente a ela continua incluído no sistema JCR e decorre normalmente.

Aproveito para reafirmar e renovar nosso compromisso com a informação ética e verdadeira da ciência, dentro do conceito de dignidade da atividade científica.

Ainda sobre as Revistas Suspensas

Este texto é a continuação desse e, de certa forma, também um esclarecimento sobre alguns conceitos que, ou foram colocados de forma errônea no anterior, ou ficaram ambíguos. Então, vamos lá.

BlockedAparentemente, no dia 19/06/13, a Thomson Reuters publicou uma nota na qual suspendia 4 revistas brasileiras de sua principal metapublicação: o Journal Citation Reports® (JCR). Isso significa que as publicações ficarão sem o fator impacto do ano de 2012, conforme esclarece carta enviada pelos editores a assinantes e revisores das revistas, publicada no post anterior. As revistas, mais uma vez, são, em ordem alfabética: Acta Ortopédica BrasileiraClinics, Jornal Brasileiro de Pneumologia e Revista da Associação Brasileira de Medicina.

A razão alegada para suspensão parece ter sido a prática de stacking, mas a nota da Thomson Reuters não deixa isso claro, falando apenas “em padrões de citação anômalos que resultaram em distorção dos respectivos fatores impacto”. Entretanto, os editores das revistas devem ter recebido uma notificação mais específica, dado que a prática de stacking foi citada na carta e também pelo prof. Maurício Rocha e Silva em comentário neste blog.

Autocitação e stacking são práticas condenadas pela Thomson Reuters porque aumentam o fator impacto das publicações artificialmente, dando a elas uma relevância irreal. Segundo Paul Jump do portal britânico THE (Times Higher Education) sobre educação superior, a Thomson Reuters começou a procurar no ano de 2012 o que ela chamou de “citation stacking“. Marie McVeigh, diretora do JCR, definiu a prática como “um específico e anômalo padrão de troca de citações entre dois jornais”, ou seja, “O Jornal A cita excessivamente um Jornal B” durante o período do cálculo do impacto. Naquele ano, três revistas – Cell Transplantation, Medical Science Monitor e The Scientific World Journal – foram excluídas do JCR referente a 2011 devido a tais comportamentos. Em 2012, a lista aumentou para 66 publicações de países como Espanha, China, EUA e Brasil. A Autocitação é uma prática considerada mais grave e é punida pela agência com dois anos de banimento.

Os editores das quatro revistas brasileiras contestam a validade da suspensão, talvez por intermédio de recurso enviado à Thomson Reuters; não sei. Do ponto de vista ético, tudo isso é muito desagradável. O Brasil teve uma ascensão grande no cenário científico mundial nos últimos anos e nossas revistas ganharam muito em importância. Situações como essa só vêm confirmar o preconceito que sofremos quando tentamos publicar nossos estudos em revistas internacionais, em especial, as anglófonas. Nesse caso, o melhor é esclarecermos tudo, doa a quem doer. Por isso, aguardo ainda manifestações dos editores das revistas, a quem ofereço o espaço deste humilde blog, de pessoas envolvidas nas publicações ou de qualquer um que possa nos ajudar jogar um pouco de luz nessa escuridão desconfortável.

 

PS. Agradeço aos leitores Sibele Fausto, Raptor e Suzana Silva pelos esclarecimentos.

Suspensão de Revistas Médicas Brasileiras

Bandeira Vermelha

Em um documento datado de 18/06/2013 (não consegui checar a data com certeza), a Thomson Reuters, proprietária de índices cientométricos como o Fator Impacto (FI), por meio do seu Journal Citation Reports®, divulgou uma lista de jornais suspensos de sua principal indexação. A lista pode ser vista aqui, no item Editorial Information, Title Suppressions. Uma apresentação em pdf (de onde tirei a foto acima) que explica as razões da “supressão” pode ser baixada aqui e por qualquer um que digitar “suppression journals” no oráculo buscador. A explicação para a punição vai abaixo, em tradução livre do inglês.

