Um Bisturi de Argônio – Carta ao Professor de Clínica Médica

Allgemeine Krankenhaus - Viena, 1784. Fonte: Wikipedia

O saber não é para compreender. O saber é para cortar.

Michel Foucault

Professor,

Não sem muita hesitação resolvi sentar à frente desta tela e datilografar (sim, tenho diploma de datilografia, o que dá uma ideia da minha geração) estas reflexivas linhas. A idade e uma distância mantida cuidadosamente estável para que não se perca de vista os ares e paisagens acadêmicos, me fizeram crítico e, porque não dizer, algo ranzinza das coisas da medicina. A distância, na verdade, se articula com o tempo que a idade fez passar, e dota meu olhar com um bisturi de argônio existencial: ao mesmo tempo que espicaça fatos, coagula emoções. Sendo assim, espero que me perdoe alguma indelicadeza e/ou imprecisão no que segue. Mas é que eu tinha que falar…

Outro dia, um professor de cirurgia da faculdade me perguntou incisivamente: “Quem é o CLÍNICO deste hospital? Quem é o CLÍNICO desta cidade?” Fiquei pensando na resposta e, como sói acontecer com as perguntas em que não encontramos a anestesia de uma certeza, estou nela pensando inda agora. E dói esse pensamento. Lembremos da nobre origem da clínica médica no século XIX, na França, mais especificamente, em Paris, tendo como exemplo uma nova forma de atuar de alguns médicos do Allgemeine Krankenhaus em Viena (figura), da Escola de Medicina de Edimburgo entre outras, que, somada à mudanças epistemológicas na ciência médica, com a recém-constituída Anatomia Patológica incluída no raciocínio clínico, “colou” o nome à coisa e abriu caminho para uma medicina positiva.

À partir daí, os clínicos gerais ganharam prestígio como médicos, e calaram Moliére. Sua atividade, dividida entre o hospital e o consultório, permitia que acompanhassem uma variedade muito grande de pacientes com doenças em suas múltiplas manifestações e diversos graus de gravidade, fazendo com que ganhassem grande erudição médica dentro, obviamente, da ciência possível em cada época. O clínico geral era um sábio.

Eis que se muda novamente a episteme, como diria Foucault. Mudam os “códigos fundamentais de uma cultura” e a ordem do discurso, por conseguinte. O clínico geral – e os especialistas da Clínica Médica –  passa então, cada vez mais, a ser um tipo de porta-voz de uma ciência avassaladora na qual a “medicina baseada em evidências“, para além de ferramenta cotidiana, transforma-se em imperativo ético, em um subproduto ideológico. Os cirurgiões não sofreram na carne o golpe com a mesma intensidade. Para eles há ainda o ato cirúrgico que depende de uma habilidade, uma arte, um dom e que, de uma certa forma, os blinda da “invasão de privacidade” – na relação entre ele e seu paciente e que funda a medicina -, da ciência enxerida e abelhuda, vista como um fim e não como meio de praticar medicina. A Clínica Médica sofreu ainda um outro golpe. A especialização crescente que o conhecimento técnico exige não nos dá muitas opções: doenças sistêmicas? doenças comuns? diagnósticos difíceis? O que é e em qual área da medicina atua um clínico geral moderno? Responder que nossa especialidade é o “doente” e não as doenças, não parece ser suficiente. Os hospitais mudaram. Ninguém quer ficar internado muito tempo e as fontes pagadoras pressionam para manter os pacientes fora dos hospitais. Alguns buscaram aprender algum “procedimento”. As especialidades médicas que assim o permitiam ganharam novo fôlego. Cardiologistas passaram a dominar técnicas percutâneas de diagnóstico e tratamento, ecocardiografia e outras atividades mediadas por máquinas. Gastroenterologistas e pneumologistas, aprenderam a endoscopar e biopsiar. Reumatologistas, hematologistas e oncologistas começaram a prescrever “drogas perigosas” que somente eles podem prescrever. E assim, toda a Clínica Médica foi se “ajeitando” dentro da nova episteme; se recriando à luz das necessidades; adquirindo novas habilidades e novos discursos. Ao buscar uma arte, uma habilidade, um procedimento, ao mesmo tempo em que se defendem de intrusões indesejadas e resguardam sua aura de técnico à moda dos cirurgiões, também procuram obedecer a lógica de mercado e

Vendo em Código - a metáfora para a visão do médico?

atender às solicitações da sociedade em busca da inovação e das novas tecnologias. Talvez o protótipo do clínico geral moderno, que vê o paciente como um todo, tendo como pano de fundo uma Matrix de dados virtuais e ainda realizando procedimentos característicos da especialidade, seja o médico que trabalha em unidades de terapia intensiva: o intensivista. Hoje, parece que o intensivista permanece ainda com algum resquício da fleuma do clínico geral de outrora. Mas, também ele, passa o plantão.

Foi assim então, que o clínico, perdeu sua Palavra. E as alunos começaram a perguntar: “que adianta ser um médico mudo?”

Alguém poderia pensar entretanto, que o clínico não é necessário. Que sua sabedoria totalizante não teria lugar no mundo da velocidade, do procedimento, da hiperespecialização, da virtualização dos corpos. Que ele logo ficaria desatualizado, ultrapassado pelo vagalhão feroz de ciência médica produzido diariamente por milhares de jornais científicos ao redor do mundo. “Não dá” – dizem os próprios médicos a si e aos colegas. Mas, para estupefação testemunhada diariamente de alguns, os próprios pacientes, entre eles alguns médicos que, pasme, também ficam doentes, requisitam os serviços do clínico. Por quê?

