Hollywood e a Dissolução do Sujeito
“ (…) se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos”.
René Descartes – 2a Meditação
Em conversa com um menino hoje, surgiu a questão filosófica do sujeito cognoscente e a realidade conhecida. As velhas perguntas de como conhecemos o que conhecemos e se o que conhecemos é realmente a realidade. Fiquei pensando em um jeito de explicar isso sem recorrer aos cânones filosóficos chatos e me lembrei de alguns filmes.
É interessante notar, como nota introdutória, que a noção de EU surgiu no século V, na Grécia de Péricles. Descartes, muitos anos depois deu a esse EU poderes quase sobrenaturais e o fez sinônimo de racionalidade. Kant colocou o sujeito como princípio determinante do mundo do conhecimento e da ação. O sujeito kantiano é o fundamento da verdade. Esse foi o modelo adotado pelo ocidente apesar de muita gente avisar dos perigos decorrentes dessa visão. Quando analisamos a constituição desse EU vemos que há um “espírito” que raciocina, sente e interpreta; e um corpo, sede de desejos, doenças e outras características animais. Nada disso faz sentido se não tivéssemos um mundo, pressupostamente inteligível e oxalá pré-planejado, acessível ao EU, doravante denominado sujeito, pois que irá interagir neste mundo dado. Hollywood ama dualismos – no caso, corpo e espírito, bom e ruim, etc – e isso é um prato cheio para roteiristas espertos. Vamos ver como os diferentes diretores e roteiristas jogaram com esses elementos, mas antes, um aviso: é riquíssimo o objeto de análise e o leitor pode encontrar várias outras interpretações diferentes. A ideia aqui é despertar a atenção para algumas simetrias e discutir, mesmo superficialmente, um pouco de filosofia.
Podemos analisar os blockbusters Matrix (1999), Avatar (2009), a Origem (Inception/2010) e Sem Limites (Limitless/2011) porque quase todo mundo viu. Em Matrix, os humanos viviam em casulos tendo seus respectivos sistemas nervosos conectados diretamente a uma realidade virtual (a tal Matrix) onde passavam a vida toda sem poder tocar em algo real. Na Origem, uma máquina de sonhos possibilitava a grupos de pessoas sonhar o mesmo sonho (aliás, um antigo desejo humano). Em Avatar, um planeta paradisíaco, mas inóspito aos humanos, era o palco de uma guerra entre a ganância e o amor a natureza. Em Sem Limites, um escritor mal-sucedido descobre uma droga que aumenta seus poderes mentais e ganha fama e dinheiro. Feito esse resumo mega-resumido, totalmente sujeito a críticas, vejamos o esquema abaixo:
Podemos imaginar 2 eixos de análise sendo um o sujeito e o outro o mundo onde o sujeito atua conforme a figura. Em Matrix, o mundo e o sujeito atuante são virtuais, tanto que o sujeito precisa ser “libertado” para o mundo real. Na Origem, o mundo é virtual mas o sujeito que sonha é real, até porque o autor do sonho que é invadido pelos ladrões faz a maior diferença na história. Em Avatar, o mundo é real, mas inacessível aos humanos sendo necessária a incorporação ou conexão neural com um boneco semelhante aos N’avi criado geneticamente. No Sem Limites, tudo é real, exceto a “intuição” que o sujeito tem do mundo, amplificada por uma droga sintética.
Variações sobre um mesmo tema, nenhuma película abordou a dilaceração do sujeito que ocorreu a partir do século XIX. Todas elas creem no sujeito clássico transcendental. Sujeito que Nietzsche, Marx e Freud demonstraram estar sob o jugo de outros fatores. Com o risco da imprecisão da síntese, Nietzsche considerou o sujeito e a consciência como máscaras da vontade de poder; Marx, o colocou sob o jugo da influência das classes e das relações de produção e Freud, o pôs sob a influência dos subterrâneos da consciência, a psique como máquina desejante, todos manipulando nossos juízos e interpretações da realidade. Filmes que abordam esses assuntos não costumam ser sucesso de bilheteria. Dos inúmeros existentes, alguns que vi e que recomendaria são: Martin Scorsese e Ingmar Bergman. Talvez o Hotel Ruanda, pelos vários conflitos ético-morais. Godard, Ken Loach (esse último indicação do D. Christino. Talvez a Fabiana pudesse indicar alguns também!)
