Inception
– TOLOS! – gritou o velho – vocês são crianças idiotas.
Perplexos, eles entreolharam-se em meio à roda que se formara com as carteiras. O tempo parecia ter parado e a atmosfera podia ser fatiada à faca.
– Qual a razão de alguém querer tornar-se cientista? Hein? Me digam. Vocês se acham superiores às pessoas comuns? Vocês acham que seus cérebros treinados em pensamento formal, lógica, relações de causa e efeito e o cacete é melhor para entender as coisas do mundo da vida do que o de um cão vagabundo que sobrevive às custas de seu próprio instinto? Pois lhes digo. Conhecimento é instinto! Não é possível conhecer sem sentir. Conhecer é sentir. Saber é sentir…
Parou de falar subitamente, olhou para baixo e rodopiou sobre seu silêncio no círculo de carteiras. O barulho de um grafite se fez ouvir e o velho pareceu ter levantado as orelhas como um animal a pressentir uma presa, caminhou lenta e pesadamente e reiniciou, dirigindo sua fúria para a menina que anotava seu desabafo. Desta vez, falava baixo, com um leve sorriso de escárnio.
– Eu tenho asco da figura monástica do cientista em sua busca ascética pela Verdade – e continuou, virando-se para o teto – Ah, o mongezinho em sua sala fria, cheia de vidrinhos e livros, estudando, estudando, esperando a benção da Verdade. PÁRA! – o grito ecoou pela sala. A menina soltou o pequeno bastão – que fez um ponto no caderno e caiu no chão -, vidrada. Os olhos do velho faíscavam. Sua fisionomia quase sempre cansada e com ar enfastiado parecia ter perdido o peso dos anos e ganhado vigor e excitação. Os cabelos poucos e brancos em desalinho emolduravam um rosto vincado de rugas, mas que transmitia força. Que força tinha o velho!
– Esse foi um dos Grandes Erros. Você existe porque sente que existe, nada além disso. E sentir é muita coisa. Sentir é a coisa. Sentir que sabemos é o mais potente dos afetos.
– Calma, meu! Esse é o primeiro. Espera pra ler o resto!
– Eu ainda gosto mais do Sandeman. Sei lá, o desenho. Menos texto, mais ação…
– O desenhista é alemão. O roteirista um hindu que mora na Nova Zelândia. Você queria o que?
– Pelo menos a mina é gostosa, hehe.
O Check-up, “Procuradores” e “Achadores”
Muitos pacientes vão ao consultório e dizem “Dr. gostaria de fazer um check-up!”. Em geral, dizem isso acompanhado de um “já tenho 30 e tantos anos e nunca fui a um médico, preciso me cuidar, né?”, esperando aprovação e reforço positivo. Vou avisando, “sou contra check-up”. Em especial, nos moldes como ele foi introduzido numa prática de cuidado de si, no início da década de 70. Me explico.
Entenda-se aqui por check-up o procedimento no qual um cidadão ou uma cidadã submetem-se aos mais variados exames e consultas com especialistas em, digamos, uma tarde. A coisa varia de lugar para lugar, mas em geral, consiste em endoscopia, colonoscopia, otoscopia, teste ergométrico, ultrassom de abdome, ecocardiograma, radiografia de tórax, toque retal, exame oftalmológico e os mais variados exames laboratoriais incluindo marcadores tumorais, perfil hormonal e, mais alguma coisa que, com certeza, esqueci. O detalhe que faz toda a diferença é que, apesar de serem checadas possíveis queixas dos avaliados, NÃO É POR ESSA RAZÃO QUE ELES ESTÃO LÁ!
As razões que levam essas criaturas a um centro de check-up, na grande maioria das vezes, são corporativas. Estimativas feitas por uma revista semanal de grande circulação em 2003 com os 3 maiores centros de check-up de São Paulo (ver quadro ao lado, clique para ver a origem) mostram que 80% deles são financiados por empresas. Em que pese o interesse individual das pessoas em cuidar da própria saúde, há outros interesses sobre o bem-estar de um executivo e esse tipo de prática acaba caindo no que Foucault chamou de biopoder que tem no corpo o palco de uma política onde exerce sua força.