As métricas para os títulos listados abaixo não são publicadas no JCR 2012. Foram encontrados padrões de citações anômalos resultando em uma signifante distorção do Fator Impacto de revistas, de modo que o rank não reflete precisamente a performance da respectiva publicação na literatura. O fator impacto proporciona uma medida importante e objetiva da contribuição da revista na comunicação acadêmica e sua distorção e concentração excessiva de citações é uma questão séria. A equipe do JCR monitorará tais revistas que poderão ser incluídas em edições vindouras quando o problema das citações for resolvido. A cobertura das revistas na Web of Science e outros produtos da Thomson Reuters não será imediatamente afetada pela suspensão no JCR entretanto, o títulos podem ser objeto de revisão no intuito de determinar se os padrões de qualidade e publicação necessários para inclusão na Web of Science são atingidos.

Em outras palavras, as revistas foram suspensas por auto-citação. Uma estratégia que faz com que o FI aumente artificialmente. No exemplo da apresentação, uma revista teria FI 10, caso fossem consideradas as auto-citações. Ao retirá-las, o FI cai para 2. A tabela abaixo (clique para aumentar) mostra as 4 revistas brasileiras “suspensas” do repositório (CLINICS, J BRAS PNEUMOL, ACTA ORTOP BRAS e REV ASSOC BRAS MED).

tabela clinics

A primeira delas é a antiga revista do Hospital das Clínicas da FMUSP, agora denominada CLINICS, cujo FI é maior que 2. Na lista há ainda outras revistas brasileiras importantes na área médica como os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e o Jornal Brasileiro de Pneumologia. O texto ficou ambíguo e devo enfatizar que os Arquivos Brasileiros de Cardiologia não foram suspensos do repositório, caso não tenha ficado claro.

Ainda não localizei manifestações das revistas defendendo-se ou justificando-se, nem sei quantificar o quanto isso prejudicará a imagem delas e a nossa. Também não sei se dá para colocar todas as revistas no mesmo balaio. Vou monitorar isso e se houver novidades, publicarei. Se algum leitor mais bem informado tiver algo a acrescentar, por favor, faça-o. Se precisar sigilo, é só pedir.

Atualização 24/06/13 23:15

Publico, na íntegra, carta dos editores das 4 revistas que acabei de receber.

24-Jun-2013

Dear Dr,

As you may know, Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira have been suspended for one year from the Journal Citation Reports (JCR) 2012. This means these journals have no published Impact Factor for 2012. However, they continue indexed in the ISI Web of Science and consequently, all citations to and from articles in these journals continue to be counted by ISI. The suspensions do not affect the Impact Factor of any other JCR periodical. It should also be noted that we are indexed in Scimago (www.scimagojr.com) with impacts similar to those normally posted in JCR. A new edition of Scimago is scheduled for July, 2013.
According to information provided by Thomson Reuters, the four journals have been suspended for allegedly performing “stacking”, defined by Thomson Reuters as an accumulation of citations to one journal in articles published in a different journal. This was instituted by ISI as a form of inappropriate usage of citation in 2012. The alleged breach occurred in 2011. Therefore, ISI has used this retroactively to suspend the four journals. We confirm that we published articles to highlight specific aspects of Brazilian Science in 2011. These articles covered topics in the highlighted theme published by a large number of different Brazilian Science Journals. This is a common practice in the entire world and comes under the name of review articles. Unfortunately this new modality of ISI policy prevents us from continuing to perform this service to the community, namely the reporting of information relating to recently published Brazilian Science. We regret the inconvenience caused by this new ISI policy. Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira wish to take this opportunity to reaffirm and renew their commitment with ethical and truthful reporting of science, within the dignified concept of scientific activity.

Olavo Pires de Camargo
Editor, Acta Ortopedica Brasileira

Mauricio Rocha e Silva
Editor, Clinics

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho
Editor, Jornal Brasileiro de Pneumologia

Bruno Caramelli
Editor, Revista da Associacao Medica Brasileira

Parece que o problema são os artigos de revisão e/ou de comentários sobre artigos publicados por/em revistas brasileiras que, na nova política, são considerados auto-citações. Aguardaremos os novos desdobramentos.

Transplante de Fezes

Parece* que nascemos mesmo livres, ao menos dos germes. Estéreis ou, como os cientistas gostam de dizer, gnotobióticos. Logo após o nascimento, entretanto, no período neonatal, somos já colonizados. O tipo de colonização é bastante influenciado pelo contato materno mas é, sob alguns aspectos, uniforme. Há mais de cinquenta filotipos de bactérias mas apenas quatro nos adotaram como lar. São eles os Firmicutes, os Bacteroidetes, as Actinobacterias e as Proteobacterias (parece Game of Thrones, né?). Mas, por que só quatro? Essa especificidade sugere uma interação de poderosas forças seletivas que permitiram eliminar algumas e manter outras espécies em co-evolução.