Eu tive bastante contato com um professor de patologia cuja vida foi dedicada a estudar o fígado e o pâncreas. Ironia do destino, teve o diagnóstico de câncer de pâncreas agressivo. Já bem magro e cansado de terapias de pouco efeito, embora pleno de seu raciocínio claro e agudo, me confessou que os médicos ficavam um pouco intimidados por ele ser uma autoridade mundial na doença que o consumia. A gota d’água foi o fato dele mesmo ter que comunicar à família (esposa e filhos) seu diagnóstico, além de discutir o prognóstico. “Nunca”- me disse, sem carregar nas emoções – “me faltaram bons médicos. Sempre me trataram com muito carinho e respeito onde quer que eu fosse. Mas me faltou UM médico.”

Foi imerso nas profundezas dessas memórias – e é incrível como com o chegar da idade, as memórias formam cada vez mais nossos pensamentos – que li que um professor de Clínica Médica ministrava um curso sobre os Fundamentos da Homeopatia.

“Homeopatizar” a Clínica Geral me parece um caminho que, se por um lado, valoriza a avaliação do ser humano como um todo (não usarei “abordagem holística” aqui dada a contaminação desta expressão com outros tipos de charlatanismo) que é o que fazemos, por outro, fere a própria origem da clínica, calcada profundamente em conhecimentos científicos válidos. Se essa abordagem – a científica – nos trouxe para o imperialismo cientificista da prática médica contemporânea, outras formas de “ver” o paciente devem ser procuradas. Não somos cientistas e não somos curandeiros. Somos médicos e isso já é ser duplo, tal como os “humanos” de Aristófanes no Banquete. Mutilados que fomos, nossa metade científica nos transforma em autômatos repetidores de “evidências”. O vazio existencial que fica nos impele a procurar a metade oposta – humana – e ela NÃO está nas alternativas à medicina! Pelo contrário, está nela própria, professor. E para encontrá-la talvez seja necessário reduzir fenomenologicamente a medicina ao seu  núcleo duro, dissecá-la até que surja o encontro que a define: a relação médico-paciente. E “histologicamente” do que é tal relação constituída? Alguma pista? Sim. Ela é feita de linguagem! Nada mais humano e a um só tempo, científico. Para chegar a isso, talvez seja mesmo necessário um metafísico bisturi de argônio. Posso emprestar o meu, existencial, que consegui na distância e no tempo. Porque, creia, o senhor vai precisar.

USP – Universidade Classe Mundial?

Publico aqui, com autorização da autora, carta da professora Rita Cruz, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP. É uma carta-reflexão sobre a proposta de alteração regimental na pós-graduação da USP de que falávamos. De forma clara e brilhante, ela expõe os desencontros da política universitária do Estado de São Paulo que, a pautar-se pela interpretação fria de rankings e pelas comparações grosseiras entre as instituições, afeta diretamente a maior universidade do país com consequências desastrosas. Mais que isso, provoca uma reflexão sobre qual o papel da universidade na sociedade paulista e brasileira atuais deixando a pergunta: qual a melhor forma de uma universidade latino-americana portar-se para estar entre as melhores do mundo? Um simples “copy-paste” resolve?

~ o ~

Universidade Classe Mundial: paradoxos de um  pensamento ao mesmo tempo neoliberal e neocolonialista

Como é do conhecimento de todos, estamos vivendo um processo de reformulação do Regimento Geral da Pós-Graduação da USP. Conforme declarações públicas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, as mudanças propostas fazem-se necessárias no sentido de transformar a USP em uma Universidade Classe Mundial.

Todavia, o que nos tem inquietado a muitos, alunos e professores da USP, diz respeito à pertinência/necessidade de algumas das mudanças anunciadas, entre as quais se pode destacar:

  1. exame de qualificação obrigatório para todos os alunos da pós-graduação, a realizar-se em até 12 meses de seu ingresso;
  2. exclusão da possibilidade de re-apresentação do Relatório de Qualificação no caso de reprovação;
  3. necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;
  4. orientador sem direito a voto nas bancas examinadoras finais.

A principal argumentação utilizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação para justificar tais mudanças é a referência a IES [instituições de ensino superior] estrangeiras, as quais têm modus operandi similares ou iguais a este que se propõe hoje para o Regimento da Pós-Graduação da USP, ressaltando-se o fato de que tais Instituições são melhores ranqueadas internacionalmente que nós. Naturalmente, não ignoramos o fato de que há muitas experiências vividas em outros lugares no mundo, no campo científico e acadêmico, passíveis de serem assimiladas por nós de forma positiva, ou seja, produzindo-se aqui, em nosso contexto social, econômico, político e geográfico, as mesmas benesses que produziram em seus lugares de origem.

Entretanto, entendemos, também, que não há um modelo universal para se produzir uma Universidade Classe Mundial e, se considerarmos as condições em que fizemos ciência no Brasil e na USP, particularmente, desde a sua fundação, podemos afirmar, sem dúvida, que somos muito mais Classe Mundial que diversas universidades melhores colocadas nos diversos ranqueamentos internacionais. Por que podemos afirmar isso? Pensemos em alguns dados/informações.

Ranking das 10 melhores universidades do mundo segundo a TIMES HIGHER EDUCATION – informações elementares

Universidade

Ano

Orçamento Anual*

No. de Alunos

Orçamento/Aluno¶

Doc/Pesq por Aluno

USP

1934

3

76.000

39.473,68

1/14,5

CalTech

1921

6,3[1]

22.000

286.363,60

1/1,13

Harvard

1636

57.6[2]

21.000

2.742.857,10

1/10

Stanford

1891

37[3]

18.500

2.000.000,00

1/1,73

Oxford

1096

3[4]

20.000

150.000,00

1/ 2,35

Princeton

1746

17,2[5]

12.000

Cambridge

1209

3,4[6]

10.000

340.000,00

1/3,3

MIT

1861

4,8[7]**

11.000

436.363,36

1/11

Imperial College

1891

2[8]

14.000

142.857,14

1/12

Chicago

1907

4,6[9]

15000

306.666,66

Berkeley

1868

3,5

36.000

97.222,22

1/15

Obs.: as informações e dados acima expostos foram extraídos das páginas das respectivas universidades, disponíveis na web.*Valores aproximados em bilhões de Reais.**Excluindo-se orçamento destinado ao Laboratório do MIT que tem parceria com a NASA.¶ Em Reais.