O check-up se insere em um tipo específico de procedimento médico chamado de rastreamento (rastreio, em Portugal, screening, em inglês) que é o fato de alguém que não tem queixa nenhuma (repare que não digo que não tem doença nenhuma) submeter-se a procedimentos médicos com o intuito de diagnosticar algum mal oculto. Baseia-se no fato de que existem doenças silentes, que não provocam sintomas quaisquer, mas que, mesmo assim, podem causar dano futuro. Se pudermos diagnosticá-las precocemente poderemos evitar muitas complicações e até evitar a morte.
As críticas feitas ao check-up podem ser divididas em dois grande grupos. O primeiro grupo diz respeito a um tipo de “subversão da ordem médica clássica”. A medicina, desde os seus primórdios, foi construída como uma relação entre dois seres humanos e se inicia com as queixas de um deles ao outro. Na ausência desse passo fundamental, o que se segue pode ser classificado como tecnologia médica ou picaretagem, mas não propriamente como medicina. Nesse caso, não há o encontro do paciente com o profissional da saúde. Há exames frios que produzem números frios. É uma relação centrada nos exames. Hoje, a possibilidade de investigação laboratorial é gigantesca. Acho engraçado quando um paciente diz “doutor, fiz TODOS os exames e ninguém achou nada”. Não digo impossível, mas é economicamente inviável e biologicamente muito agressivo, alguém fazer todos os exames possíveis na medicina hoje. É possível “virarmos alguém do avesso”, diz um médico amigo. O que fazer com todos os dados gerados em um check-up é algo que nem sempre é muito bem estabelecido.
Outro grupo de críticas remete ao processo heurístico do investigar. Isso é bem exemplificado pela diferença entre o “procurador” e o “achador”. Um procurador tem uma meta que deve ser encontrada, um objetivo. Um achador, acha, encontra coisas que nem sempre sabe se têm valor ou não. O check-up é um processo “achador”. Uma consulta médica, “procurador”. O check-up é centrado no exame. A consulta, centrada no médico. Há vantagens e desvantagens em ambos. Em determinados momentos, na consulta, preciso me vestir de “achador” por total falta de opções. Em centros de check-up bem organizados, os médicos conversam com os clientes e tentam dirigir mais os exames.
Além disso, exames de rastreamento também têm efeitos colaterais! Muita gente pensa sobre isso como pensa em medicação homeopática: “mal não faz!” Faz mal, sim; e muito. Erros comuns: 1) “Meu convênio paga”. Errado! Quem paga é sempre você (ou sua empresa). Quando seu convênio subir a mensalidade por sinistralidade, você não vai ficar feliz; 2) “Fazer exames preventivos é sempre bom”. Desde que esses exames sejam interpretados de forma correta. Interpretar um exame não é olhar o intervalo normal e dizer “está dentro” ou “está fora”. Interpretar um exame é saber, primeiro, se ele é válido ou não. Para um médico um exame é válido quando corrobora (ou ajuda a descartar) uma hipótese diagnóstica. Mas, os clientes do check-up são a null hypothesis, pois os médicos não têm nenhuma “teoria” a respeito deles, já que eles não têm, em geral, nenhuma queixa. Além disso, o médico tem que valorizar ou não determinados exames; tentar detectar se aquela alteração é um simples achado sem significado clínico ou se temos que ir atrás daquilo com exames mais específicos. Dentre as várias formas de se fazer isso, uma é a que encaixa os pacientes em determinados grupos de risco. Encaixar um paciente em um grupo de risco significa que determinado exame, caso resulte positivo, tem um valor maior neste paciente específico que em outros, que não fazem parte desse grupo de risco. Dizemos que o valor preditivo (no caso, o positivo) do exame é grande e isso ajuda a discriminar os pacientes. Para encaixá-los em determinado grupo de risco, eu preciso conversar muito com o paciente. Preciso saber de sua família, de seus hábitos, de seus antecedentes todos. Um exame não ajuda outro exame, eles são variáveis independentes. Precisamos “calibrar” a pontaria de um exame estimando a probabilidade pré-teste. Só depois disso, posso valorizar ou não, descartar ou não, determinado exame.
