Baixo
A década de 70 teve a fase áurea da Motown nos EUA e alguns desdobramentos no Brasil. Dizem que Hyldon “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, no começo dos anos 70, tinha uma banda com o Cassiano “Estou Ficando Velho e Acabado” chamada Os Diagonais. Depois que Os Diagonais acabaram, Hyldon foi aos EUA e de lá voltou com um disco do Earth, Wind & Fire e pôs para Caetano Veloso ouvir. Ele ouviu e gostou. Pegou a banda Black Rio, que já fazia um baita som misturando soul e samba, e gravou “Odara”, uma música MPB com a levada impressionante do baixo funk de Jamil Joanes. Check it out
Aqui mais um som da Black Rio – Maria Fumaça – ao vivo. Com repinique, guitarra com som de cuíca e Jamil slapeando aos 1:28, atrás. O baixo é groove total e o som, de uma atualidade impressionante.
O baixo elétrico e o contra-baixo são instrumentos grandes, de cordas pesadas. Fazer um solo com um trambolho desses não é uma coisa muito simples: o baixo não foi feito para solar. Por isso, um solo de baixo é inusitado e chique. Diria até, sensual.
Um dos baixistas mais “interessantes” do momento é uma moça. Seu nome Tal Wilkenfeld. Rapaz, esse solo com Jeff Beck no Crossroads é de arrepiar. A música chama-se Cause We’ve Ended as Lovers.
Aproveitei pra pegar dois papeis de parede do vídeo, evidenciando a performance maravilhosa que fez até o mito JB curvar-se – presentes do grande amigo DRH – e disponibilizo aos amantes do baixo.
Repare na mãozinha em contraste com o baixo!
Dali e o Reducionismo Genético
A medicina sofre com as tensões da ciência médica como sofre uma mãe com as eternas brigas e discussões de seus filhos. A ciência que embasa a medicina pode ser, grosso modo, dividida em seus domínios de atuação: laboratórios, pacientes e populações. As divisões não são estanques como se poderia imaginar e há, na verdade, uma transição progressiva de um domínio para o outro com áreas de sobreposição, como mostra a figura abaixo, que não canso de utilizar em aulas, discussões e posts.
Acredito que medicina vive hoje sob o jugo dos estudos populacionais por uma série de razões que não vêm ao caso agora (para ler mais, veja Certezas Médicas, e a série sobre o Risco) e isso também tem lá seus efeitos colaterais. Mas, o segundo lugar é que está uma briga de foice. Os estudos focados em laboratórios (experimental) e pacientes (investigação clínica) têm se engalfinhado em tentar mostrar quem trouxe mais contribuições para a ciência médica. Nos últimos anos, os estudos experimentais têm ganho de goleada. Agências fomentadoras têm diminuído verbas para pesquisas em fisiologia humana que, aliás, tem sido chamada pejorativamente de Paleo-fisiologia, em detrimento à Biologia Molecular. Ao redor do mundo, departamentos de fisiologia foram trocando de nome, os velhos professores de fisiologia foram se aposentando e dando lugar a pesquisadores cada vez mais voltados para a revolução dos “Omics“.
Os fisiologistas resmungam. Taxam os biólogos moleculares de reducionistas e de, por isso, perderem a noção do todo. Na edição de setembro do Journal Applied Physiology, uma das cartilhas ideológicas dos fisiologistas, um artigo interessante foi publicado [1] (e me foi rapidamente enviado por um amigo que sabe que eu gosto do assunto). O autor começa dizendo que o reducionismo, com os vários sabores da biologia molecular, falhou em possibilitar a tão prometida revolução na medicina clínica. A assim chamada “ortopedia biomolecular” – doença => gene defeituoso => conserta o gene => cura a doença – não teve o sucesso previsto. Atribui isso ao desprezo da biologia molecular à regulação e à homeostase.
A fisiologia, como toda ciência decente, tem sua metafísica. Ela se chama homeostase. Homeostase é um conceito difícil de captar (como todo conceito metafísico) e é preciso adquiri-lo no escuro. De posse dele, o mundo maravilhoso da fisiologia se abre para você. Em 1865 Claude Bernard escreveu na “Introdução à Medicina Experimental” – livro que funda a ciência médica do século XX – que a “constância milieu intérieur era uma condição essencial à vida livre”. Mas a palavra-conceito ainda não existia. Coube ao fisiologista americano Walter Cannon num artigo do Physiological Review de julho de 1929, impressionado com a “sabedoria do corpo” (título de um livro seu publicado anos depois, veja se não é metafísico isso!), cunhar a palavra homeostase a partir de radicais gregos, significando “permanecer o mesmo”. Tendo uma origem assim, tão nobre e fundacional, não era de se estranhar uma legião de seguidores e adoradores. Em que pese a quase “sacrossantidade” do termo, a homeostase rendeu (e rende ainda!) importantes desdobramentos científicos pois, com ela, elucidaram-se uma miríade infindável de mecanismos reguladores do funcionamento dos organismos vivos, tantos e com tal sucesso, que a fisiologia sentiu-se poderosa o suficiente para permitir-se teleologizar. Mas isso é uma história que conto outro dia.
