O Significado de uma Morte

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Ziad Abu Ein [AFP/Getty Images]

Ziad Abu Ein, 55 anos, oficial sênior da Autoridade Palestina, morreu no dia 10 de Dezembro após confronto com soldados israelenses em Turmusiya, próximo a cidade de Ramallah distante aproximadamente 20 km de Jerusalém, no território ocupado da Cisjordânia. A Autoridade Palestina insiste na hipótese de assassinato civil tendo em vista cenas de violência durante o conflito. Moshe Yaalon, ministro da Defesa de Israel, lamentou o ocorrido e propôs uma investigação conjunta. A Autoridade Palestina solicitou uma autópsia de Abu Ein com objetivo de esclarecer sua morte e concordou com a participação de médicos legistas israelenses indicados pelo ministério da Saúde de Jerusalém. Obviamente, os médicos divergiram sobre a causa mortis de Abu Ein.

Para os palestinos, cujo laudo foi divulgado pelo próprio Hussein Al Sheikh (um tipo de chefe da Casa Civil palestina), a morte foi causada por asfixia, provável broncoaspiração de conteúdo gástrico causada por vômitos devida a aspiração do gás lacrimogêneo, com o agravante de traumatismo torácico (Abu Ein teria sido agredido no tórax). Para Chen Kugel, chefe do Instituto Forense de Abu Kabir em Tel Aviv, e Mia Forman, patologistas israelenses, a morte foi causada por “bloqueio do fluxo sanguíneo no tronco da artéria coronária causado por uma hemorragia no interior de uma placa aterosclerótica, causada por estresse”. Ou seja, um infarto agudo do miocárdio. Declarações oficiais não descartaram o papel de um “semi-estrangulamento” no processo, mas subentende-se que a possível realização de procedimentos de ressuscitação, como a massagem cardíaca, poderiam ser responsáveis pela hemorragia cervical e torácica encontradas durante a autópsia. Afirmam que o coração de Abu Ein estava em condições muito ruins e que ele apresentava várias obstruções coronarianas bem como cicatrizes no músculo cardíaco sugestivas de ataques isquêmicos prévios.

Suponhamos, apenas para levar a cabo este argumento, que os médicos, israelenses e jordanianos, tenham sido treinados de acordo com os preceitos médico-científicos de busca pela verdade factual e que não sofressem nenhum tipo de pressão política por parte de seus “superiores”, qual seria a chance de chegarem a um acordo sobre o laudo necroscópico? Seria possível que pessoas com visões de mundo tão diferentes e antagônicas pudessem colocar a ciência acima de suas convicções e admitir uma hipótese contrária a que inicialmente consideravam ser a correta? Não estaria o significado da morte de Ziad Abu Ein já dado – por ambos os lados – não importando os diversos achados fornecidos pela autópsia? Tal raciocínio nos leva a questionar qual a capacidade da ciência médica em atribuir significados aos padecimentos humanos. A autópsia e sua racionalidade fisiopatológica baseada nas relações de causa-efeito que tanto progresso trouxeram à medicina seriam capazes de “significar” o desaparecimento precoce de um homem público? De qualquer homem ou mulher? O advento da AIDS e a recente epidemia do Ebola têm algo a nos dizer sobre isso. A pergunta é tão relevante que merece uma generalização transcendental…

Seria a ciência, médica ou não, capaz de atribuir significados a totalidades humanas em suas derradeiras e trágicas possibilidades que não são outras senão aquelas que as defrontam com sua própria extinção? Se, como arguiriam alguns, a atribuição de significados não é papel da ciência, por que insistimos em solicitá-los à ela? Ou ainda, numa tentativa desesperada, eu perguntaria que tipo de “ciência” então poderia nos socorrer de forma a explicar o fosso movediço do universo dos significados atribuídos e, principalmente, nos livrar da arbitrariedade e do dogma?

Não vejo a solicitação da autópsia como um erro; pelo contrário. O que pode não ser justo talvez seja a desigualdade de forças entre o discurso científico e a construção de um significado que, no caso da morte de uma pessoa pública, assume sempre proporções perigosamente desmesuradas. Para Israel, a morte do ativista foi uma “fatalidade”. Para os palestinos, seu “assassinato” o transforma em mártir. Compreender o significado que o outro atribui é visualizar um mesmo horizonte. “Compreender é compreender-se” e isso é o que falta ali. A ciência e a medicina não têm a ver com isso. Sua importância é bem maior do que torná-las meros instrumentos de manipulação de significados.

Uma Redenção para a Psicanálise?

reinaldo_caricatura_freudRenato Mezan [1] conta que foi Freud quem escreveu o verbete “psicanálise” para a Enciclopédia Britânica em 1923. Lá, defendeu que a psicanálise é o nome que se dá a 3 coisas diferentes: Em primeiro lugar, é um método para investigação (Forschen) de fenômenos não acessíveis por outros métodos seculares (excluindo então as possibilidades – plausíveis – religiosas e sobrenaturais de abordagem dos problemas mentais). É, também, o conhecimento obtido a partir dessa investigação e, por fim, é a aplicação desse conhecimento a situações clínicas (Heilen). A aplicação das teorias freudianas em situações não-clínicas é tão problemática quanto, por exemplo, a aplicação das teorias darwinianas a contextos não-relacionados à biologia (ver este artigo em pdf) mas, sendo áreas de integração, fronteiras de saberes, tais incursões sempre acabam por promover novos insights e permitir novos estudos. Nas situações clínicas, englobadas nas duas primeiras definições, a psicanálise realmente persiste como prática e parece ter algo a dizer sobre os tais “fenômenos que não são acessíveis por outros métodos seculares”.

Recentemente, uma metanálise [2] (estudo onde dados de vários estudos são reunidos e submetidos a um tratamento estatístico) de 14 artigos totalizando 603 pacientes, aponta para a conclusão, algo inédita, de que a psicanálise consegue de fato mudanças mensuráveis em pacientes com distúrbios psiquiátricos complexos, mas salienta que a falta de grupos-controle se constitui em séria limitação à interpretação dos resultados. Outros estudos, com metodologia não tão apurada como este, já tinham indicado que a psicanálise, aquela mesma baseada na tríade edipiana ou na conflituação interpessoal, no caso dos pós-clássicos, na qual o terapeuta fica numa poltrona ATRÁS do divã em que o paciente está deitado, quem diria, parece ter seus efeitos demonstrados “cientificamente”.

Sempre pensei existir um certo exagero em torno da psicanálise. Sua ligação com a filosofia sempre me fascinou mas terminou por criar uma imagem algo estilhaçada dela, o que, obviamente, não exclui minha incompetência em compreendê-la(s). Fiz alguns cursos, aprendi coisas interessantes. Tenho vários pacientes e amigos psicanalistas, alguns até bem conhecidos. Questionar a eficácia da psicanálise nas suas mais variadas vertentes, para eles, é como questionar o oxigênio que respiramos. Tal é o dilema que um médico, nascido e criado em ambientes “baseados em evidência”, se defronta e que, não fosse eu um ranheta auto-referente em questões que envolvem a prática médica, faria, como outros, ouvidos moucos e tocaria a vida já complexa e trabalhosa o suficiente. Mas, a vida dá voltas…

Foi então que o Fredrik Svenaeus me apresentou o Heidegger. O Heidegger, à sua maneira, exigiu que eu lesse o Ricoeur, um de seus mais brilhantes discípulos. E lendo o Ricoeur conheci o Roy Schafer que teve a mesma ideia que eu tive, só que a publicou em 1976 (isso sempre acontece comigo!): poderia toda a psicanálise ser subsumida ao fenômeno da linguagem? Posteriormente, Schafer escreveu um artigo resumido de suas ideias e que discuto brevemente abaixo [3].

No prefácio do artigo, Schafer começa dizendo que Freud realmente queria que a psicanálise tivesse a melhor conotação científica possível para a época na qual foi criada (preço alto que ele paga até hoje), mas que essa conotação pode ter uma leitura diferente. De acordo com essa leitura, Freud criou “apenas” um sistema complexo de regras para comunicação entre duas pessoas, um terapeuta e seu paciente (ou analisando, argh!). Assim, prossegue ele “psicanalistas teóricos de diferentes credos (isso!) têm empregado princípios interpretativos ou códigos diferentes, pode-se dizer até, diferentes estruturas narrativas para desenvolver suas formas de fazer análise e falar sobre ela” (grifos meus). Essas estruturas narrativas são importantes não porque analisam dados, tal como o projeto inicial de Freud, mas porque nos dizem o que deve ou não ser considerado dado na história que está sendo construída. Isso é importante porque não há interpretações definitivas. Há interpretações que fazem sentido; outras que não. O dados não são encontrados, são construídos ou constituídos ou, até mesmo, buscados. A partir de então, o autor envereda para exemplos e mais exemplos no intuito de demonstrar sua tese.