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Fig. 1 – Esquema de distribuição dos filos bacterianos em um ser humano saudável. A área de cada setor do gráfico está relacionada ao número de diferentes espécies bactérias do filo no determinado sítio do hospedeiro. (copiado com permissão do Meio de Cultura)

Apesar de seguirmos esse padrão geral, cada ser humano parece ter uma combinação própria de bactérias desses filos, tornando a microbiota quase uma assinatura microbiológica de cada pessoa. As regras que governam a co-existência de humanos e bactérias de acordo com esse modelo ainda não são bem elucidadas, mas o fato é que alguns estudos em animais de laboratório gnotobióticos mostraram que tais bactérias não são fundamentais para o desenvolvimento normal desses bichos. Por outro lado, a gnotobiose não ocorre de forma espontânea na natureza. Então, parece realmente que obtemos alguma vantagem de nos deixar ocupar. No nosso caso específico, a microbiota que nos habita facilita a incorporação de vitaminas e nutrientes, ajuda no desenvolvimento e manutenção da integridade dos tecidos, em especial da mucosa intestinal, além de estimular em muitos aspectos as defesas contra invasores causadores de doenças, para citar alguns exemplos. Um desses invasores tem tirado o sono de médicos e microbiologistas: o Clostridium difficile. Vamos conhecê-lo mais de perto.

Clostridium difficile (C diff)

Fig. 2 – Fotografia de microscopia de população de Clostridium difficile no intestino sem microbiota nativa. (Copiado do The Guardian Foto de Dr David Phillips/Getty Images). Clique na foto para ver o original.

O Clostridium difficile é um bacilo (forma de bastão) anaeróbio obrigatório (não utiliza oxigênio), gram-positivo, que faz parte da microbiota intestinal e produz duas toxinas (A e B). A toxina A é uma enterotoxina que causa aumento da permeabilidade intestinal e secreção de fluidos, enquanto a toxina B é uma citotoxina que causa intensa inflamação dos cólons. Por isso, o clostrídio causa uma colite que chamamos de pseudomembranosa devido ao seu aspecto macroscópico à colonoscopia. O Clostridium difficile pode provocar até 20% dos casos de diarreia associada a antibióticos e é uma das causas mais comuns de diarreia adquirida em hospitais, em geral, em pacientes já debilitados o que além de dificultar o tratamento, aumenta o número de complicações. O tratamento para a colite por C. difficile consiste na administração oral de antibióticos (metronidazol ou vancomicina). Além disso, a taxa de recidivas é muito alta (15 a 26% dos pacientes). Nenhum tratamento efetivo contra as recorrências está disponível e o que temos é a prescrição de vancomicina prolongadamente. Isso, além de diminuir progressivamente sua eficácia, pode também ser a causa do problema. O que fazer?

Cascao ideia

Foi quando alguém teve a brilhante ideia que dá título a esse texto.

Ora, se o problema é um desbalanço na microbiota intestinal, vamos tentar restabelecê-la. Inicialmente, foram tentadas bactérias como os próbióticos (lactobacilos, etc). Não deu certo. Quando se tem pacientes morrendo e não se dispõe de terapias adequadas, a necessidade cria alternativas, muitas vezes desesperadas ou mesmo inusitadas.

“Por que não passamos as bactérias de um indivíduo saudável para um doente?” – pensou algum médico desesperado. “Sim. Mas como faremos isso?” – respondeu seu amigo pragmático. “Ora, infundimos um lavado de fezes do intestino do saudável para o doente… Simples!”.  Foi o que fez o grupo de pesquisadores holandeses liderados por Els van Nood, citados abaixo. Por mais nojento que possa parecer, a coisa funcionou. E muito bem. O estudo teve que ser interrompido em sua análise interina pois, com apenas 43 pacientes randomizados, foi possível demonstrar uma nítida melhora no grupo tratamento com 16 pacientes. Qual tratamento? O intestino dos indivíduos com clostrídio era lavado e após isso, infundia-se, por meio de uma sonda nasogástrica, 500 ml de solução constituída de material fecal de um doador saudável (ver metodologia original no final do texto). Paralelamente a isso, foi tentado o tratamento convencional com vancomicina e ainda, uma mistura dos dois. A figura 3 mostra a taxa de cura de cada tratamento.