Cabe uma referência ao excelente “O Show de Truman“. Não soube como classificá-lo segundo o esquema acima. O sujeito é, com certeza, real, mas o mundo em que ele atua é dúbio: fictício, dado que há uma realidade externa a ele que o compreende, porém com pessoas reais, que até entram em conflito por participar da enorme farsa. Chama a atenção o fato do filme utilizar a linguagem dos reality shows para falar sobre simulação o que já diz muito sobre esse tipo de reality. De qualquer forma, o filme mostra o sujeito em uma grande tomada de consciência e busca pela liberdade. Emancipação é um bom nome para isso.
Sonho de Memória
Sob a história, a memória e o esquecimento.
Sob a memória e o esquecimento, a vida.
Mas escrever a vida é outra história.
Inacabamento.
Paul Ricoeur
Como a memória se relaciona com o real?
~ o ~
Dona Alzira tem 84 anos e nenhum problema grave de saúde, exceto um Alzheimer avançado. Bebe sua cervejinha e dorme a sesta durante o dia. É capaz de entabular uma conversa na qual, apenas após uns 5 minutos de papo, o interlocutor começa a perceber que alguma coisa não se encaixa muito bem. É divertida e adora um palavrão.
Precisamente hoje, Dona Alzira recebeu, no café da manhã, a notícia de que um grande amigo seu, Vicé (pronuncia-se Vitché), veio a falecer. Olhou para baixo e ficou triste. “Morreu de infarto, dormindo. Pelo menos não sofreu, não ficou numa cama…” Ela não chorou e terminou o café em silêncio.
Foi para seu quarto, tomou banho, trocou de roupas e chamou a filha. Após alguns segundos de insuportável silêncio, começou a chorar bem baixinho. “Que foi, Mãe?” “Não sei. Tive um sonho ruim. Sonhei com o Vicé…”
Carta da Lu ou Sobre como o Mito de Tritão-Sereia influencia a Vontade de Salvar da População Médica Brasileira
O Ecce Medicus pretende, quem sabe um dia, ser um espaço para reflexões sobre a profissão médica. Por essa razão, há algum tempo, venho convidando pessoas, médicos ou não, a escrever sobre suas práticas e vivências relacionadas à profissão de Hipócrates. Hoje, publico uma carta da Dra. Lúcia, médica infectologista e intensivista do Paraná.
“Querido Karl,
Queria te contar como foi a minha semana passada! Faz tempo que não batemos papo, e, devo confessar, faz tempo que mal tenho tempo pra ler o seu blog, que sempre alimenta os olhos e a alma… E põe meu cerebro pra funcionar também! Afinal, nesta nossa correria diária, vivemos embotados, no automático, mantendo a cabeça acima da linha d’água… Ops! É bem esse o assunto! Protocolos e água!