Ricoeur [4], por sua vez, vai citar Schafer no contexto de uma possível estrutura pré-narrativa da experiência. O problema de Ricoeur consiste, grosso modo, especificamente nessa seção do seu monumental trabalho, em fundamentar o mundo das experiências – que ele apelida de mímesis I – com um certo “enredamento pré-narrativo”; com o que ele chama de “história (ainda) não contada” e ele usa o exemplo da psicanálise para ilustrar tal conceito. Nesse ponto, vale a leitura do original:

O paciente que fala com o psicanalista lhe traz fragmentos de histórias vividas, sonhos, “cenas primitivas”, episódios conflituosos; pode-se perfeitamente dizer sobre as sessões de análise que elas têm por finalidade e por efeito que o analisando tire desses fragmentos de história uma narrativa que seria ao mesmo tempo mais insuportável e mais inteligível. Roy Schafer ensinou-nos até a considerar o conjunto das teorias metapsicológicas de Freud como um sistema de regras para recontar as histórias de vida e elevá-las à categoria de histórias de caso. Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica que a história de uma vida procede de histórias não contadas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia assumir para si e ter por constitutivas de sua identidade pessoal. É a busca dessa identidade pessoal que garante a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história expressa pela qual nos responsabilizamos.

Isso pode ser entendido como uma redenção. Simplifica escandalosamente o processo psicanalítico e, de quebra, além de explicar seus efeitos benéficos, abre uma avenida investigativa que é a via dos efeitos da linguagem na constituição da identidade do indivíduo e de suas patologias. Nesse sentido, pouco importa quais códigos se utilize para narrar. O psicanalista oferece, de acordo com seu credo, um vocabulário a seu paciente. Dá certo quando o paciente incorpora (torna corporal) essa nova linguagem e a utiliza para recontar sua(s) história(s). Esse movimento de encadeamento entre fatos aparentemente não relacionados se torna inteligível por meio da narrativa e por isso, fica muito mais difícil de suportar, podendo gerar catarse e suscitando, por que não?, a cura. Ricoeur, ainda avança profundamente nessa espiral de contar e recontar; interpretar e re-interpretar, mas a nós basta a ideia inicial.

Se nossa identidade, ou ao menos o que nós entendemos por nós-mesmos, é construída tendo como base o mundo das experiências, seu impacto e suas interpretações, ao fornecer um código de símbolos, mitologias, modelos, enfim, um vocabulário ao paciente, o psicanalista facilita a recontagem dessa história e a reconstrução e consciência da identidade pelo analisando. Não precisamos mais escarafunchar cérebros na busca anatômica do ID ou do EGO. Eles estão, junto com todos os outros componentes do aparelho psíquico, “encriptados” na nossa linguagem.

 

[1] Renato Mezan. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. J. Psicanal. [online]. 2006, vol.39, n.70 pp. 227-241 . Disponível aqui. ISSN 0103-5835.

ResearchBlogging.org[2] de Maat S, de Jonghe F, de Kraker R, Leichsenring F, Abbass A, Luyten P, Barber JP, Rien Van, & Dekker J (2013). The current state of the empirical evidence for psychoanalysis: a meta-analytic approach. Harvard review of psychiatry, 21 (3), 107-37 PMID: 23660968

[3] Roy Schafer (1980). Narration in the Psychoanalytic Dialogue. Critical Inquiry, 7 (1), 29-53 DOI: 10.1086/448087

[4] Paul Ricoeur (2010). Tempo e Narrativa. Vol 1, pág 128. Martins Fontes – São Paulo. Tradução Cláudia Berliner.

Cartum do baiano Reinaldo Gonzaga. Tirada daqui.

Medicina: A Última Flor?

A última flor

A medicina, da forma como a conhecemos no Brasil, parece mesmo estar extinguindo-se num longo processo que tem acelerado nos últimos anos. Ao menos essa parece ser a intenção do governo federal a se julgar o conjunto de ações que não só este como seus antecessores vêm tomando já há algumas décadas. O último ato dessa peça foi o manifesto irado do CFM sobre a quebra de um possível pacto realizado com a base governista quanto ao entendimento relativo à aprovação da Medida Provisória 621/2013 da Lei 12.871/13 (Lei do Mais Médicos). O CFM envereda por uma argumentação política que não é bem sua praia e demonstra até um certo desespero pueril ao tecer críticas ao governo que fogem do âmbito da medicina: como quando denuncia “nomeações para altos cargos do Poder Judiciário sem observar conflitos de natureza ética” ou quando conclui que as obras de transposição das águas do rio São Francisco são caras e ineficazes. Não que o CFM não possa criticar o que quiser no governo, mas o contexto me leva a interpretar que tais críticas são uma reação a esse possível “movimento de extinção” da medicina como ele, CFM, entende que ela deva ser. Se a possível desfiguração da medicina vai ser motivo para comemorações ou luto dependerá do ponto de vista pelo qual se aborda o problema. Não tenho dúvida de que muitos comemorariam o fim da medicina da forma como é hoje. Outros lamentariam mudanças em algo que consideram muito bom. A visão ideológica de um aparelho biopolítico como é a medicina provoca uma polarização contraproducente ao debate. Abaixo, seguem algumas considerações fruto de longas discussões com colegas e pacientes.

O governo federal parece ter entendido o problema da saúde no país sob uma lógica “RH”, em detrimento, por exemplo, a um choque de gestão, ao foco em produtividade, otimização de recursos, isso para circundar o problema do financiamento dos serviços, talvez o principal deles. Ou seja, é preferível dizer que os principais agentes de um sistema de saúde, no caso (e aqui não há como fugir dessa responsabilidade e ônus) os médicos, sua qualidade (ou falta de) ou seu número insuficiente, são o grande entrave a uma boa assistência à população e não a falta de recursos, gestão, profissionais etc, ao menos de acordo com o que nos é dado a perceber pelas atitudes tomadas pelos técnicos do governo. Ações orquestradas nesse sentido vêm ocorrendo desde o governo FHC, por ocasião da aprovacão da chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), quando o então ministro da educação Paulo Renato de Souza, autorizou a abertura de várias escolas de medicina à revelia de pareceres de entidades médicas e de ferozes críticas do principal partido de oposição da época – o PT – com a argumentação, sob meu ponto de vista correta, de que estava havendo um “sucateamento” do ensino público em detrimento do ensino privado. Com o governo Lula, como é sabido, o processo de abertura de novos cursos médicos se intensificou. Segundo nota da Associação Médica Brasileira publicada n’ O Globo Online de fevereiro de 2007, “o ministro Paulo Renato, em oito anos, permitiu a abertura de 45 faculdades de medicina (0,4 faculdade/mês), 27 particulares. Em apenas um ano, Cristovam Buarque autorizou o funcionamento de sete faculdades (0,5 faculdade/mês), sendo seis privadas. Tarso Genro permitiu a abertura de 16 em 18 meses (0,8 faculdade/mês), 15 privadas. E não ficando atrás, o atual ministro Fernando Haddad, em 18 meses, autorizou 18 novas escolas (uma faculdade/mês), 16 privadas”. São números impressionantes.

Assim, no período relativamente curto de 16 anos, o Brasil teve 86 novas faculdades de medicina iniciando suas atividades. Com isso, os técnicos do governo imaginaram que resolveriam o problema do número de profissionais que, de fato, deixavam grandes vazios assistenciais pelo vasto território nacional. Mas a coisa parece não ter caminhado a contento. A ausência de médicos nos ermos do país, mesmo com a oferta de salários razoáveis, se mantinha e a abertura de novos cursos médicos só fez aumentar a concentração desses profissionais nos grandes centros, agravando o problema. Mas, qual seria a razão disso? O “remédio” aplicado aos cursos de Direito – ampliar largamente a base de alunos e jogar o gargalo da liberação de profissionais para frente, por intermédio de uma prova de título, deixando com que a “mão invisível” do mercado assuma o controle – parecia não funcionar com os cursos de Medicina. Por que?