Como se pode ver na tabela acima, a Universidade de Harvard,  Estados Unidos, desenvolveu sua reconhecida capacidade de produzir conhecimento ao longo de pouco mais de três séculos e com orçamentos, muito provavelmente, bem superior aos nossos. Vale lembrar que se hoje Harvard tem um orçamento anual quase vinte vezes superior ao da USP, com um número total de alunos 60% menor, há poucos anos atrás, o orçamento total da USP – 2005, por exemplo – não chegava aos 2 bilhões de reais. Entre outras coisas, pode-se notar que enquanto a USP investe menos de R$ 40.000,00 por aluno, em Harvard esta conta chega ao estratosférico valor de quase 3 milhões de reais!!! Dá para comparar?

Oxford, por sua vez, tem, aparentemente, um orçamento igual ao da USP hoje, mas como a comunidade estudantil oxfordiana é 70% menor que a nossa, a universidade inglesa, com  quase mil anos de história, empenha cerca de 150.000 reais por aluno. Certamente, os seus quase dez séculos de história foram importantes na definição de suas políticas acadêmicas e, especialmente, de pesquisa. Estaremos nós querendo ser mais oxfordianos que nossos colegas ingleses? Ou será que queremos mesmo é ser mais realistas que o rei?

Entre as dez melhores do mundo, ainda segundo o ranking “Times Higher Education”, por exemplo, aquela que tem o menor investimento per capita por aluno – Califórnia University at Berkeley – empenha duas vezes e meia os valores investidos pela USP. Apesar de a USP ter, proporcionalmente às melhores universidades do mundo, orçamentos bem mais modestos, parte da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos países que abrigam as “top 10 do mundo”, estimulada por uma visão tupiniquim de uma imprensa irresponsável, nos rotula de “burgueses gastões” .

Outro elemento importante neste debate e que não pode ser negligenciado diz respeito à hegemonia lingüística mundial da língua inglesa, ou seja, pesquisadores/cientistas anglófonos levam reconhecida vantagem em termos da reverberação internacional de seus trabalhos em relação, por exemplo, a pesquisadores/cientistas não-anglófonos.

Em sua competente análise acerca de classificações internacionais de universidades e, especialmente sobre a classificação “Xangai”[10], Hervé Théry (2010: 192) diz a esse respeito:

Outro fator de distorção é que o inglês tornou-se, na maior parte dos campos científicos, a língua internacional e que os universitários do mundo anglófono são muito mais integrados ao circuito internacional que os seus homólogos dos outros blocos culturais. Consequentemente, essa classificação das universidades favoreceu claramente os países para os quais o inglês é a língua materna.

Outra distorção apontada por Hervé Théry (2010: 191-2) quanto à classificação “Xangai”, diz respeito à subestimação clara das ciências sociais e humanas. Conforme o autor:

O lugar das ciências sociais e humanas é claramente subestimado nessa classificação, os próprios autores o reconhecem, mas eles confessam não ter encontrado, para esses campos científicos, critérios que correspondam às exigências que tinham fixado: medidas universalmente reconhecidas como válidas e livremente acessíveis na internet. Em especial, o fato de não poder dispor de uma classificação dos livros, um dos principais meios de expressão dessas ciências, prejudicou a sua inclusão correta na classificação.

Se, entretanto, insistem alguns em comparar o incomparável, uma das conclusões a que podemos chegar é a de que a USP é muito mais Classe Mundial que as dez melhores universidades do mundo, afinal de contas, conseguimos ser a melhor universidade da América Latina e estar hoje entre as 70 melhores do mundo, com pouco mais de 70 anos de história, utilizando muito menos recursos que a maioria delas e abrigando 3, 4 ou 5 vezes mais alunos que a maior parte dessas instituições.

ISTO POSTO, NÃO DEVERÍAMOS NÓS ENSINAR A ELES OS NOSSOS MÉTODOS E NÃO O CONTRÁRIO?

Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais

Na onda dos ranqueamentos internacionais, outro processo em curso na USP é o de criação de um novo sistema de avaliação da qualidade de sua pós-graduação.

Para que e a quem servem os sistemas de avaliação seja de universidades “classe mundial” ou de programas de pós-graduação?

1. No caso da avaliação da pós-graduação, o sistema Capes tem servido, entre outras coisas, para fomentar a competição entre Programas, em escala nacional. Como? Os Programas melhor classificados são aqueles que recebem mais recursos. Assim, esse sistema trabalha para manter na penumbra aqueles que apresentam maiores dificuldades; enquanto isso, os melhores têm suas receitas fortalecidas.

2. Um sistema de avaliação pautado na competição contribui, efetivamente, para “varrer” do universo da pós-graduação os Programas que não conseguem melhorar suas notas, por razões diversas, entre as quais a dificuldade em vencer os mecanismos vorazes da competição (fatores temporais – programas jovens; fatores geográficos – dificuldade em fixar professores/pesquisadores em lugares distantes dos centros econômicos mais dinâmicos do país, fatores financeiros – escassez de recursos, por exemplo).

3. Coincide, historicamente, com a instalação do sistema de avaliação da Capes uma reconhecida perda de qualidade na formação geral de pós-graduandos no Brasil. Naturalmente, não se pode atribuir única e exclusivamente à avaliação Capes algo que decorre de um sucateamento do ensino em todos os níveis no país, reinante durante décadas. Todavia, alguém duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém  duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?

Tais inquietações me conduzem a perguntar: como se fazia a avaliação da produção na USP, por exemplo, nos anos 50, 60 e 70?