A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, numa parceria com o Corpo de Bombeiros do Estado, patrocinou um curso de Salvamento Aquático. O coordenador foi o Dr Ten Cel David Szpilman, autoridade mundial em afogamento. Tirando o fato de estar na frente de um dos mestres, a emoção estava em nivelar a todos, socorristas, guarda vidas, técnicos de enfermagem, enfermeiras e médicos, desde o ínicio do curso. As estatísticas são impressionantes, caro Karl. Cerca de 7000 óbitos por afogamento todo ano no país, dimensões continentais, não? Pessoas jovens, com grande expectativa de vida, produtivos. Nós nos acostumamos a enxergar o que chega ao hospital, que são os mais graves e mais difíceis de recuperar. Nós acostumamos a pensar que afogamento é coisa de mar grande e rio bravo. Quem se afoga e morre hoje? São mais de 100.000 acidentes não-fatais no BRASIL! Nos pacientes de 1-14 anos, o afogamento é a segunda causa de morte. Na aula de acolhimento com estatísticas, a surpresa: as crianças morrem em casa, na banheira, na piscina, no tanque! Cerca de 70% das pessoas que se afogam no litoral são pessoas que vivem fora da orla. Essa catástrofe crescente está sendo mapeada graças aos esforços e iniciativa do Dr. Szpilmann, que classificou e estudou os tipos de afogamento (link pro site Sobrasa). Os melhores dados do mundo são os dados brasileiros. A educação para a prevenção hoje se mostra a maneira mais racional de combate a esse tipo de morte, uma vez que apenas 7% dos que se afogam em grau 6 sobrevivem, 0,5% sem sequelas. (Clique aqui para ver a classificação de afogamentos. Arquivo pps, em português).
Pra começar, fomos convidados a piscina! Cada dia mais todos convivemos com esportes aquáticos e estamos acostumados a nos divertir na água, no verão. Eu mesma sou uma entusiasta da água: nado desde os oito anos, hoje mergulho, tenho o Rescue Diver como um dos cursos mais importantes que fiz na vida de mergulhadora. Você sabe nadar? Ótimo, não se arrisque. Mas você sabe ajudar alguém em apuros, para que não vire estatística? Coragem e técnica são atributos diferentes e podem fazer a diferença entre a vida e a morte de uma ou duas pessoas (sim, a pessoa em apuros e seu possível salvador! Ops, agora vítima também!). Como profissionais de saúde, sempre somos referência em situações de risco. E, acostumados com a cena hospitalar montada e razoavelmente confortável, como reagir numa situação de salvamento? Você não tem a enfermeira e o oxigênio com a máscara, você não tem quatro pares de mãos habilitadas ao seu redor, você tem apenas você e a vítima. E um momento de festa em família, de lazer e recreação se transforma no seu pior pesadelo, atender, SALVAR a quem você ama! (não estamos discutindo o cunhado nem a sogra, nem as relações familiares…). Choque! Não, não tem desfibrilador, mas sim, um corpo boiando em parada respiratória… Karl, acostumados que somos em salvar vidas, em processos invasivos complicados, em atos médicos e monitoramentos… Só você e a vítima… Sentiu o arrepio?
Hoje, vou pra água mais tranquila! Porque sempre digo: o engenheiro está andando na rua e um prédio que ele não construiu desaba. Ele se compadece e continua. Um advogado assiste ao crime e se protege. E continua. Mas nós médicos, se vemos algum mal súbito acontecendo ao nosso redor, seremos sempre médicos. E se mais alguém souber, ainda respondemos por omissão de socorro, negligência, caso não estejamos prontos a atuar. Esse “inconsciente coletivo”, do médico-Deus, onisciente, onipotente, nos atinge, faz todas as cabeças virarem em nossa direçao. Pois entender como prevenir, evitar, reconhecer o risco, e iniciar o atendimento pré-hospitalar, definidor de quem vai viver ou não nos afogamentos, me faz sentir melhor hoje.
Recebo muitas vítimas de afogamento, de todos os níveis. O conhecimento dos protocolos de atuação, desde a praia até a UTI, nos ajuda a falar uma só língua, entender o valor de cada passo, o empenho do guarda vida, a valorização da VIDA! Quem sempre me impressionou e hoje valorizo ainda mais, é o Guarda-Vidas. PARECE fácil se jogar e tirar alguém da água. Arriscar a propria vida, Karl! Não tem nada parecido na medicina intra-hospitalar! Gastar muita energia, muita técnica e muita garra, não tem nada de fácil. Existem homens (e mulheres) assim. Quem dera existissem coragens, energias, técnicas, GENTES assim, em todas as áreas. Ver e ser parte do mito do Tritão-Sereia, dominar a força do mar por alguns instantes e ver a vida resistindo, lutando, querendo! Isso muda muitas perspectivas.