A resposta a essa questão está longe de ser simples, mas arrisquei uma aqui no EM: as novas faculdades de medicina que foram abertas mantiveram-se dentro de um modelo de ensino orientado para abarcar as conquistas da revolução na ciência biomédica. “Ao atingir seus objetivos, [tal modelo] acabou por definir a especialização altamente tecnológica como a principal meta para medicina clínica”. A conclusão brilhante é que não adianta formar mais médicos, precisamos de médicos diferentes. Assome-se o fato de que alguns serviços públicos muito bons – o exemplo clássico utilizado aqui é o programa brasileiro de tuberculose -, estavam tendo problemas para administração das drogas em função da ausência de médicos e da proibição de outros agentes da saúde em “prescrever” tais medicamentos visto que a Lei do Ato Médico estava em trâmite no Congresso. Então, corolário disso, temos os vetos à Lei do Ato Médico e o programa “Mais Médicos” como resposta governamental a uma necessidade legítima da população por assistência à saúde mas, junto com eles, uma sensação de medidas algo populistas e/ou eleitoreiras tomadas às pressas, por um lado, e a ideia passada à população, não sem o auxílio valiosíssimo de catastróficas declarações de profissionais e de entidades médicas de todo país, de que os médicos, de forma geral, são todos um bando de corporativistas querendo cuidar de seu quinhão na sociedade, não se importando com a saúde do povo em geral, por outro. Ambas conclusões tomadas sob o calor da batalha.

Mas há outras questões. Essa filosofia de “departamento de recursos humanos” no trato da Saúde, temo, pode não funcionar a longo prazo. Pior, há uma chance de desmantelarmos no país uma medicina que tem lá suas glórias e é reconhecida por sua conquistas ao redor do planeta. Se nosso modelo hopkinsniano rockefelleriano atual não dá conta de atender a população, que se possa criar um alternativo que dê, mas não seria preciso destruir um para construir o outro. Talvez, a saída esteja na criação de um curso como o Nurse Practitioner dos EUA, Canadá e Austrália: um profissional que pode prescrever e atuar como agente da saúde em várias situações, muito mais útil, barato e acessível. Talvez passe também pelo fechamento de cursos médicos sem condições de funcionamento pleno dentro do modelo descrito acima (e há vários nessa situação), ou pela sua re-estruturação dentro desse novo contexto social, com sua substituição por algo equivalente ao nurse practitioner, ou como queira se chamar esse “técnico em medicina”.

O que não mais se admite são decisões unilaterais. O que não se pode admitir é que se excluam os vários segmentos da sociedade da discussão que não diz respeito apenas ao governo e seus programas de um lado, e aos médicos e o CFM, de outro. “Que tipo de medicina queremos?” – é uma pergunta importante. “Que tipo de medicina precisamos?” – é outra completamente diferente mas que também demanda uma resposta pronta e sincera. De todos.

O Futebol e a Tragédia das Mãos

Maos2

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.”

Nélson Rodrigues (O Divino Delinquente) 

Não há, hoje, quem duvide de que o esporte que convencionamos chamar futebol é o mais popular do mundo. Explicações para isso não faltam. Sua simplicidade (da qual particularmente discordarei); sua capacidade de transformar portadores de um físico breve em ídolos mundiais milionários; a possibilidade de praticá-lo com equipamentos de baixo custo ou mesmo quase nenhum; o fato de que nem sempre a melhor equipe vence a partida, fazendo com que fatores extra-campo, e.g. torcida, sejam fundamentais para uma vitória são, entre outras tantas, algumas das principais teorias explanatórias aventadas para justificar porque o futebol é praticado nos mais longínquos rincões do planeta. Se tantas há é porque nenhuma dá conta sozinha de explicar o fenômeno futebolístico, fato que sempre acaba encorajando incautos a lançarem suas próprias teorias. Segue, com o perdão da audácia, então, a minha.

Comecemos pelas palavras e pelas coisas, que são sempre um bom começo. O futebol que a tantos encanta hoje nasceu, claro, na Inglaterra, mais precisamente em 1863, batizado com dois nomes: association football. E aqui já nos defrontamos com nosso primeiro problema. Como é notoriamente sabido, adjetivos em inglês vêm antes dos substantivos a quem qualificam. Substantivos, por sua vez, podem, na língua bretã, ser adjetivados, e muitas vezes só o que nos resta para distinguir estes daqueles é sua posição na frase. Se digo, então, football association, a tradução correta para o português seria “associação de futebol” (ou “associação futebolística”, para adjetivar de vez o nome “futebol”). Mas, se digo association football, a tradução é “futebol da associação” (ou o horrível “futebol associativo”, ou mesmo “associado”, adjetivando o nome “associação”). Se isso é uma trivialidade para os anglófonos, tal particularidade linguística passou algo despercebida para nós, bravateiros de sempre do mundo da bola, de tal modo que aqui dizemos apenas “futebol”. Mas o nome completo do “esporte nacional” guarda consigo a certidão misteriosa de sua interessante origem e que não é de pronto visualizada na epítome brasileira. Tomemos como exemplo do que quero mostrar o nome da entidade maior da organização do futebol mundial: a famigerada FIFA. FIFA, cuja sigla vem do francês Fédération Internationale de Football Association (um barbarismo quase ininteligível, como são mesmo as coisas da FIFA), na língua de Shakespeare seria International Federation of Association Football, veja só (e aqui começamos a ver algo): a FIFA é, portanto, agora em bom português, a federação internacional do futebol da associação. O que nos leva à pergunta: com efeito, mas que diabos de “futebol da associação” é esse?

A Associação de Futebol

A Inglaterra da rainha Vitória (1837 -1901) vivia a Pax Britannica decorrente de seu sucesso econômico, estabilidade política e progresso científico-cultural sem precedentes. Esse clima de virtude quase-helênica constituiu estímulo necessário e suficiente para a criação de inúmeros jogos, coletivos e individuais, com objetivos educacionais, motivacionais e de entretenimento. Havia nessa época dezenas de jogos entre duas equipes, com número variável de jogadores, que levavam o nome de football, prática antiquíssima na Ilha e em geral caracterizados pela disputa violenta por uma bola, à época confeccionada com bexiga de porco. Normalmente, tratava-se de levar a bola com auxílio de qualquer parte do corpo, por meio de passes ou dribles, até um certo local no território do inimigo e, assim, marcar algum tipo de ponto. Todavia, por que chamar de football um jogo no qual o balão podia ser conduzido tanto com as extremidades inferiores quanto com as superiores? Para diferenciá-lo, ora. Os pés também eram permitidos, e nisso se constituía a novidade. O “normal” seria conduzir a bola com as mãos, e liberar os pés para correr. O fato é que tais jogos de football ficaram muito populares entre as escolas tradicionais inglesas e também entre operários das fábricas que, por sua vez, terminaram por fundar cada qual suas respectivas ligas e clubes. Entretanto, cada escola, bem como cada liga operária, tinha suas próprias regras, e as disputadíssimas “peladas” nas faculdades ou fábricas – com jogadores provenientes de diferentes localidades – geravam discussões intermináveis sobre o andamento das partidas, além de inviabilizar qualquer tipo de torneio. Foi assim que, em outubro de 1863, na Taverna dos Freemasons, em Covent Garden, Londres, fundou-se a Football Association – a Associação de Futebol – com o objetivo de unificar as regras do esporte tendo em conta a forma como o Trinity College de Cambridge, jogava seu football e que, segundo alguns, captava o verdadeiro “espírito do jogo”.

O problema é que não houve um consenso (vejam que discussões e mesas redondas parecem fazer parte do DNA do esporte). Dentre os pontos de discordância, os principais foram as proibições do uso das mãos para conduzir a bola e da possibilidade de impedir a progressão do adversário chutando-o nas “canelas”, sinalizando para uma mudança mais radical na essência do jogo. Mesmo com algumas desistências, as regras do “futebol da Associação de Futebol” foram publicadas em dezembro de 1863 e logo se disseminaram pela Grande Londres. Seus praticantes diziam jogar o Assoc (pronunciado como ei-soc) football, que logo transformou-se em soc football e, finalmente, foi apelidado de soccer. Soccers eram também os jogadores do soccer, o que os diferenciava dos já conhecidos ruggers, alcunha dos que praticavam o Rugby football, provavelmente criado pela escola da cidade de mesmo nome, no qual a bola podia, claro, ser levada com as mãos por todos os jogadores, permitia-se o hacking (o ataque mais agressivo ao portador da pelota), além de contar com regras de off-side (impedimento) mais rígidas. O chute era (e é) permitido e, por isso, ele é também considerado um “tipo” de futebol.