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Fig. 3. Gráfico mostrando a taxa de cura de acordo com os tratamentos instituídos com as respectivas significâncias (p) de cada grupo comparado com os outros. Para mais explicações, ver o texto.

O primeiro grupo, representado na coluna mais a esquerda, mostra a taxa de cura com uma infusão única. Se isso não resolvesse, era tentada uma nova infusão com fezes de um doador diferente. Esses resultados são agrupados na segunda coluna do gráfico da figura 3. A vancomicina sozinha ou associada às infusões parece realmente ser inferior. Interessante também avaliar a diversidade da microbiota dos pacientes após as infusões.

microbiota

 Fig. 4. Gráfico mostrando a variação da microbiota intestinal nos pacientes antes e após a infusão de fezes, comparando com os doadores de acordo com o índice de recíproco de Simpson. Para mais explicações, ver o texto.

A microbiota intestinal foi avaliada por análise de DNA usando microarray filogenético (Human Intestinal Tract Chip – HITChip) e a diversidade das comunidades bacterianas antes e depois da infusão de fezes usando uma escala chamada de Simpson’s Reciprocal Index of Diversity, que vai de 1 a 250, com os maiores valores indicando maior diversidade. É nítida a mudança após a infusão, ficando os pacientes com uma microbiota tão diversa quanto a dos doadores.

A conclusão é que o tal transplante de fezes funciona para o tratamento de infecções recorrentes pelo Clostridium difficile. Dito isto, podemos começar a imaginar algumas coisas. Muitas afecções atuais, que vão desde a obesidade até doenças cardíacas passando por fibromialgia, pancreatite e autismo, estão sendo atribuídas a alterações da microbiota (figura 5).

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Fig. 5 – Esquema de possiveis doenças e/ou complicações associadas a alterações da microbiota intestinal. Clique na foto para ver o original.

Será que os futuros tratamentos vão ser…? Sei lá. Melhor nem pensar… Espero que alguém imagine uma cápsula deglutível que nos traga colonizadores saudáveis e nos livre de tais procedimentos pouco aprazíveis. Seria o caso de instituirmos um tipo de microhiperneocolonialismo do bem? Sim, porque a abordagem convencional de partir pra porrada e dar “veneno” para as bactérias, dividindo-as entre boas e más, parece não surtir mais efeito (como em tudo, aliás).

*Atualizado em 23/06/2013

 

Referências

Blaser, M., & Falkow, S. (2009). What are the consequences of the disappearing human microbiota? Nature Reviews Microbiology, 7 (12), 887-894 DOI: 10.1038/nrmicro2245

van Nood, E., Vrieze, A., Nieuwdorp, M., Fuentes, S., Zoetendal, E., de Vos, W., Visser, C., Kuijper, E., Bartelsman, J., Tijssen, J., Speelman, P., Dijkgraaf, M., & Keller, J. (2013). Duodenal Infusion of Donor Feces for Recurrent New England Journal of Medicine, 368 (5), 407-415 DOI:10.1056/NEJMoa1205037

Apêndice

Infusion of Donor Feces – methodology

Donors (>60 years of age) were volunteers who were initially screened using a questionnaire addressing risk factors for potentially transmissible diseases. Donor feces were screened for parasites (including Blastocystis hominis and Dientamoeba fragilis), C. difficile, and enteropathogenic bacteria. Blood was screened for antibodies to HIV; human T-cell lymphotropic virus types 1 and 2; hepatitis A, B, and C; cytomegalovirus; Epstein–Barr virus; Treponema pallidum; Strongyloides stercoralis; and Entamoeba histolytica. A donor pool was created, and screening was repeated every 4 months. Before donation, another questionnaire was used to screen for recent illnesses.

Feces were collected by the donor on the day of infusion and immediately transported to the hospital. Feces were diluted with 500 ml of sterile saline (0.9%). This solution was stirred, and the supernatant strained and poured in a sterile bottle. Within 6 hours after collection of feces by the donor, the solution was infused through a nasoduodenal tube (2 to 3 minutes per 50 ml). The tube was removed 30 minutes after the infusion, and patients were monitored for 2 hours. For patients who had been admitted at referring hospitals, the donor-feces solution was produced at the study center and immediately transported and infused by a study physician.