O reconhecimento nacional e internacional da USP, historicamente construído, subordinou-se, durante décadas, única e exclusivamente  à inserção social de seus formandos, graduados e pós-graduados, bem como à sua produção científica, que revolucionou diversos setores da vida social.

Todavia, na medida em que, pós anos 80, começa a ampliar-se, substancialmente, o universo da pós-graduação brasileira, “a fatia do bolo” para cada um tinha de diminuir!

É nesse contexto que assumimos uma lógica empresarial de avaliação, fundada não somente na produção, mas sobretudo e principalmente na produtividade. Paradoxalmente, enquanto o setor produtivo se flexibiliza, supera o paradigma fordista e incorpora princípios toyotistas, a vida cotidiana na universidade volta-se para a produção em massa além de tornar-se cada dia mais inflexível!

A melhor avaliação da USP foi e continua sendo feita pela sociedade brasileira, de modo geral, e paulistana, especificamente. A inserção de nossos egressos, tanto da graduação como da pós-graduação em todos os setores do mercado de trabalho, incluindo-se postos de liderança em escolas de ensino fundamental e médio, universidades, empresas de todos os ramos e governos em todas as escalas expressa a verdadeira reverberação do investimento público onde ele deve reverberar.

Por fim concluo acreditando que temos empenhado muito tempo e energia na construção de parâmetros, indicadores e relatórios de avaliação, os quais alimentam uma verdadeira esquizofrenia avaliativa nacional. Enquanto isso, nossos alunos clamam, simplesmente, por uma boa aula, por um pouco de atenção, por uma boa conversa, enfim, atividades elementares,  cada vez mais difíceis de serem desenvolvidas em um cotidiano acadêmico regido pela competição. Quanto ao tempo para a pesquisa, passou a ser um sonho de todos nós. Algo me parece estar errado.

Sem mais, despeço-me, cordialmente,

Profa. Dra. Rita de Cássia Ariza da Cruz

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP

 

[10] Instituição Escore (2008)

1 Harvard University 100

2 Stanford University 73,7

3 University of California – Berkeley 71,4

4 University of Cambridge 70,4

5 Massachusetts Institute of Technology (MIT) 69,6

6 California Institute of Technology 65,4

7 Columbia University 62,5

8 Princeton University 58,9

9 University of Chicago 57,1

10 Oxford University 56,8

Fonte: THÉRY, Hervé. Classificação de universidades mundiais: “Xangai” e outras. estudos avançados 24 (70), 2010. Disponível aqui.

Eu Sem Mim

ET de MIB I "aprisionado" em seu corpo

A característica principal de quem dirige um veículo com prática é a automaticidade dos procedimentos. Mudam-se marchas e acionam-se dispositivos de maneira quase inconsciente. O todo das ações forma então, um conjunto harmônico de atitudes que fazem com que a condução do carro se torne parte de um ambiente “normal”. Dessa forma, é possível ouvirmos músicas e até conversarmos dentro de um veículo, esquecendo-nos que ele está em movimento, por vezes, em alta velocidade. Assim é o funcionamento do nosso organismo. Quantos processos automáticos não coexistem sem que sequer saibamos de suas causas ou de seus efeitos? Reações, pulsações, contrações, explosão de -ações em um concerto mudo. Já se disse que a saúde é a vida no silêncio dos orgãos. Mas algumas parcas notas dessa sinfonia nos são dadas a ouvir. Imagine-se, por exemplo, como seria se tivéssemos de nos “lembrar” de nossas “funções fisiológicas”, como evacuar ou esvaziar a bexiga de tempos em tempos, se o corpo não nos “avisasse” de suas necessidades. Suponhamos que não sentíssemos fome, sono, sede, libido, amor (?)…

A continuarmos por esse caminho, podemos começar a supor que muitas de nossas escolhas “conscientes” podem ser originárias de uma outra fonte que não a própria vontade do nosso Eu. Um caminho que levado às últimas consequências pode conduzir à armadilha – semântica e vazia – do fisicalismo, por um lado, e, por outro, a um determinismo biológico muito próximo de um materialismo cientificista, também incapaz de satisfazer as condições de possibilidade desse Eu, alma, Self, Selbst, sujeito, ou o que quer que seja. Mas como negar a existência desse Eu, sujeito ou Self, proprietário de um corpo que o carrega para lá e para cá e o insere no mundo da vida? Existiria algo como o ET do filme “Homens de Preto“, que, autopsiado, revela seu verdadeiro Eu como o proprietário de uma carcaça mecânica (figura) que fingia ser um ser humano? Será essa a metáfora de uma existência bipartida?

A criação de um Eu todo poderoso excluso do corpo que lhe dá abrigo, é sacramentada em Descartes. Nietzsche chama esse tipo de pensamento de descuidado.

Sejamos mais cuidadosos que Descartes, que se manteve preso à armadilha das palavras. Cogito é decididamente apenas uma palavra, mas ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo e nós, grosseiramente, o deixamos escapar, na boa-fé de que seja uno. Naquele célebre cogito se encontram: 1) pensa-se; 2) eu creio que sou eu quem pensa; 3) mesmo admitindo-se que o segundo ponto permanecesse implicado, como artigo de fé, ainda assim o primeiro “pensa-se” contém ainda uma crença, a saber: que “pensar” seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um “isso”, deva ser pensado – além disso, o ergo sum nada significa! Mas isso é fé na gramática; já são aqui instituídas “coisas” e suas “atividades”, e nós nos afastamos da certeza imediata.[1]

Para Nietzsche, a extração de um Eu do processo do pensamento é um efeito das funções lógicas e gramaticais que atuam inconscientemente. Um efeito colateral do processo do pensar. É como se o motorista, para abusar da analogia acima, ao automatizar todos os movimentos da direção, passasse a sentir o “corpo” do carro como seu. No parágrafo 16 de “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche desconstrói a célebre formulação cartesiana.