O rugby seguiu seu próprio caminho, tendo que lidar igualmente com várias divergências relativas às regras, com a formação de ligas independentes e que, unificadas em 1871, permitiram a fundação da Rugby Football Union. Nas regras do “futebol da Associação” persistiam ainda menções sobre jogadas que, apesar de já não existirem, permanecem no rugby, no futebol americano e no futebol australiano, como o fair-catch (que, devido a modificações posteriores, veio introduzir o cabeceio liberando, assim, todas as partes do corpo como potencialmente utilizáveis para o jogo, exceto os membros superiores). Com a unificação, jogos entre várias equipes de diferentes localidades puderam ser disputados e as regras foram sendo aperfeiçoadas. O uso das mãos acabou por ficar restrito a apenas um jogador de cada equipe, o goalkeeper, transformando o “futebol da Associação” no único esporte coletivo praticado pela Humanidade no qual elas, as mãos, têm uma importância secundária, para dizer o menos.

As Mãos

De fato, a mão humana parece desempenhar um papel preponderante nos estudos sobre nossa evolução. A relação que sua incrível anatomia e seu funcionamento preciso têm com a confecção de instrumentos, criação de tecnologia e aquisição de vantagens evolutivas foi demonstrada por vários autores. Argumenta-se ainda hoje sobre o que teria vindo primeiro, se a potencialidade das mãos ou a necessidade dos utensílios, mas a nós interessa o fato de que o grande contingente manipulável de nosso mundo atual pode acabar mesmo por nos constituir como seres humanos [1]. Quem lida com um smartphone, martela um teclado de computador, dirige um carro, vira as páginas de um livro, toca qualquer instrumento musical ou simplesmente faz uma carícia no rosto da pessoa amada entende o que estou querendo dizer. As mãos, bem como seus complementos e/ou substitutos, que chamamos de instrumentos ou ferramentas, ocupam um grande espaço do que entendemos por humano. Sózinhas, representam um quarto do córtex sensitivo e um terço do córtex motor de nossa “massa encefálica”. Só abstraímos esse nosso modo “manual” de ser em pouquíssimas e raras situações. Uma delas é o futebol.

O futebol, esse mesmo, o association football, extirpou, em meados do século XIX, o “conceito de mão humana” do jogo. Ele é, portanto, anti-mão, já que elas foram alijadas “filosoficamente” daquele que viria a se tornar o maior de todos os jogos. No futebol, as mãos são estraga-prazeres. Tocar a bola com elas é passível de punição, seja com a marcação de uma falta ou mesmo de uma penalidade máxima, seja com o desprazer do gol não concretizado, gozo interrompido pelas mãos do guarda-metas que, assim, nos castiga. (A reposição da bola ao campo de jogo por meio do arremesso lateral é realizada com as duas mãos e segue regras muito rígidas de execução o que a torna um movimento bastante anti-natural). A ausência das mãos em qualquer ato humano é a negação de uma nossa própria essência. As mãos humanas são como a visão da águia ou o faro do cão. Impeça-os de usá-las e o que veremos é um misto de desorientação e impotência. Essa talvez seja a grande razão do sucesso do futebol pelo mundo. Ele já é em si uma superação.

Conduzir a bola com os pés e correr ao mesmo tempo não é prático, nem simples, nem natural. A conclusão é que o futebol é trágico e sua tragicidade consiste exatamente em criar uma guerra na qual se proíbe o uso de nossa melhor arma, mas que, apesar disso – agora já com requintes de crueldade -, permanece bem ali, muito próxima, tentadoramente à-mão. Sua anti-naturalidade atávica desencadeia o desejo pelo poder proibido das mãos e permite apenas uma saída satisfatória: sua conversão em superação estética. Mas, não seria essa a velha e já tão conhecida fórmula que volta-e-meia nos ajuda a driblar um dos nossos mais antigos e terríveis adversários? Talvez seja mesmo essa a razão do júbilo e do gozo ao vermos que nossa consciência da finitude, como um zagueiro tosco ou volante brucutu, cai vítima de uma bola entre as pernas, um chapéu ou desconcerto humilhante qualquer impingido pelo craque, que assim nos redime e eterniza.

Para delírio da torcida.

 

[1] Refiro-me aqui aos conceitos heideggerianos de Vorhandenheit, estar-aí, e Zuhandenheit, à-mão, cuja discussão o filósofo alemão usa não só para compreender a temporalidade como para ilustrar seu entendimento da questão do Ser, em Ser e Tempo.

A Fundação Rockefeller e o Modelo Filantrópico de Medicina

FMUSP contrução

Construção da sede da Faculdade de Medicina – Foto de 31 de Julho de 1929. Cortesia do Acervo da FMUSP

Parece ter havido um momento bastante peculiar e relativamente curto, logo no início do século XX, no qual as práticas de saúde, medicina incluso, sofreram uma modificação estrutural de proporções gigantescas. A formação médica, que era baseada na transmissão de conhecimentos do prático a seus aprendizes, muda repentinamente seu eixo em direção às grandes instituições de ensino médico; o estudo anedótico de casos clínicos dá lugar, sucessivamente, à estatística vital, à epidemiologia clínica e, claro, posteriormente à medicina baseada em evidências; Galeno sai, finalmente, de cena e entra Claude Bernard; o francês e o alemão, como línguas científicas, cedem espaço ao inglês. A maleta do médico é progressivamente substituída pelo hospital; tudo isso em não mais que um par de décadas.

Muito tem sido escrito sobre qual o papel desempenhado pelas fundações filantrópicas e, especificamente, a Fundação Rockefeller (FR), nessa revolução. Ele não foi pequeno. Há centenas de livros, documentários, artigos e uma simples busca na internet revela uma enorme quantidade de informações confiáveis em meio a outras cuja veracidade é difícil comprovar. A atuação da FR, bem como de outras entidades filantrópicas, na área educacional em geral e no ensino médico em particular, além de sua influência na saúde pública, agricultura, e outras tantas áreas nas quais a ciência estava em pleno desenvolvimento na época, tem sido tanto objeto de críticas violentas, como defendida com fervor e devoção até hoje. Mas, uma questão permeia incomodamente todo esse corpus monumental de ideias: Por que os maiores de todos os filantropistas, os Rockefellers, Senior e Júnior, orientados pelo reverendo batista Frederick Taylor Gates, escolheram a medicina? Tal decisão não parece ter sido tomada de modo súbito e consciente desde o início. A questão do saneamento básico era premente naquela época: esgotos a céu aberto, pobreza, água não tratada, epidemias de cólera, febre tifóide, ancilostomíase, febre amarela e malária dizimavam a população e diminuíam drasticamente a produtividade dos trabalhadores, em especial no Sul dos Estados Unidos. Com esse quadro caótico, nada mais natural que os incentivos às campanhas de erradicação de pragas, à pesquisa de novas técnicas agrícolas e ao fomento da ciência biomédica, bem como a construção de escolas e outros tantos projetos desenvolvidos por Gates e financiados pelos Rockefellers. Inicialmente com a fundação do Rockefeller Institute for Medical Research (hoje a Rockefeller University) em 1901, e depois, por meio do General Education Board a partir de 1903, a predileção quase obsessiva pelo ensino médico só viria manifestar-se com todas as suas características após o estabelecimento da Fundação Rockefeller em 1913 (perfazendo seu centenário em 2013, portanto).