Eu, Procarioto

Certa vez atendi uma paciente no ambulatório do hospital e solicitei a ela, entre outros exames, um protoparasitológico de fezes. No retorno, os resultados não mostravam nada digno de nota, exceto a presença de Entamoeba coli detectada no fatídico exame. Como se sabe, esse protozoário vive de forma amistosa no organismo humano e não é causador de doenças (diferentemente de seu primo a Entamoeba histolytica). Disse a ela, então, que estava tudo bem e que poderia continuar com a medicação atual. Ela, indignada, perguntou se eu não iria tratar “aquilo”, apontando o exame com o indicador e uma cara de nojo. Eu repeti que não era necessário. Ela insistiu: “Dr. Eu não quero isso dentro de mim. Pode tratar…”

E. coli

Escherichia coli

Mal sabia ela – e eu também – que há muito mais coisas nos intestinos – e no nosso organismo, de forma geral -, do que todo nosso conhecimento recente poderia supor. Não só amebas boazinhas, mas também uma infinidade de bactérias vivem em nós. Muitas bactérias. Aliás, mais bactérias que células constituintes (sim, alguém já fez essa conta!): em um indivíduo normal, existem aproximadamente 10 bactérias para cada célula humana. Isso significa que 90% das células presentes em nosso organismo pertencem a outro domínio biológico ou super-reino chamado procariotas. Número certamente suficiente para causar uma crise de identidade em minha “insegura” paciente e me fazer lembrar de Asimov no título do post.

Os estudos prosseguiram. A quantidade de bactérias abrigadas no corpo humano era tão supreendentemente gigantesca que os cientistas começaram a utilizar o nome microbioma ou microbiota, aludindo a uma possível interação ecológica entre os seres envolvidos e isso virou um projeto do Instituto Nacional de Saúde dos EUA em 2007. Ao estudar pessoas de vários lugares do mundo, descobriu-se que os respectivos microbiomas tinham diferenças significativas, tanto de pessoa para pessoa, como entre pessoas nas diversas regiões do globo. Isso lembrou os estudos “ecogenômicos” iniciados no final da década de 90. Ecogenômica, Genômica Ambiental ou Metagenômica foram nomes dados para o sequenciamento genético e identificação de microrganismos em seu habitat natural, permitindo a identificação de várias espécies que não eram vistas nas culturas clonais realizadas até então.

A presença de um “meta-organismo” geneticamente distinto dentro de nosso organismo começou a gerar perguntas sobre como seria a interação, leia-se troca de informação, entre os dois sistemas genéticos bastante diferentes e passamos a ser considerados seres metagenômicos (ou superorganismos, como preferem alguns autores) no sentido ecológico mesmo do conceito. Mas, se a “distinção galtoniana entre a genética e o meio ambiente como mecanismos geradores de nossas características fenotípicas é considerada hoje uma dicotomia simplista e (…) o meio ambiente e os genes podem interagir de múltiplas maneiras diferentes desafiando a noção de que possam agir indepententemente um do outro”, como afirma Joseph Loscalzo, editorialista do New England Journal, então, a presença desse riquíssimo material genético interagindo com o nosso deve provocar algum tipo resposta. Para descrever esse novo modo de interação, o modelo de relação hospedeiro/parasita já não parece ser suficiente porque as mesmas bactérias que nos ajudam em determinados momentos, podem nos prejudicar em outros.

Surge então, um novo mecanismo fisiopatológico. Algo com o qual não nos tínhamos defrontado antes e que, para além de quaisquer dualismos, reside na interação entre duas “forças” viventes. Antes de vencer o inimigo é preciso, agora mais do que nunca, aprender a conviver com ele.

 

Pflughoeft, K., & Versalovic, J. (2012). Human Microbiome in Health and Disease Annual Review of Pathology: Mechanisms of Disease, 7 (1), 99-122 DOI: 10.1146/annurev-pathol-011811-132421

Loscalzo, J. (2013). Gut Microbiota, the Genome, and Diet in Atherogenesis New England Journal of Medicine, 368 (17), 1647-1649 DOI: 10.1056/NEJMe1302154

Recomendo os textos do Meio de Cultura sobre o assunto. Superorganismos 1, 2 e 3. E o especial da Nature (em inglês, para assinantes).

Agradecimentos ao Luiz Bento do Discutindo Ecologia pela revisão do manuscrito.