uma série de afirmações ousadas, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível; – por exemplo, que sou eu que pensa, que, em geral, tem que haver um ‘algo’ que pensa, que pensar é uma atividade e um efeito de parte de um ser, que é pensado como causa, que existe um ‘eu’, finalmente que já está estabelecido o que deve ser designado com pensar, – que eu sei o que é pensar.[3]

Para então, escrever

Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez sentir, ou querer? Em resumo, aquele eu penso pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um saber de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma certeza imediata.[3]

Há como diferenciar sentir ou querer de pensar? Em caso negativo, é possível, então, abolir a alma ou o tal Eu – res cogitans de Descartes-; em caso positivo, estaríamos comparando configurações mentais diferentes e a conclusão seria sempre relacionada – comparada – à outra coisa, impedindo-me assim, de chegar à certeza nuclear, fundacional de todo o conhecimento humano. Nietzsche inverte, portanto, a lógica herdada da tradição: “existo, logo o conjunto de meus pensamentos produz um Eu”. Chega-se à conclusão então, que “esse Eu, esse si-mesmo, é infinitamente mais complexo do que a unidade aparentemente simples da autoconsciência”.[2] Está enraizado muito mais profundamente na existência do indivíduo: funda-se na própria animalidade de suas origens e ocupa um espaço do qual a autoconsciência é apenas a ponta do iceberg. E aí, entra o Zaratustra: “Por detrás de teus pensamentos e dos teus sentimentos, irmão, há um rei poderoso e um sábio desconhecido – que tem por nome Si. Vive no teu corpo, é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.”[4]

“(O corpo) não é apenas ‘a carne’ e a sede das paixões, desejos e desgarramentos, nem mesmo a res extensa, de que cogitara Descartes; ao contrário do que pensara o platonismo e o cristianismo, o corpo não é a prisão do espírito, o oposto da razão. Para Nietzsche, o corpo é a Grande Razão.”[2, grifos meus]. A pequena razão é o Eu. Um brinquedo na mão da Grande Razão. Um subproduto, um epifenômeno. O que faz perguntar, mas, então, para que uma pequena razão tão desenvolvida a ponto de nos enganar como fim em-si, sede do Eu e de mim, por tantos séculos?

(continua…)

1. Nietzsche, F. Fragmento Póstumo 40 [23], agosto-setembro de 1885, apud Giacóia Jr, O. Metafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

2. Giacóia Jr, OMetafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

3. Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal. ¶16, pg 21-22. Trad Paulo César de Souza. Companhia das Letras. 1992.

4. Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra. Dos desprezadores de corpo. Trad M de Campos. Publicações Europa-América. pg 29-31. Portugal. 1988.

USP em Tudo, USP então?

Têm sido divulgados na mídia, dados interessantes sobre a Universidade de São Paulo. Primeiro, a questão do número de doutores: a USP é a que mais forma doutores no mundo. Carlos Orsi no Twitter observou que Oxford estava apenas em 28o lugar nesse quesito e a pergunta que ficou no ar é: o que isso quer exatamente dizer? A USP é seguida pela Universidade da Jordânia e pela Universidade de Tóquio na formação de acadêmicos.

Recentemente, no dia 14 de março de 2012, foram publicados os novos dados da Times Higher Education parabenizando os new entrants no top 100, a saber “Hebrew University of Jerusalem, University of São Paulo, in Brazil, and the Middle East Technical University, in Turkey”, que ultrapassaram universidades do velho mundo. (Veja aqui, reportagem d’O Estado)

Em que pesem as críticas metodológicas sobre os tais “rankeamentos” em geral e de universidades, em especial (veja, por exemplo, a eterna briga dos rankings de clubes de futebol), há mais de 40 rankings de universidades publicados no mundo, inclusive alguns no Brasil e que sempre fazem muito barulho. A discussão é válida enquanto for um instrumento para mudanças. (Veja excelente post do Quipronat sobre o assunto, no ano passado).

Lado Ruim

Eu, particularmente, acho que esse tipo de propaganda acaba não agregando muito à universidade. A USP não cobra mensalidade. Tal exposição, positiva de fato, acaba por servir à acirrada política paulista – lembrar que estamos em ano de eleição -, servindo também à inércia, tão cara a alguns administradores públicos, de manter as coisas como estão. Pior, no caso do número de doutores, há em curso um projeto que talvez acelere sua formação, coisa que já vem acontecendo há alguns anos, como se o número de acadêmicos formados fosse um fim em si.

Lado Bom

Mas há um aspecto positivo. A Lei de Diretrizes Orçamentárias prevê uma destinação fixa de verbas para as universidades estaduais paulistas: os tais 9,57% da Quota Parte do Estado do ICMS (QPE). O Brasil tem várias universidades estaduais mas acho que só as paulistas gozam desse tipo de estatuto (quem tiver dados contrários, por favor me avise, eu procurei mas não achei isso). Justamente, USP, UNICAMP e UNESP que têm aparecido em posições bastante destacadas nos rankings de universidades latinas. Os governos de outros estados poderiam se “animar” com esse tipo de propaganda (que não é ponte, nem estrada!) e destinar mais verbas as suas próprias universidades e para a educação em geral.

Lado Pior

Mas, no melhor estilo “tirar doce da boca de criança”, segundo a ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior ),  “os dados mostram que as universidades não receberam o percentual sobre cerca de R$ 1.422,2 milhão, valor correspondente a impostos recebidos em atrasos e suas respectivas multas e juros de mora, e sobre aproximadamente R$ 741,1 milhões, referentes ao repasse para Habitação, sistematicamente subtraído antes do cálculo dos 9,57%. Ou seja, as universidades públicas paulistas deixaram de receber, no ano passado, um total de R$ 207 milhões (R$ 108,8 mi da USP, R$ 50,7 mi da Unesp e R$ 47,5 mi da Unicamp), montante que deveria ser repassado à educação superior pública paulista, por força de lei, e que o governo Alckmin destinou outro fim.” (itálicos meus).