Duas linhas de pensamento orientavam as práticas médicas na segunda metade do século XIX. A medicina social era, como vimos, um campo em pleno desenvolvimento e nomes como Villermé, Buchez e Guérin na França; Neumann, Virchow, e Leubuscher na Alemanha, estudavam as causas sociais e ocupacionais das doenças. Rudolf Virchow (1821-1902), um dos pais da patologia celular moderna e um dos médicos mais importantes do século XX, defendia que a medicina “deveria intervir na vida política e social”.  Por outro lado, desde Pasteur e Koch, proponentes da teoria infecciosa das doenças, uma visão algo mais “conservadora” começou a dominar a pesquisa médica já que a identificação de agentes responsáveis por toda a constelação clínica de sinais e sintomas que uma doença específica causa, encorajou a ideia de que terapias específicas tratariam doenças específicas. A descoberta de tais terapias deveria ter precedência sobre fatores econômicos e sociais. Não por acaso, Virchow se envolveu em embates sobre o assunto com Koch e Semmelweis, este último, o descobridor de que a causa da febre puerperal era a falta de higiene das mãos dos médicos. Quando da apresentação de Koch na Sociedade de Fisiologia de Berlim em 1882 sobre a descoberta de que um bacilo causava a tuberculose, Virchow, cuja visão podia ser classificada como “anticontagionista”, se opôs veementemente. Para Virchow, o fato de carregarmos bactérias em nosso organismo era sinal de que tais “micróbios” só causariam doenças se, por algum motivo, o hospedeiro se enfraquecesse. O anticontagionismo teimoso de Virchow foi uma reação à passagem para segundo plano de sua “teoria social das doenças”. Ambos médicos receberam verbas de seu país, montaram laboratórios influentes, receberam fellows e foram pesquisadores reconhecidos mundialmente, mas a visão “científica” de Koch e Pasteur era a mais adequada a quem tinha a “caneta na mão”. Para Gates, a miséria era uma questão técnica, não social. Como escreveu Brown [1]

Quando Gates, [Rockefeller] Júnior e outros homens da Fundação Rockefeller decidiram estabelecer a primeira escola de saúde pública dos EUA, eles selecionaram o Dr. Welch e a Johns Hopkins como seus veículos sabendo que a nova escola deveria ter forte ênfase nas ciências básicas e não divagar em questões sociais.

A resposta à pergunta “por que a medicina?” pode servir de base para entendermos a medicina que é praticada em grande parte dos países ocidentais e também no Brasil atualmente. Quando John D. Rockefeller o chamou para coordenar as ações filantrópicas do que viria a se tornar a Fundação Rockefeller em 1890, Gates comprou um exemplar do livro do canadense William Osler da Johns Hopkins (que, aliás, estagiou com Virchow em 1873), um dos médicos mais influentes da época [2]. Gates ficou fissurado pelo livro. Em uma série de memoranda enviadas ao seu “chefe”, ele defende que o desejo por saúde é uma força unificadora “cujos valores permeiam tanto o palácio do rico quanto a cabana do pobre. A medicina é um serviço que penetra todos os lugares”. Portanto, “os valores da pesquisa médica são os valores mais universais da Terra e eles são os mais importantes e individuais de cada ser vivente”[3]. Com a medicina, o reverendo Gates queria converter pagãos e angariar mercados de matérias-primas e viu nela um quebra-nozes cultural, capaz de transpor as barreiras que exércitos não poderiam transpor. A medicina tecno-científica seria o substituto secular do proselitismo cristão com as vantagens de poder exibir resultados incontestáveis na melhoria da vida das pessoas. A FR injetou 45 milhões de dólares na China para modificar a Peking Union Medical College e quantidade similar nas Filipinas, Tailândia, México, entre outros tantos países. Para o nosso país, valem as palavras da professora Maria Gabriela Marinho [4], maior estudiosa do assunto:

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, mais particularmente em São Paulo, o ensino e a pesquisa na área biomédica foram dimensões privilegiadas desse apoio institucional cujas origens podem ser identificadas em 1916, quando estabeleceram-se os primeiros contatos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Desses contatos iniciais resultaram dois grandes acordos, envolvendo recursos específicos e de grande monta: o primeiro, com vigência entre 1918 e 1925, destinado à criação do Instituto de Hygiene e para o qual foram enviados dois pesquisadores norte-americanos, Samuel Taylor Darling e Wilson Smillie. Como desdobramento deste mesmo acordo, foi criado ainda o Instituto de Pathologia, onde atuaram, entre 1922 e 1925, dois outros pesquisadores estrangeiros: o canadense Oskar Klotz e o norte-americano Richard Archibald Lambert. Especificamente no campo da Higiene, o processo traduziu-se pela criação, sucessivamente, da Cadeira de Hygiene (1916), depois Departamento de Hygiene (1917), posteriormente Instituto de Hygiene (1918), que resultou, finalmente, em 1946, na implantação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública. O segundo grande acordo visou especificamente à reformulação da estrutura acadêmica da Faculdade de Medicina com o objetivo de transformá-la em instituição modelo para a América Latina, com base no projeto de excelência das Rockefeller’s Schools, disseminado em escala planetária e assentado no modelo uniforme de tempo integral para pesquisa e docência nas disciplinas pré-clínicas, numerus clausus (limitação do número de vagas) e criação do Hospital de Clínicas, recomendações preconizadas em 1910 pelo Relatório Flexner, encomendado pela Fundação Carnegie e substrato das reformas do ensino médico norte-americano no período. A abrangência da intervenção na Faculdade de Medicina de São Paulo pode ser aferida, entre outros indicadores, pelo volume de recursos a ela destinados pela FR: foram transferidos cerca de um milhão de dólares entre 1916 e 1931 para a remodelação do ensino médico. Aproximadamente no mesmo período – 1916-1940 – a mesma agência destinou cerca de quatro milhões de dólares para o combate à febre amarela em todo o território brasileiro.

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estabeleceu-se como uma “Rockefeller School”. Muitas outras escolas médicas a seguiriam em seu modelo hopkinsniano de ensino e pesquisa, algo avesso às “divagações sociais” e que floresceria na Ásia, Europa e América na primeira metade do século XX. Podemos afirmar que a formação médica no Brasil jamais seria a mesma após sua fundação. A pergunta que se impõe agora é saber quais os possíveis efeitos colaterais desse modelo vencedor de fazer medicina dado que os efeitos desejados, já são conhecidos: a FMUSP vem cumprindo seu papel de liderança no cenário médico brasileiro e latino-americano com projeção internacional. Quando perguntei se “ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações?” era sobre isso que eu gostaria de saber. Sempre que somos chamados a nos posicionar sobre assuntos que nos dizem respeito – da vinda de médicos estrangeiros e sua forma de fazer medicina, às políticas de saúde, formas de remuneração e relação com outros profissionais -, não devemos nos esquecer das bases históricas, políticas e sociais nas quais nossa formação se insere, sob o risco de, ou associarmo-nos a mudanças sociais indesejáveis, ou retardarmos as que legitimamente representam um anseio da população, dado o papel singular que a medicina desempenha na sociedade, como já notava Gates. É preciso olhar um pouco para baixo e ver do lugar a partir do qual falamos. O “modelo filantrópico de medicina” foi uma alternativa norte-americana ao modelo “social” de medicina proposto por Virchow, pela Columbia e por outros tantos autores de orientação marxista. Sem juízo de valor, para que nos utilizemos melhor dele, será preciso nos emancipar de seus eloquentes resultados e considerar também o que foi deixado para trás, em especial, aquilo que ainda não nos é dado ver.

 

[1] Brown, ERRockefeller Medicine Men: Medicine e Capitalism in America. Berkeley, University of California Press, 1979. Disponível para download em Rockefeller medicine men : medicine and … – Revalvaatio.org

[2] Osler constituiu um dos quatro cavaleiros fundadores da Escola de Medicina da Johns Hopkins, chamados de The “Big Four” junto com William Stewart Halsted, Professor de Cirurgia, Howard A. Kelly, Professor de Ginecologia e  William H. Welch, Professor de Patologia. Um dos grandes méritos de Osler foi insistir na Residência como parte integrante e insubstituível da formação do médico.

[3] Gates, FT. “Address on the Tenth Anniversary of the Rockefeller Institute,” 1911, Gates collection, Rockefeller Foundation Archives, in Brown, ER.

[4] Marinho, MGSMCHorizontes, Bragança Paulista, v. 22, n. 2, p. 151-158, jul./dez. 2004 (pdf)

Medicina com Fronteiras

O título do post é, obviamente, um trocadilho com uma das coisas mais fantásticas e sublimes que a medicina já produziu, a Medecins Sans Frontièreentidade humanitária com ações globais em áreas de vulnerabilidade social e o tirei da excelente entrevista de Juliana Sayuri d’ O Estado de São Paulo com o médico Mário Scheffer, coordenador de estudo Demografia Médica no Brasil, patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Pretendo, nas próximas linhas, explicitar minha opinião sobre a notícia, veiculada em 06/05/2013, da vinda de 6.000 médicos de Cuba, e de outros tantos de Portugal e Espanha, para trabalhar em regiões carentes do Brasil.

Suponhamos que venham então. Seis mil pessoas de um país estranho venham, de fato, exercer medicina nos ermos do Brasil. O Governo Federal especificaria suas áreas de atuação, sua remuneração e seu modo de trabalhar. Não temos dados concretos sobre esse plano, o que me dá um certo calafrio na espinha dado o déjà-vu de pirotecnia administrativa, como sói acontecer em políticas públicas no Brasil. Vamos então, especular.