DEK – Sobre Prostitutas e Próstatas
Este é mais um verbete do DEK. Agora a letra P. Consulte pela categoria para ver outros verbetes.
Vamos às definições do professor (de) português Carlos Rocha.
Próstata
«do latim científico prostata, que por sua vez vem do grego ροστάτης prostátēs, ou ‘colocado na frente de; donde, chefe, dirigente; protetor, defensor’, do verbo proístēmi‘ colocar na frente, pôr em relevo, pôr em evidência’; de pró– ‘diante, na frente’ + hístēmi ‘colocar’; assim chamada por situar-se antes da bexiga»
O câncer de próstata é o tipo de câncer mais comum entre homens chegando a atingir 20% do sexo frágil, a depender da idade. Um professor de urologia com quem tive aula disse que se chegássemos todos aos 100 anos de idade, a incidência do câncer de próstata beiraria os 100%. Não sei se essa afirmação é verdadeira, mas sei que a prevenção é o melhor remédio. Por falar nisso, ela mesma – a prevenção do câncer de próstata – está envolvida em uma enorme polêmica desde que a força-tarefa do departamento de medicina preventiva americano publicou diretrizes contra a coleta indiscriminada do antígeno prostático específico (PSA na sigla em inglês), que é o marcador desse tipo de câncer. Estudos têm mostrado sistematicamente que a detecção precoce do tumor não leva a melhor sobrevida e, pior, deteriora muito a qualidade de vida do paciente. A discussão tem sido acalorada e eu mesmo já escrevi alguma coisa sobre o assunto. Mas voltemos ao prof. Carlos Rocha.
«latim prostitŭo,is,ī,ūtum,ĕre ‘colocar diante, expor, apresentar à vista; pôr à venda; mercadejar com a sua eloqüência; prostituir, divulgar, publicar’, de pro– ‘na frente, diante de’ + statuĕre ‘pôr, colocar, estabelecer; expor aos olhos’, de stātus,us ‘repouso, imobilidade; atitude, postura (de um combatente); assento, situação; estado das coisas, modo de ser’, do radical de stātum, supino de stāre ‘estar’».
“Em Histórias de Palavras — do Indo-Europeu ao Português (Lisboa, A. Santos), de Ernesto d´Andrade, indica-se que ambas as palavras têm em comum os seguintes radicais:
a) *per, que é base das preposições e prefixos pro– em grego e pro– em latim;
b) *stā, «estar em pé, do qual são cognatos o grego hístēmi e o latim statuĕre.”
Pois é. Os termos (apesar de não terem absolutamente nada a ver com Alain Prost) são assemelhados e compartilham a mesma raiz. “Estar na frente” e “expor-se” transmitem ideias relacionadas. Em que pese o fato de ter sido reconhecido um orgão análogo à próstata nas mulheres, ela ainda é exclusividade do universo masculino. Universo este que as prostitutas têm uma capacidade intrínseca de captar. Aproveito uma interessante reportagem para destilar uma ideia. Sempre defendi que a sabedoria das prostitutas deveria ser melhor aproveitada por pessoas que não necessitem (ou optem por) usar o corpo para sobreviver. Uma prostituta aprende muito rápido sobre o mundo masculino. E usa isso a seu favor. Imagine você, leitor ou leitora, que precise, de qualquer forma, agradar alguém, seja do ponto de vista sexual, profissional (por exemplo, vendedores) ou simplesmente social. Se for muito incisivo, a pessoa poderá assustar. Se muito tímido, a outra pode não gostar. É preciso uma leitura muito rápida do que a pessoa quer e, muitas das vezes, nem sabe que quer. Dá uma certa insegurança, não? Como se comportar? É preciso uma sapiência, uma mistura de conhecimento, vivência, experiência, ou mesmo um tino atávico para ser, ali naquele momento específico, o que a outra pessoa gostaria que você fosse, sem que ela saiba que você sabe. Complicado.