A ADUSP afirma que a sangria orçamentária foi feita com a anuência dos reitores (CRUESP). Aqui vale aquele ditado que diz que “nego só vê as pinga que a gente bebe, não vê os tombo que a gente leva”…. Por tudo isso, vejo esses números com uma alegria contida e uma atenção redobrada para avaliar como eles serão, ou estão sendo, utilizados. E por quem.

PS. Lamentável a morte do professor César Ades, sob todos os aspectos. Veja homenagens de quem o conheceu de perto aqui, aqui e aqui.

Reanimação Sexy

Por ressuscitação cardiopulmonar (RCP ou CPR, em inglês) chamamos o conjunto de procedimentos que visam reestabelecer a circulação sanguínea estando esta última, interrompida por ritmos cardíacos não-propulsores. (Ao contrário do que muito gente pensa, o coração não necessita estar “parado” para que a circulação assim esteja). Tais procedimentos visam a ação imediata e são extremamente padronizados com poucas variações desde sua introdução na década de 50. No Brasil, temos um sistema de ensino e divulgação da RCP comparável aos melhores do mundo e a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulga essas informações gratuitamente. O vídeo abaixo, é uma propaganda de uma marca de lingeries mas segue os principais preceitos básicos da RCP, tendo feito muito sucesso entre OS residentes do hospital e partilho esse conhecimento com meus leitores agora.

O suporte básico de vida deveria fazer parte do currículo de várias profissões como professores, seguranças e todos os que lidam com agrupamentos humanos. Mortes extemporâneas poderiam ser evitadas.

PS. As moças não dão cursos no Brasil (já tentei). Mas tem outros vídeos médicos “interessantes” aqui.

O Enigma do Ver

Não sei quando comecei a gostar de Cézanne. Talvez tenha sido quando adquiri meu primeiro PC (e único, hehe), um 486, em entrada + 11 prestações para escrever minha tese. Lembro de ficar me divertindo com minha internet discada num sítio de papeis de parede e de ter escolhido este para o computador.

Gardanne - Paul Cézanne, cerca 1885

Vi que era de dele. Não estudei pintura e sei pouco a respeito da biografia de outros pintores, mas Cézanne me pegou de jeito. Sua personalidade introspectiva e tosca, sua tenacidade em perseguir seus objetivos, a amizade com Émile Zola e com os impressionistas parecem tiradas de um roteiro cinematográfico. Mas talvez, o que tenha drenado mais fortemente minha atenção foi sua angústia (tenho tendência a gostar dos angustiados). Toda a cólera e a misantropia de Cézanne podem muito bem ser colocadas na conta de sua monomania, de sua verdadeira obsessão. De sua doença. Merleau-Ponty chega a diagnosticar um tipo de constituição mórbida, uma esquizoidia,  [1, pg 125]. E afirma: “A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, por sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra” [1, pg 135]. E então, eu descobri exatamente porque comecei a gostar de Cézanne:

Há uma relação entre a constituição esquizóide e a obra de Cézanne porque a obra revela um sentido metafísico da doença – a esquizoidia como redução do mundo à totalidade das aparências imobilizadas e suspensão dos valores expressivos -, porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de forma consequente um de seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser esquizóide. [1, pg 136-137]

A doença deixar de ser “um fato absurdo e sem sentido para tornar-se uma possibilidade de existência humana” é a maior das consolações que alguém poderia querer para si. O desejo de sentido transmuta-se em obra. Vários autores assim o fizeram Proust, Nietzsche, Beethoven para ficar em uns poucos. Além disso, e para mim tal pergunta se reveste de grande importância, onde estava a doença de Cézanne? Qual a semente interior que se desdobrava em doença lá em cima? Cézanne se comporta como um portador de uma patologia da expressão. Em neurologia, aos transtornos da compreensão e expressão da linguagem chamamos afasia. Há afasias de compreensão e afasias de expressão. Estas últimas são especialmente angustiantes. Mostramos aos pacientes um relógio ou uma caneta e eles não os nomeiam. Dizem “hora”, “escrever” mas não o nome do objeto permitindo supor que sabem o que é, mas não são capazes de traduzir seu conhecimento em palavras. Cézanne, ouso dizer por tudo que li, tinha um tipo incomum de afasia.

Impressionismo

Princesa de Broglie - Ingres, 1853 - Fonte Wikipédia

Apesar de contemporâneo aos impressionistas e de ter aprendido com eles, em especial com Camille Pissarro, Cézanne nunca se considerou um impressionista de fato. Os impressionistas opuseram-se à escola anterior, neo-clássica, que em Paris tinha como seu maior expoente Dominique Ingres. O estilo de Ingres chega a ser apavorante, tal a capacidade de reproduzir os efeitos luminosos da realidade. Sua técnica era, segundo ele próprio, baseada no “rigor da linha”. Às cores, não era atribuída maior importância, afinal, “não constituíam a forma”, dizia. Seus temas clássicos, com figuras “posadas” e em situações pouco à vontade, formatavam o “bom-gosto” parisiense da época. Para Ingres, as sombras são escuras e as cores equilibradas. Num retrato indoor nada choca ou agride a visão.

Os impressionistas, por outro lado, tinham interesse em captar a luz solar ao iluminar o mundo e impactar a visão. A linha é compreendida como mais uma abstração do ser humano para representar imagens, quem precisa de contornos nítidos sob a implacável luz solar? As sombras têm de ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam, e não escuras ou em tons de cinza ou preto. Contrastes de luz e sombra deveriam ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Quando colocamos uma rosa cor-de-rosa sobre uma cartolina cinza, o fundo adquire tons esverdeados. Um pintor clássico pintará o fundo de cinza, confiando que o quadro, como objeto real, produzirá esse efeito de contraste. A pintura impressionista, com o objetivo de levar os fortes contrastes solares dos ambientes externos para a visualização dos quadros, em geral, em salões fechados e com pouca luz, pinta a rosa sob um fundo verde e a faz saltar aos olhos [1, pg 129]. Veja-se esse exemplo de Claude Monet.