Sobre a validação. “O médico pode ser definido como o ser humano pessoalmente apto, tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para atuar na sociedade como agente profissional da Medicina – o que lhe assegura o direito de praticar todos os atos que a legislação permite ou obriga”, e a submeter-se às normas classistas bem como a seus princípios éticos. A definição se baseia em 3 quesitos que, faltantes, descaracterizariam a profissão de médico. É necessário ser: 1) Humano apto; 2) Capacitado tecnicamente; 3) Habilitado legalmente. A capacitação técnica é difícil de avaliar dada a relação intrínseca da medicina com a prática, mas a realização de exames frequentes e os programas de educação médica continuada ajudam a minimizar isso em várias localidades do mundo. A habilitação legal, por mais discutível, vinculada à capacitação técnica, politicamente influenciável e provincianamente conduzida que seja, é necessária. Aqui, a comparação com a habilitação de motorista é plenamente válida.

É sob essa lógica que o CFM tem atuado. A necessidade de ordenar a profissão, controlá-la e estabelecer normas para sua estruturação cabe ao conselho classista. Acho muito engraçado articulistas, palpiteiros, políticos, pacientes, e pessoas em geral, acusarem a corporação chamada CFM de “coorporativista”. Isso soa um pouco como acusar o Exército de ser bélico. O CFM está no seu papel e a discussão não deve ser desarticular sua argumentação, mas criar opções a ela. O próprio CFM está elaborando propostas para fixação do médico brasileiro nos tais “vazios assistenciais”. Uma crítica que caberia aqui é mas por que não fizeram isso antes? Por que esperar o anúncio da contratação dos médicos estrangeiros para lançar tal proposta? Nesse sentido, o chacoalhão veio em boa hora.

Países como EUA, Canadá, Reino Unido têm médicos estrangeiros em proporções variadas que beiram os 20%. Todos têm também, sem exceção, regras para validação dos diplomas (habilitação) e verificação da capacidade por meio de programas específicos. Não vejo problema nenhum com isso e a vinda de médicos que cumprissem tais condições – e isso também está sob discussão – é uma decisão de quem elabora as políticas de saúde.

Sobre as estratégias de assentamento. Uma das coisas que tem intrigado a opinião pública é o fato de que, mesmo com bons salários, os médicos não são capazes de “interiorizar-se”, o que mostra que a questão não é, nem de longe, meramente econômica. Setores do pensamento de esquerda acusam as faculdades de medicina de uma formação elitista e tecnologizada, fazendo com que o médico se sinta “nu” na ausência de sua tecnologia, impedindo-o então de trabalhar em locais onde ela fosse precária. Para resolver isso, propõem a vinda de médicos formados em faculdades voltadas para a atenção primária, como por exemplo, a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) em Cuba. Em que pesem as enormes dificuldades em se estudar medicina em Cuba e a manifestação contrária do senhor ministro da saúde, a proposta se apoiaria no fato de que tais médicos seriam desprovidos dessa arrogância tecnológica e mais aptos a trabalhar em condições difíceis. Não descarto, a priori, esse raciocínio.

Mas, como evitaríamos que tais médicos abandonassem seus postos? Por mais ideologizado que seja, a necessidade de formação, crescimento e ascensão na carreira é inerente ao bom profissional, ao que recusa-se a estagnar e, no caso dos médicos, ao que sabe da responsabilidade que tem e da possibilidade de que um erro pode equivaler à morte. Quais ações seriam implantadas para que tais médicos fixassem-se nos locais onde o governo necessita? A pergunta procede. Criar um sistema nos moldes do Judiciário e programas de assentamento do médico que incluem a educação continuada são possibilidades. Mas por que raios, esses programas não poderiam funcionar para os médicos tupiniquins também?

Em suma, o assunto é bastante complexo. Particularmente, não sou contra a vinda de médicos estrangeiros desde que se mostrem capacitados a exercer a profissão de acordo com as regras estabelecidas pela sociedade brasileira. Pode-se discutir as regras sempre, dificultar ou facilitar de acordo com um plano de ação. Por outro lado, não acredito que a vinda de tais médicos resolva o problema. A saúde da população transcende as fronteiras da atuação do médico que está contida nela. Ao voltarmos nossos olhares para as áreas carentes de atendimento em saúde veremos que a necessidade é muito maior que a vã lógica “medicalista” poderia supor.

Remédios não curam o abandono.

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Kehl, Freud e o Processo da Verdade

Craig Kiefer no Street Anatomy - clique para ver os créditos

Craig Kiefer no Street Anatomy – clique para ver os créditos

A verdade social não é ponto de chegada, é processo

Maria Rita Kehl

Maria Rita Kehl é dessas mulheres fascinantes. Sou seu fã desde há muito e adoro ouvi-la falar de qualquer assunto. Também adoro lê-la. Não foi à toa que li com carinho seu artigo na Folha de SP no último domingo – 24 de Março de 2013 – data emblemática desde que a ONU a escolheu como o Dia Internacional do Direito à Verdade. Para “rememorá-lo”, como membro integrante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita escreveu, sobre Psicanálise e Estados Totalitários, um artigo com o título sugestivo de “A verdade e o recalque“.

No artigo, Maria Rita associa o conceito freudiano de “recalque” – interdição de fragmentos de lembranças e/ou fantasias sexuais, por exemplo – à repetição de sintomas neuróticos que, como uma válvula de escape, permitem dar vazão ao que foi aprisionado à força, no inconsciente. Freud propõe a quebra desse binômio esquecimento/sintoma psíquico pela elaboração do trauma. Até aqui, esse seria, talvez, o pensamento padrão de um psicanalista.

O problema, na minha humilde opinião, está na seguinte frase: “Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintoma sociais”. Bom – pensei -, ao juntar psicanálise e sintomas sociais vamos acabar na Frankfurt do pós-guerra e sua mistura “explosiva” de Freud com Marx de seu Instituto para Pesquisa Social. Depois de uma aproximação pacífica, já em “Eros e Civilização” (1955), Marcuse articula uma crítica ao conceito freudiano de uma repressão orgânica e biológica com a qual teríamos que conviver. No lugar desse “biologismo” freudiano, ele afirma com Marx, que “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem”[1]. No texto, Maria Rita chega a afirmar que “Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história”. Se Freud leu Marx eu não sei, mas n’ “O Futuro de Uma Ilusão” chega a esboçar uma luta de classes (em livre tradução do espanhol de [2]):

Mas quando uma cultura não superou a situação na qual a satisfação de um número de seus membros tem como pressuposto a opressão de outros, quiçá de uma maioria – e este é o caso de todas as culturas atuais -, se compreende que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que tornam possível com seu trabalho, mas de cujos bens têm escassa participação.

Horkheimer e Adorno, a partir de sua volta a Frankfurt depois de exílio forçado nos EUA, Marcuse, que ficou por lá, e em especial, Habermas alguns anos depois, reformulam suas interpretações públicas das teorias freudianas[2], mas mesmo as críticas da Escola de Frankfurt se tornaram obsoletas quando se viram obrigadas a lidar com a dissolução dos conceitos de totalidade postulados por Marx e Hegel. O próprio Habermas constatou que sua “‘teoria da história da espécie’, elaborada no texto Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), também continuava presa, a exemplo da teoria marxiana, a categorias da filosofia do sujeito e da reflexão, porquanto entendia que os processos de aprendizagem da história mundial se concretizariam em classes sociais e povos, isto é, sujeitos superdimensionados“.[3] (grifos meus). Daí em diante, vem o “Giro Linguístico” e todos os seus desdobramentos, em especial, no que se refere a dissolução do paradigma do sujeito.

Acho problemático que a teoria freudiana do recalque, tão criticada, seja aplicada a um contexto sociológico atual com intuito de estabelecer uma explicação da doença social causada pela interdição da verdade; em que pese a nobreza da causa. Não sei bem porque Maria Rita escolheu esse caminho. Poderia ter usado algo da Teoria Crítica ou mesmo de Hannah Arendt, sei lá. Talvez por objetivos didáticos, já que Freud “pega na veia” e esses autores não são popstars como Freud e ela quisesse causar impacto. Ou talvez por familiaridade com o tema; fico pensando se o não dito, ou no caso, o não citado, também não falaria por si. Também acredito que para dizer, como ela disse lindamente no artigo, que “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva” pudesse prescindir de Freud. Esse “coletiva” a que ela se refere parece não estar ainda na obra do médico vienense. Essa ligação entre os desejos individual e o coletivo na construção da sociedade moderna talvez só viesse anos depois com a Teoria Crítica. Já a belíssima frase que epigrafa o post demanda algo mais. A verdade como processo é aquisição kafkiana recente da sociedade. Livre.