“Exibir-se”, “estar a frente” são sinais de força e ao mesmo tempo vulnerabilidade. E poderia surgir então uma estética de onde ninguém jamais ousaria pensar que ela pudesse surgir. A estética da intuição entre a palavra e a coisa. Mas isso, está no olhar de quem vê e não nas “coisas” que se postam a sua frente.
Por Que Não Sou Pediatra
Pouca gente sabe, mas minhas melhores notas no internato foram em estágios de Pediatria. No 6o ano, no Hospital Universitário, fiz um estágio muito bom e um pediatra já famoso na época me disse para fazer residência de Pediatria e ir trabalhar com ele. Fiquei muito lisonjeado e pensativo. Isso significaria acesso a uma medicina de ponta, trabalhar nos melhores hospitais da cidade e uma remuneração bastante interessante. Mas, decidi que não queria Pediatria. Nunca entendi direito essa minha decisão e alguns acontecimentos recentes me fizeram refletir sobre essa (não) escolha de tempos atrás.
Não há nada, nem haverá jamais nada sequer semelhante, em magnitude ou poder capaz de nos confrontar com a realidade da ausência de sentido ou propósito; com a propriedade de relativizar a textura do real com a força devastadora do que poderia ser chamado de um tornado afetivo; ou de sufocar aquilo que o humano tem de mais precioso que é sua esperança, que a morte de uma criança.
Não me refiro a assassinatos. Nesse caso, os canhões de nossa ira apontam para um culpado e lá descarregarão todas as esperanças frustradas, toda a decepção por compartilhar de uma mesma humanidade, toda a revolta e o ressentimento.
Me refiro ao que poderia ser chamado de “morte natural”. Uma morte por doença, uma morte médica. Uma qualquer? Por exemplo, leucemia. Que raios uma célula-tronco que deve produzir células brancas “cria” uma linhagem-clone com uma certa vantagem reprodutiva de modo que essa linhagem logo toma conta de todo o setor de produção de células brancas, e também vermelhas e plaquetas, ganhando o sangue periférico, invadindo orgãos, subvertendo funções…E após 2 anos de sofrimento extremo, a vida de uma criança é varrida do planeta.
E as pessoas que têm um Deus se perguntam: por quê? As que não têm, fazem exatamente a mesma pergunta. Estamos todos presos à natureza humana. Uma natureza desejante e insatisfeita; delirante, imperfeita, incompleta. Pelo menos desse karma existencialista consegui me livrar. Restaram, entretanto, todos os inumeráveis outros.
Religiosidade e Ética Científica
A pergunta do post anterior tem uma razão de ser. Foi publicado um artigo no New England (pdf gratuito, ver também a referência na “medaglia” abaixo) traçando um paralelo entre os países da Europa e os Estados Unidos quanto a postura em relação a pesquisas com células-tronco. O artigo categoriza as populações de entrevistados de acordo com políticas públicas de financiamento em cada país, preferências políticas (em especial nos EUA, onde a divisão republicanos vs. democratas permite uma visualização mais fácil do problema) e religiosidade.
Olhando os números mais de perto, 60% dos americanos entrevistados são a favor de pesquisas com células-tronco e 30% acham que ela devia ser proibida, mesmo que isso custasse um atraso no tratamento de algumas doenças. À pergunta “você acha que a pesquisa com células-tronco deveria ser proibida?” 71% dos islandeses responderam “não” e 25%, “sim”, o maior índice de aceitação. Já a Áustria teve 33% “não” e 60% de “sim”, respectivamente, a maior rejeição. A divisão de partidos políticos mostrou nos EUA, que os republicanos, mais conservadores, são a favor da pesquisa em 52% e que ela não deve ser proibida em 51%. Quando comparados com os democratas, mais liberais, 67% deles são a favor. O artigo ainda envereda pela questão se o governo deveria financiar tal tipo de pesquisa e as respostas seguem mais ou menos o mesmo padrão. O que eu queria chamar a atenção aqui era mesmo sobre a religiosidade e a aceitação da pesquisa com células-tronco. Mas antes, um pequeno parêntesis.