Nenúfares, Claude Monet, 1914-17

Mas Cézanne logo se separou dos impressionistas. Chegou mesmo fazer a afirmação “Monet é apenas um olho” referindo-se ao projeto impressionista de descrever “a dança da luz sobre os olhos” [5, pg 103].

A “Afasia de Cor”

Cézanne queria pintar com a cabeça. Conta-se [1, pg 131] que Balzac em “A Pele de Onagro” descreve uma “toalha branca como uma camada de neve recém-caída e sobre a qual elevavam-se simetricamente os pratos e talheres coroados de pãezinhos dourados”. Cézanne confessou que em toda sua juventude quis pintar isso. Entretanto, “agora eu sei” – dizia – “que se deve querer pintar apenas o ‘elevavam-se simetricamente os pratos e talheres e os pãezinhos dourados’. Se eu pintar os ‘coroados’, estou perdido, compreende? Se realmente equilibro e matizo meus pratos e talheres, e meus pãezinhos como no modelo natural, esteja certo de que as coroas, a neve e tudo o mais estarão ali”. Cézanne tinha uma verdadeira devoção pela cor. Segundo o professor Marcelo Duprat [2, pg 67-68]

A cor em Cézanne funciona como um princípio. Isto ocorre à medida que a aplicação das pequenas áreas de cor rege e conduz o desenho e o claro-escuro das formas. É bem verdade que a distribuição da cor em pequenas pinceladas já era um procedimento típico do impressionismo, como podemos constatar na obra de Renoir, e sobretudo na fase final do impressionismo — no divisionismo pontilhista. Mas, se o impressionismo dissolve as formas pelas vibrações da cor, as formas permanecem lá, submersas, sustentando a obra, enquanto as cores se distribuem de forma independente sobre elas. É, portanto, o tratamento tonal e cromático das formas que é problematizado e não sua estrutura. No impressionismo a estrutura das formas, mesmo sendo trabalhada posteriormente, é compreendida como um dado precedente. Já em Cézanne, é a cor que estrutura, não há um desenho sobre o qual a cor é aplicada, são as cores que formam.

Ou ainda, em uma carta a um jovem pintor [1, pg 130]

O desenho e a cor não são mais distintos, à medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho… Quando a cor está em sua riqueza, a forma está em sua plenitude.

Mas o que seria sua “afasia”, então? Cézanne queria, mais que ninguém, captar a realidade da natureza. Sabia que somos seres visuais e que dentre as coisas que vemos, a que mais nos impressiona é a luz que deve ser traduzida na forma de cor, como nesta carta a Émile Bernard, jovem pintor e teórico que escreveu um livro sobre Cézanne [3. pg 251].

Aqui está, sem contestação possível — tenho plena certeza: — no nosso órgão visual produz-se uma sensação óptica que nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos representados pelas sensações colorantes. A luz, portanto, não existe para o pintor.

Ou também quando afirma que “a luz é algo que não se pode reproduzir, mas que se deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo quando descobri isso” [2, pg 59]. Tudo o mais seria consequência dos contrastes. Sabia também, do delírio que a cor provoca e entendia as técnicas de pintura como abstrações utilizadas para iludir o observador. Ele queria transcender isso e tentar pintar em “linguagem de máquina”. Como, abstendo-se das técnicas mais rebuscadas, conseguir o efeito visual da realidade? Nesse sentido, Cézanne é um primitivista. Também “distorceu” a perspectiva – ela mesma, outro truque -, de suas formas procurando a harmonia mais natural entre os elementos de seus quadros [2, pg 10-24]. Merleau-Ponty é certeiro [1, pg 127]: “Sua pintura seria um paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro. É o que Bernard chama o suicídio de Cézanne: ele visa a realidade e proíbe-se os meios de alcançá-la”. Apesar de saber e conhecer e dominar técnicas, a linguagem que quer criar é “infalável”. Cézanne é um afásico da expressão naquilo que mais lhe é caro, naquilo que ele mesmo criou. O apego a essa condição faz Cézanne sofrer e tentar e tentar… Pinta lentamente. Cada pincelada devendo cumprir uma enorme série de exigências “de luz, cor, profundidade, linha, etc”. Raríssimamente assina um quadro porque também raramente, o considera pronto. É um embotamento, essa insistência, que produz quadros.

E o que eu, finalmente, vejo quando olho para um quadro de Cézanne? Ele dedicou sua vida para que eu visse as coisas como ele via, sem tentar me enganar. Trabalhou arduamente para construir uma linguagem pictórica que fosse primordial e anterior às interpolações cerebrais que faço ao ver/interpretar uma imagem. Fez um desenho de como via as coisas e pediu que víssemos como ele via. Não sei se conseguiu e jamais o saberemos. Entretanto, é possível que ele tenha conseguido ao menos desvendar uma parte que seja, do enigma que é ver. Talvez, no final seja isso mesmo, às doenças caberão o papel de nos mostrar os caminhos de nossa humanidade. Quem disse que não temos um algo mais? Nosso vitalismo não é outro senão esse mesmo, um morbimortalismo que demanda uma escolha: superá-lo ou sucumbir-lhe.

Jogadores de Cartas. Cézanne, 1893-6

PS. O quadro acima – quase um estudo de Cézanne –  foi comprado em 2012 pelo maior valor já pago por uma obra de arte na História.