Por isso, Maria Rita é essencial.

 

 ~ o ~

 

PS. Sensacional, diga-se de passagem, o elegante cruzado de direita que ela dá em Contardo Calligaris pelo famigerado artigo sobre tortura.

 

[1] Souza, MA. Eros e Logos: Marcuse, crítico de Freud. Filosofonet. Publicado em 11/11/2007.

[2] McCarthy, T. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. 4a ed. Tecnos. 1998. pp 230-51.

[3] Siebeneichler, FB. Apresentação à edição brasileira da “Teoria do Agir Comunicativo” de Jürgen Habermas. Martins Fontes. 2012. pp XVIII- XIX.

Saturnismo

“Hence gout and stone afflict the human race;Hence lazy jaundice with her saffron face;Palsy, with shaking head and tott’ring knees.And bloated dropsy, the staunch sot’s disease;Consumption, pale, with keen but hollow eye,And sharpened feature, shew’d that death was nigh.The feeble offspring curse their crazy sires,And, tainted from his birth, the youth expires.”
(Description of lead poisoning by an anonymous Roman hermit, Translated by Humelbergius Secundus, 1829)
De gota e cálculo a raça humana padece; De semblante cróceo a icterícia esmorece; Paralisia, a cabeça treme e o joelho desce. E túrgido edema, do qual o bêbado padece; Consumptivo, pálido, de olhar vazio mas fulgente, E traços realçados mostram que a morte é iminente. A prole malsã execra seus antigos, loucos. E, maculados ao nascer, expiram-se moços.
(Descrição de envenenamento por chumbo, por um eremita romano anônimo, traduzida com graça e estilo pelo Igor Santos da tradução de Humelbergius Secundus, 1829)

 

Hoje aconteceu mais um fato a somar-se na intrincada rede que é a prática médica na saúde suplementar (é assim que o Governo divide a saúde: o SUS e o resto, este último chamado de “saúde suplementar”) que constitui e é constituída pelo comportamento do médico, dos pacientes e os interstícios ao qual ambos estão mergulhados, a saber, o mundo dos signos. Bem, a Medicina toda é assim. Um paciente veio procurar-me – logo eu, mero clínico a procura de seu lugar ao sol – com suspeita de intoxicação por chumbo. Eu sempre pergunto aos pacientes qual alma boa (ou não) lhes indicou minha pessoa e ele, para minha supresa, de modo franco, foi dizendo: “Bom, doutor. Na verdade, foi falta de opção mesmo.”

Eu, que já não me acho lá grande coisa, mesmo assim, fiquei surpreso com essa colisão frontal com a realidade, mas o paciente foi logo se explicando: “Não leve a mal, doutor. É que eu sempre gosto de procurar especialistas. Quando tenho dor de cabeça, vou a um neuro. Se tenho dor na barriga, um gastro. Otorrino, oftalmo, etc. Mas quando o médico da empresa me disse que podia ser intoxicação por chumbo, eu revirei a internet. Teria que ser um toxicologista mas não encontrei nenhum que faça consultório. Acabei optando por um clínico mesmo”. Claro que não levei a mal.

Na minha cabeça, enquanto o paciente falava, passavam inúmeras imagens, textos, parágrafos de livros (eu, algumas vezes, me lembro do local onde li ou onde estava tal foto, ali no canto superior esquerdo da página da esquerda… sou normal?). De repente, a sucessão de imagens parou e eu estava em Roma, a vecchia. Há quem diga que a deterioração moral e intelectual da elite de Roma estava ligada à intoxicação pelo chumbo que era adicionado ao vinho (e outros alimentos) à época, por ter sabor adocicado, corrigindo os fortes taninos, além de ser utilizado em utensílios domésticos.  O chumbo parece ter algum papel na queda do Império Romano. Júlio César, apesar de suas aventuras sexuais, não deixou muitos herdeiros e seu sucessor, César Augusto, além de ser totalmente estéril, não tinha o menor interesse sexual… Ahn? Como?

“Então, doutor. Eu acho realmente que tenho uma intoxicação por chumbo, pelo menos inicial. Mas, gostaria de investigar, porque na minha empresa, trabalho com um tipo de … e o médico disse que… e a minha mulher tá achando que….” Hmmm – disse, apoiando o queixo com os dedos em “L”. Vamos investigar.

O chumbo é um metal que deve ser dosado no sangue total já que adere à parede dos glóbulos vermelhos o que torna sua dosagem no plasma não confiável. Também por isso, causa uma anemia microcítica hipocrômica que faz diagnóstico diferencial com falta de ferro. Eu explico. A anemia causada pela falta de ferro faz os glóbulos vermelhos ficarem pequenos e desbotados. Igualzinho à intoxicação por chumbo. Temos que averiguar. Vou pedir também o ácido D amino levulínico na urina que pode mostrar se o chumbo encontrado no sangue está tendo algum efeito tóxico ou não. Vale a pena pedir Vitamina D e hormônio paratireoidiano (PTH) para checar alterações do metabolismo do cálcio… Ossos… radiografias…

Não encontrei nada de alterado no exame clínico. Fiz a solicitação de exames e pedi para o paciente remarcar tão logo tivesse seu resultado. Ele foi embora, pareceu-me, satisfeito. Impressão que confirmei com a secretária depois. No intervalo entre uma consulta e outra, sentei ao computador e fiquei pensando e escrevendo estas linhas…

Esse é um belo de um “furo” no raciocínio tecnicista da especialização desmedida da medicina atual, não? O paciente precisa de um super-especialista e não encontra. Nem pagando! A “mão invisível” do mercado da saúde suplementar ainda não está preparada para exceções anedóticas. Curiosamente, casos complexos são encaminhados aos hospitais-escola, invariavelmente pertencentes à rede pública, para serem desvendados. Por quê? Eu acho que é porque nesses hospitais, quando se consegue vencer as deficiências eternas, alguém “abraça” o caso. “Veste a camisa” e o paciente, cansado de procurar, tenta a sorte. Não que isso não exista na rede privada. Acho que existe sim, mas custa muito caro. Talvez nem todo mundo saiba, mas existe um vão entre os usuários da saúde complementar tão profundo e vasto quanto o que separa o SUS dela própria. Quando falamos de “convênios”, há pacientes tão desassistidos que preferem utilizar a rede pública, (se for ligada a algum hospital-escola, tanto melhor) a utilizar a rede própria da seguradora. Vivo isso diariamente e não sei como resolver.

Saturno é o planeta identificado com o chumbo, um dos primeiros metais descobertos e por isso, conhecido como o “pai dos metais”. Segundo o mito grego, Cronos (não confundir com Khronos – tempo) que romanizou-se para Saturno,  era um titã mórbido que castrou o pai – Uranus – e acabou devorando sua própria prole com medo de perder o trono. “A própria palavra saturnino significa especificamente o indivíduo com temperamento uniformemente sombrio, cínico e taciturno como resultado da intoxicação crônica pelo chumbo”. Soturno. O paciente não estava envenenado pelo chumbo, ainda bem. Mas, de repente, confesso que fiquei curioso em saber meus níveis plúmbicos…

~ o ~

PS. Veja a interessantíssima história das intoxicações pelo chumbo aqui.

UTI. Agradecimentos ao Igor Santos pela brilhante tradução acima.

O Batman e o Estudante de Medicina

Toda vez que médicos ou estudantes de medicina cometem algum ato hediondo contra a humanidade, sinto como se milhares de olhares virtuais se dirigissem a mim. Essa observação atenta deixa transparecer, por vezes, um certo ar reprobatório, em outras, permite perceber semblantes dúbios, num misto de dúvida e comiseração.

Quanto ao julgamento moral, não há como escapar. Tais atos acabam afetando toda uma classe de trabalhadores da Saúde e, dada a velocidade da informação, julga-se, condena-se, explica-se o inexplicável em escala mundial. Mas isso não me perturba. Me incomoda muito mais, esse olhar que pergunta: “Por quê?”. Ou “O que é que vocês veem, fazem, sofrem que, de súbito, um ou outro, aqui e acolá, rendem-se aos instintos mais sanguinários e crueis ?”. “O que é essa pulsão de morte que mora dentro de vocês?”.