Ao analisarmos 2 eventos sequenciais, por exemplo, uma borboleta esvoaçar pelo meu jardim e ocorrer um terremoto na Tailândia, 3 situações podem ocorrer: 1) A borboleta causa o terremoto; 2) A borboleta não causa o terremoto e 3) Não faço a menor ideia se ela causa ou não a porcaria do terremoto. A terceira em geral, é a grande maioria das respostas. Mas, se quisermos “dominar” a natureza precisamos saber se um evento causa ou não o outro. Para demonstrar as duas primeiras é preciso estabelecer uma relação de causa-efeito (#1) ou de não-causa-efeito (#2). Colocado assim, de forma bastante simplista, esse é um dos principais objetivos da ciência: estabelecer relações de causa-efeito. Há inúmeras maneiras de se conseguir isso. Em medicina temos várias limitações e muitas vezes utilizamos uma “metafísica” chamada Estatística para nos indicar um caminho. Outra maneira, e talvez uma das mais elegantes, seja encontrar um tipo de relação entre um evento e outro que pode ser chamada de “curva dose-resposta” (tem outros nomes, eu chamo assim, porque aprendi assim na farmacologia). Nessa relação, toda vez que aumentamos a intensidade de um evento desencadeador, temos um aumento do evento desencadeado (dentro de uma certa faixa). Posto isso, podemos observar a tabela do artigo em questão que coloquei abaixo.
Com todas as críticas possíveis e imagináveis em se categorizar um troço totalmente arbitrário como religiosidade no número de vezes em que se vai a um culto, temos aqui um exemplo da tal “curva-dose resposta”. Quanto maior a frequência em que uma pessoa vai a um culto, maior a chance de achar que a pesquisa com células-tronco deva ser proibida em seu país. Religiosos graduados em “nunca vou ou vou 1 vez/ano”, “vou mensalmente ou anualmente” e “vou semanalmente ou mais” respondem “proibir” na Europa em 33, 41 e 49%; nos EUA em 18, 33 e 40%, respectivamente.Enquanto que os “sem-religião” ficam em 29% e 18% na Europa e EUA, respectivamente.
O que essa pesquisa demonstra? Que a religiosidade (definida nos termos do artigo), nos países estudados, gera uma certa aversão à pesquisas científicas com embriões humanos mesmo que isso custe um atraso no desenvolvimento de tratamentos para algumas doenças como traumatismos raquimedulares. A pergunta que se segue é: Por quê?
A busca de outras fontes de eticidade que não a de cunho eminentemente metafísico, dependente de conceitos como “criador”, “força maior” ou “Deus”, etc, e, principalmente, de uma crítica sobre a maneira como tais conceitos são manipulados pelas diversas formas de religiosidade, é fundamental para a construção de uma ética laica que, por sua vez, fundamentará decisões em comissões de ética, conselhos de pesquisa e outros orgãos de extrema importância para quem quer fazer pesquisa séria e de boa qualidade. As diferenças entre decisões de pessoas religiosas e não-religiosas devem ser melhor estudadas se quisermos uma ética consensual. Do meu lado, em que pese o papel importante que a religião possa ter desempenhado como guardiã da ética, permitir que pessoas sofram de doenças potencialmente curáveis em detrimento a um blastocisto que iria para o cesto de lixo é de um obscurantismo incompreensível.
Blendon RJ, Kim MK, & Benson JM (2011). The public, political parties, and stem-cell research. The New England journal of medicine, 365 (20), 1853-6 PMID: 22087677