Com todas essas críticas, fui questionado pelo meu irmão que trabalha no mundo corporativo.: “Então tá, se o check-up não é a melhor maneira de estimar esse risco, o que é que você sugere colocar em seu lugar?” Uma política centrada em um médico da empresa, que conheça seus funcionários na saúde e não na doença. Um tipo de médico de família corporativo que possa dosar a política do “achador” e do “procurador” e tirar o melhor de cada uma delas. Vai economizar verba, sangue, encheção, tubos, biópsias e procedimentos invasivos desnecessários.
DEK – G e o Feminino
Ginecologia. A especialidade médica que cuida de problemas relacionados ao corpo feminino. Vem do grego arcaico gynē, γυνή (que também derivou a moderna palavra grega para mulher gynaika, γυναίκα) significando mulher + logia significando estudo, literalmente portanto, estudo das mulheres. Não sou mulherologista mas reconheço que o assunto é muito interessante. Seja bem-vindo ao DEK, esta é a letra G.
Parece haver mesmo uma origem indo-europeia comum para essas palavras. A raiz gwen-, é a fonte da palavra inglesa queen (do inglês arcaico cwēn significando mulher, nobre ou não) e que também pode ser visto em dinamarquês moderno (kvinde), em sueco (kvinna) e em persa (zan). A palavra mulher entretanto, não pertence a essa estirpe. Origina-se do latim mulier, que por sua vez, vem de molleris (fraco, sem músculo). Essa raiz originou também “molusco”, “mole”, contrapondo pejorativamente o espírito feminino ao do guerreiro. Há outros autores que associam o termo mulher com o latim moler que originou moinho, moleiro aludindo às tarefas domésticas. O fato é que em latim ainda, a palavra femina demonstra uma outra maneira de ver a mulher na sociedade. Em francês femme, em italiano donna (moglie é esposa), mulher acabou predominando entre os latinos apenas na Ibéria. Cabe-nos transcender a origem da palavra.
Quem faz residência médica em Ginecologia, também faz em Obstetrícia e vira um GO, apelido da especialidade. Obstetrícia vem de obstetrix que quer dizer parteira. Provém do verbo latino obstare que quer dizer contrapor. Literalmente, aquela que se contrapõe à saída do feto (no sentido de apará-lo e ampará-lo). Por falar nisso, obstetras cuidam de grávidas, que é um atributo exclusivamente feminino e também começa com G. Gravidez, transmite mesmo a ideia de peso. Vem do latim, gravidus,a,um (carregado, cheio, pesado). Em medicinês falamos gestação e gestante. Do latim, gestare (gerar).
Não poderia, por fim, de deixar de falar do tal ponto G. Há ainda muita controvérsia sobre a existência ou não de uma zona retropúbica na parede superior da vagina cuja estimulação geraria extremo prazer, orgasmos múltiplos e até ejaculação feminina. Os sexólogos insistem em ensinar as mulheres a localização e a utilidade do ponto G enquanto ginecologistas e pesquisadores insistem que a região pode não existir de fato e que os sexólogos se apoiam em estudos anedóticos. Em recente pesquisa no PubMed com o termo “G-spot” no título consegui 30 artigos sendo os 3 primeiros de 2010 (nenhum em inglês). Os títulos são os seguintes:
Buisson. [The G-spot and lack of female sexual medicine]. Gynecol Obstet Fertil (2010) vol. 38 (12) pp. 781-4
Magnin. [Does the G spot exist?]. Gynecol Obstet Fertil (2010) vol. 38 (12) pp. 778-80
Pastor. [G spot–myths and reality]. Ceska Gynekol (2010) vol. 75 (3) pp. 211-7
Todos discutindo ainda a controvérsia do ponto G. Para uma boa discussão sobre o assunto ver aqui (em inglês).
Para mais sobre o DEK, ver aqui.
Foto de Nicole com o nenê daqui.
Perguntona Não-Governamental
Acho que a política indigenista de algumas Organizações Não-Governamentais sofre uma crise de filosofia de trabalho, ou eu não consigo entender bulhufas. Fico ouvindo entrevistas e percebo que são utilizadas formas diferentes de considerar o índio, de acordo com a conveniência do discurso. Por favor, se alguém conseguir resolver essa aporia, me explique. Se não, vejamos:
Muitas das políticas que buscam ajudar populações indígenas à beira da extinção baseiam-se no fato de que tais populações devem ser vistas de forma diferenciada. Por terem outra matriz cultural – que, por si, já é (ou deveria ser) considerada um patrimônio -, outra forma de se relacionar com o meio ambiente, outra religião, etc, têm, portanto, que ser consideradas de forma diferente. Isso, ao fim e ao cabo, embasa as políticas que consideram o índio inimputável perante a lei (“dos brancos”), e também, fortalece a ideia de que o índio é um cidadão brasileiro menor.