Assim é, que um estudante de medicina chamado James Holmes de 24 anos matou 12 pessoas e feriu 59  no cinema onde estreiava o novo “Batman”, no estado do Colorado nos EUA. Em 1999, de modo incrivelmente semelhante, Mateus da Costa Meira, então com 25 anos, cursando uma tradicional faculdade de medicina em São Paulo, capital, disparou mais de 40 tiros contra a plateia no cinema de um shopping center que assistia o filme “Clube da Luta” na mesma cidade. As estórias de Eugênio Chipkevitch e Roger Abdelmassih já fazem parte de enciclopédias virtuais. Artigos são publicados com compilações de crimes perpetrados por médicos. Matamos calouros em trotes. Tudo isso sem falar nas horrendas “experiências” realizadas por médicos e cientistas nazistas.

À parte da sociologia dos fatos, qual seja, a das sociedades bélicas, facilidade ao acesso de armas, mentalidade do “kickass“, “Tiros em Columbine” (que aliás, faz 10 anos e continua atualíssimo), que deixo aos sociólogos e filósofos de plantão e; à parte das explicações psiquiátricas e psicanalíticas do que possa passar dentro da cabeça dessas criaturas, muito além de seu sofrimento difuso e profundo que deixo a quem de direito, vou ficar com alguns números.

O censo de 2009 mostrou que o Brasil tinha 330.825 médicos e 191.480.630 de habitantes. Isso dá, grosso modo, 1 médico para cada 580 pessoas. Entretanto, a distribuição é bem desigual. A figura abaixo mostra um quadro de 2007. O Brasil tem uma proporção de 900 pacientes para cada médico, segundo o autor. Segundo dados do CREMESP (pdf), a proporção de médicos na cidade de São Paulo é de 232 habitantes para cada médico. Em Santos, o número chega a 158, dados de 2009.

 

Com isso, quero deixar a pergunta: Médicos e profissionais da área da saúde cometem proporcionalmente mais crimes hediondos que a população não atuante nesta área específica? A resposta parece óbvia que não. Entretanto, os crimes praticados em especial por médicos têm um peso social muito maior dada a imagem que ainda resguardam no cotidiano das pessoas. O que acaba chocando não é o crime em si, já que, desgraçadamente, é mais um crime, mais uma chacina, mais uma bestialidade humana. O que chama atenção nos noticiários são dois fatos: O Batman e o estudante de Medicina.

Um real, outro imaginário. O Batman nos vinga. Haverá correlação? O massacre “cinematográfico” brasileiro ocorreu durante a exibição de um filme violento também. É um “n” muito pequeno para concluir, diriam. E discutiriam… Já a facticidade do “estudante de Medicina” choca porque vai no nervo exposto daquilo que nos mantém em pé e que não é a imaginação, o sonho, a virtualidade. Nem tampouco é facilmente quantificável, já que habita os recessos de uma subjetividade sobrescrita e desbotada a nós legada pela sociedade tecnológica e espetacular. O maior horror dessas estórias talvez não seja proveniente do fato de que o vilão “Estudante de Medicina” mata seres humanos comuns, mas sim porque aniquila um dos últimos resquícios de nossa humanidade: a Esperança.

Para-sois, Ergométricos e o Díficil Coração Feminino

Outro dia, entrei numa loja de carros e sentei ao volante de um veículo zero km. Como médico de unidades intensivas, fico fascinado com as luzes e indicadores dos paineis modernos. Fiquei até imaginando um opcional de sensor de frequência cardíaca acoplado ao volante para monitorização de velhinhos que gostam de dirigir carros esportivos, casos cada vez mais frequentes. Imagina um velhinho dirigindo uma Ferrari a 200 km/h, com as mãos coladas ao volante. O carro monitora uma frequência de 150 batimentos por minuto e “fala”: – Diminuindo a velocidade. Perigo de infarto! Hehe. Fica a dica.

Mas, durante a exploração interna do veículo, entorpecido pelos meus delírios e pela tecnologia embarcada dos carros modernos, me dei conta de que há um item para o qual o tempo, de fato, não passou. Trata-se do para-sol.

 Figura 1. À Esquerda. Para-sóis do Fusca 66. À Direita. Detalhe do para-sol do Fox 2012.

Tirando o espelho (que muita gente já prendia com um elástico antes de vir embutido) e a luzinha (que a mulherada que usa para maquiar-se diz que é só de enfeite), os para-sois são incomodamente semelhantes entre os dois carros para quem têm uma diferença de quase 50 anos! Compare-se, por exemplo, os painéis dos mesmos. É até covardia…

Figura 2. À Esquerda, painel do Fusca 66. À Direita, o painel do Fox 2012.

O que isso significa? Que a indústria automobilística não se preocupou com o sol na cara dos motoristas e prestou a maior atenção a mostradores, ar condicionado, rádios e outros itens talvez até de menor importância? Pode até ser, mas tendo a interpretar esse fato de maneira um pouco diferente. Eu acho que o para-sol é uma baita de uma invenção!! Tão boa que, mesmo após 50 anos de evolução tecnológica e competição ferrenha entre as montadoras, ninguém conseguiu achar alguma coisa que funcionasse tão bem e tivesse o mesmo custo. Por isso, o paradoxo se constitui no fato dos mesmos para-sois – acionados por “tração e vontade animal” – equipar veículos com injeção eletrônica e motor flex, impensáveis na época de sua concepção.

Alguns estão a perguntar o que um post sobre a indústria automotiva faz aqui nesse blog. Para mim, é inevitável comparar o paradoxo do para-sol com a evolução da tecnologia médica. A medicina se aproveita de muitas invenções, não só da indústria automobilística mas, principalmente, da aeroespacial. Sistemas de telemetria e tecnologias com fibras ópticas (utilizadas nos endoscópios) vieram dela. Fiquei procurando por “para-sois médicos”, invenções e descobertas relacionadas à medicina que, de tão boas e custo-efetivas, atravessaram décadas e continuam, praticamente inalteradas, a servir médicos e pacientes. Acho que o exemplo mais clássico disso é a aspirina. Entra remédio, sai remédio, entra indicação, sai indicação, e ela lá. Há uma infinidade de instrumentos cirúrgicos e ortopédicos que poderiam preencher essa definição. Até escrevi algo sobre o estetoscópio. Hoje, recebi um twit com referência a esta reportagem. Aqui, o “para-sol” médico é o exercício. A Dra. Martha Gulati é uma defensora do teste ergométrico, uma carga de exercícios monitorada para avaliação do desempenho e função cardíacas.

Colocar um paciente sob condições de estresse físico é uma das estratégias de avaliação de risco mais inteligentes e simples de toda a medicina sendo útil em cardiologia, pneumologia e avaliação para cirurgias. O teste ergométrico, propriamente dito, parece ter sido idealizado em 1928 [1]. Desde então, pouca coisa mudou e o teste é ainda muito discutido, em especial, no caso das mulheres. A Dra. Gulati e sua equipe mostrou que o ergométrico, além de barato, é ainda uma boa ferramenta para avaliar o risco de uma mulher sofrer um ataque cardíaco, apesar de já ser quase centenário! Os autores entretanto, sofreram fortes críticas. Os resultados muitas vezes são mesmo conflitantes e dificeis de interpretar. Bom, mas quem disse que interpretar o coração feminino era fácil? Talvez, só mesmo uma proprietária para conseguir isso.

 

[1] Feil H, Seigel ML. Electrocardiographic changes during attacks of angina pectoris. Am J Med Sci. 1928;175:255.

[2] Comparative Effectiveness of Exercise Electrocardiography With or Without Myocardial Perfusion Single Photon Emission Computed Tomography in Women With Suspected Coronary Artery Disease: Results From the What Is the Optimal Method for Ischemia Evaluation in Women (WOMEN) Trial. Leslee J. Shaw, Jennifer H. Mieres, Robert H. Hendel, William E. Boden, Martha Gulati, Emir Veledar, Rory Hachamovitch, James A. Arrighi, C. Noel Bairey Merz, Raymond J. Gibbons, Nanette K. Wenger, Gary V. Heller, and for the WOMEN Trial Investigators Circulation. 2011;124:1239-1249, published online before print August 15 2011, doi:10.1161/CIRCULATIONAHA.111.029660.

Agradecimentos à @Be_Neviani que me enviou o twit. #SigaSempre.