Referências Bibliográficas

1. Merleau-Ponty M. A dúvida de Cézanne. in O Olho e o Espírito. Cosac & Naify, 2004. Capa dura. Edição bem cuidada de ensaios do filósofo.
2. Duprat M. A Expressão da Natureza na Obra de Paul Cézanne. Ebook em pdf. Interessantíssimo ensaio sobre os aspectos que fizeram revolucionária a obra de Cézanne, pelo pintor e professor M. Duprat.
3. Cézanne P. Correspondência. Martins Fontes, 1992. Compilação de sua correspondência com prefácio de John Rewald.
4. Nonhoff N. Cézanne, vida e obra. Könemann, 2001 (para a edição portuguesa). Bom resumo da biografia e principais obras. Inclusive uma Lot e suas filhas, que não se encontra em lugar algum da web.
5. Lehrer J. Proust was a neuroscientist. Cannongate, 2007.

O Sherpa Subterrâneo

Caspar Friederich - O andarilho

A melhor forma de aproximar-se de um “conhecimento” e operacionalizá-lo de modo a poder emitir juízos com valor de verdade sobre ele é, na minha opinião, escalar-lhe os caminhos montanhosos de suas várias faces dotados das “ferramentas” que nossa condição humana permite. Ciência, literatura, filosofia, artes, são formas de captar o que nos cabe da coisa-em-si humana. Argue-se que um desequilíbrio axiológico em relação ao que representa uma verdade científica e uma literária ou pictórica, pode inviabilizar essa discussão, como a disputa entre o rochedo e o mar. Muito foi escrito sobre isso e tal debate está mesmo na base de uma teoria da verdade que tem na ciência seu modelo mais bem acabado. Por isso, é possível concordar com Albert Levi quando ele diz que “mesmo nossas armas foram roubadas”, pois ao tentar atribuir verdades a obras literárias, p.ex., as julgamos com os “juízes da ciência”.

Esse assunto me é bastante caro como pode ser notado por sua recorrência nesse blog, mas me justifico. Se a medicina não deve ser confundida com a ciência médica – um de seus pilares de sustentação – é porque o paciente não pode ser reduzido à fisiologia, fisiopatologia e farmacologia de suas agruras. Qualquer médico que não seja um cientista em exercício ilegal da profissão sabe que a ciência médica não dá conta do todo de seus pacientes. Adoecer é uma forma de ser-no-mundo que pode ser entendida de várias maneiras. Se assim é, deve haver outros caminhos que conduzam às verdades deste ou daquele pacientes individuais. Mas que caminhos? Perdemos a inocência quando descobrimos o viés. Tais individualidades assemelham-se mais a idiossincrasias sem padrões definidos, a um labirinto no qual não se trilha o mesmo caminho duas vezes.

A nós, médicos de um tempo em que a informação e sua velocidade viral formam a tessitura do real que nos afeta, resta conhecer as outras faces da montanha que constituem um paciente de carne e ossos. Como se não bastasse as centenas de artigos, livros e prática árdua e incessante que visam a resposta à pergunta “o que é?”, ao médico ainda urge a indagação abissal: “quem é esse ser que sofre?” Do que é ele constituído e como esse “material” afeta seu ser-no-mundo? Ah, há ainda o mundo…

Compreenderia melhor se eu sentisse as dores que sentem? Se sentisse a falta de ar que sentem? Acolheria melhor se me acometesse o medo que os acomete? Mestre da interpretação dos signos, sou o mero usuário de um programa escrito pelo paciente no que se refere a este “lado oculto da montanha”. Esse programa, construído ao longo de toda sua vida com a vasta riqueza que flui do contato entre humanos e suas humanidades, me ilude e confunde. Eu precisava “falar” a linguagem de máquina subjacente a esse software. (E não me venham com a psicanálise! Também ela, software. E, ainda pior, metalinguistico).

Foi então que entendi que não estavam nas alturas as minhas respostas. De fato e ao contrário,  precisava de algo como um sherpa subterrâneo, senhor dos caminhos intrínsecos de seu próprio ser. Precisava de um super-paciente com poderes de expressão além do homem que pudesse levar-me ao nível primitivo de sua constituição primordial. Que me conduzisse à crueza e à violência de seus impulsos mais básicos para eu então ver, com meus próprios olhos, onde está a semente que se desdobra em doença lá em cima, lá na superfície revolta e poluída das convenções sociais onde se dá o fatídico encontro. Mas, um paciente assim subverte o equilíbrio de forças na relação com médico subvertendo também, a própria medicina. Ao médico é necessário deixar-se sequestrar por ele o que não acontecerá se ele não tiver a consciência do querer. O médico é treinado para não fazê-lo e, se for bom, não o fará de fato. A única alternativa possível então, é abandonar a arena de embate onde se dá o contato com o paciente e procurá-lo em outros lugares sem deixar de “estar” médico sob o risco de perder o olho clínico que o identifica. E onde encontrá-lo? Antes, onde procurá-lo?

Se consideramos, como acima, outras formas de obtenção de “verdades” com todos os problemas que disso possam decorrer, temos que procurar pelos grandes mestres e por seus vestígios patológicos. Ora, quem dentre os humanos domina a linguagem das artes? Quem dentre nós traduz melhor seus interstícios mais febris em quadros, poesias, livros, esculturas, personagens, música e todas as manifestações do espírito humano? Como é quando um gênio das artes escreve, pinta, compõe, representa, sobre suas doenças ou sobre a forma como percebe as doenças? Ao conceber uma obra de caráter universal, um artista contribui para o corpus cultural da humanidade, criando novos gostos, novas formas de subjetivação, novas formas de ser-no-mundo e com elas, novas formas de adoecer. E o ciclo se fecha.

Por isso, quando um pintor como Cézanne faz a pergunta da criança “se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?” a resposta vem na forma de uma sabedoria profunda. É como se perguntasse “quando eu conto a você a dor que sinto, o que é que você sente?”

ResearchBlogging.orgLevi, A. (1966). Literary Truth The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24 (3) DOI: 10.2307/427972