Por outro lado, a despreconceitualização do índio passa pelo fato de reconhecê-lo como um par, um “do mesmo nível”, nas palavras de um indigenista, “mais um diferente dentro de um grupo de iguais”. É isso que as ONGs chamam de valorização da diversidade. Mas, “quando vemos um índio de shorts ou usando um telefone celular, torcemos o nariz e dizemos, olha aí, ‘isso’ não é mais índio!” – como disse um repórter referindo-se à forma como o homem comum se refere a grupos indígenas.
Mas, a pergunta então é como posso considerar alguém igual e diferente ao mesmo tempo? Se as ONGs trabalham com as duas matrizes conceituais concomitantemente, seu discurso soará tão verdadeiro como uma nota de 3 reais; como algo que contém uma pegadinha oculta e não sensibilizará os que estão, por exemplo, brigando por terras. Discursos antropológicos como o de que “culturas milenares desaparecerão” ou “línguas raras serão varridas do mapa” têm colocado o índio em rota de colisão com o desenvolvimento do Brasil, com todas as consequências que isso possa ocasionar.
“Aculturar ou conservar como é?” Essa é a pergunta que tem como base conceitual o fato de considerarmos o índio um igual ou diferente, respectivamente, em relação a nós. Eu não sei responder. Você sabe? Desculpa o pitaco onde não fui chamado.
Doenças Também Morrem ou Sobre o Morbicídio
Algumas doenças morrem. Sim, pois se tratamos as doenças como “seres” – ou, como diria um filósofo, se as abordamos ontologicamente – é possível matá-las, pois tudo que é pode, um dia, deixar de sê-lo. (Seja por morte natural ou por assassinato!). A abordagem ontológica das doenças é interessante e trouxe aquisições importantes para a medicina. Uma alternativa a ela é a abordagem fisiopatológica segundo a qual a doença nada mais é que um desvio da fisiologia normal do sujeito. Não há um ente que invade o organismo e o modifica. É o próprio que, ao funcionar incorretamente, apresenta sinais e sintomas que podem constituir a doença. Mas não é isso que quero falar aqui.
Quero falar sobre metáforas médicas; sobre gavetas metafóricas, na verdade. Recipientes com rótulos que podem ser organizados, catalogados (e muitas vezes, essa é a única coisa que se pode fazer!) que chamamos de doenças, males, sindromes, etc. Qual seria a substância de que é constituído o conteúdo desses recipientes? A linguagem, claro! Por isso, ao criarmos “seres” linguísticos capazes de facilitar a comunicação entre os médicos e destes, com seus pacientes, podemos passar a considerá-los, em determinado momento, obsoletos, contraproducentes, falsos. E então, temos que eliminá-los.
Querem um exemplo de doença que morreu?
Há vários. Já falei disso em outro lugar, mas vale lembrar a Drapetomania. Uma “estranha” doença que acometia apenas negros escravos que “teimavam” em fugir de seus senhorios mesmo sofrendo penas horrorosas por isso. Mas, um dos casos mais interessantes de morbicídio é o da histeria. Por longos 2000 anos, a histeria foi um problema para os médicos. Pode-se dizer que “inventamos” a psicanálise a partir de um caso de histeria. Acho que a história da histeria mereceria um post só dela (há boas referências em inglês como por exemplo, essa).
Mas, o que nos contam as histórias sobre a histeria e outras doenças que já se foram? Nos dizem, primeiro, que somos desejo e linguagem. Que o social pode ser anterior ao biológico, ao menos no que diz respeito à formação do sujeito humano. (E não há doença sem um sujeito-doente). Ao buscar as formas como o sujeito se relaciona com o conjunto de referências que o caracteriza, o médico o compreende (no sentido de entender totalmente). O médico deveria então flanar sobre a fluidez dos diagnósticos, nuvens conceituais. Não, chafurdar nelas.