O autor do artigo em questão, após citar vários exemplos onde conceitos fisiológicos levaram a conclusões contraintuitivas e a modelos bastante frutíferos, argumenta ao final se biologia molecular e fisiologia não poderiam funcionar como instrumentos um do outro. Conclui afirmando que a biologia molecular não quer ou não pode executar essa ideia, mas que à fisiologia (…) it is possible to incorporate reductionist tools in a physiological context to gain broader biomedical insights, indicando uma possível superioridade de uma abordagem em relação à outra.
A medicina é, por natureza, integrativa. Uma máxima conhecida (e implantada tal qual um chip em nossos cérebros) é a de sempre tentar atribuir a sintomatologia de um paciente a apenas uma doença. Um tipo de navalha de Ockham hipocrática. Isso, necessariamente, implica uma interrelação entre orgãos e funções, em especial nas doenças sistêmicas. O agrupamento de sintomas concorrentes em sindromes levou à descoberta de vários mecanismos fisiopatológicos únicos. Há doenças nas quais a abordagem fisiológica é imprescindível. Exemplos, Sindrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), a via final comum de uma série de insultos que terminam em lesão pulmonar grave. Há outras, entretanto, que só descobrimos com abordagens epidemiológicas e aqui se incluem os fatores de risco, entre eles a hipertensão e o tabagismo, como causadores de problemas. Por muitos anos, a terapia de reposição hormonal em mulheres pós-menopausadas foi recomendada por “fazer sentido” biologicamente. Estudos populacionais mostraram que, contraintuitivamente, ela acabava fazendo mais mal que bem da forma como estava sendo prescrita.
Defeitos nos genes não são doenças. Em geral, ocorre o contrário. Temos a doença e vamos atrás de uma causa genética. Em muitas encontramos os defeitos donde surgiu, então, a promessa de consertá-los para curar as doenças e que acabou não se cumprindo. O artigo foi publicado nas várias revistas da American Physiological Society ao mesmo tempo e é acompanhado de um editorial [2]. Nele, os autores reforçam o papel “translacional” (como traduzir isso?) da fisiologia. Esta, por sua vez, seria a forma essencial de haurir dos genes algo que fizesse sentido em medicina clínica. Eu ainda acho que genes podem contar uma história evolutiva da nossa espécie que seria – e vem sendo – muito importante para a medicina. De qualquer forma, concordo que o pensamento reducionista, ao menos na medicina, não se basta. É preciso pensar num todo funcionante, com o risco de, em caso contrário, transformarmos os pacientes nos homens-gaveta de Dali.
[1] Joyner, M. (2011). Giant sucking sound: can physiology fill the intellectual void left by the reductionists? Journal of Applied Physiology, 111 (2), 335-342 DOI: 10.1152/japplphysiol.00565.2011
[2] Peter D. Wagner and David J. Paterson. Am J Physiol Heart Circ Physiol, September , 2011; 301 (3): H627-H628. Published online before print July 2011, doi: 10.1152/ajpheart.00649.2011
Manifesto Ateológico
Casa nova. Cara nova. Gente nova no espaço. Talvez seja um momento interessante para reforçar algumas ideias. Com Onfray.
Meu ateísmo é tripartide. É, antes de mais nada, um anti-platonismo. Uma economia brutal de imaginação. Um artificialismo rossetiano. Por que não “propor-se o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato jubiloso”? Por que não “compor com o corpo em vez de propor detestá-lo”?; compreender paixões e pulsões, desejos e emoções, em vez de extirpá-los num dilaceramento de si. Para quê uma outra vida, uma outra história, um outro sentido? O sentido é esse mesmo que você sente; não há outro. Por que não, apenas e tão sómente, um puro prazer de existir?
Meu ateísmo é, também, uma anti-ciência. Anti-ciência dos fariseus, anti-ciência como mito da sociedade moderna com a resposta para todas as dúvidas e anseios da besta humana. Contra a figura ascética e monástica do cientista-sacerdote, único caminho para a Verdade. Contra o proselitismo pagão. A vontade de saber é apenas um outro afeto humano, apesar de ser o mais potente deles. Não compreender isso, é não saber. É ser um “ateu cristão”. É acreditar nas formas divinizadas da natureza, do homem, da história e do mundo.
Meu ateísmo, por fim, é uma Não-Crença e não uma “crença no não”. É uma vigilância metafísica. É a reafirmação da vida, estética, elegante, ética, atômica. É a encarnação do viver aqui e agora. É o morrer heróico, como a morte de um leão.
O Paradoxo da Homofilia
Não errei, não. Não quis me referir à doença hematológica que faz com que seu portador necessite transfusões de hemoderivados hemocomponentes frequentes. Vou, na verdade, falar sobre outra doença, essa talvez mais grave, mais prevalente, mais vil…
Por detrás da manchete, “apenas” mais um caso de agressão a uma “bichinha”. Chamou minha atenção, o fato de o agredido trabalhar na área da Saúde. Talvez por essa razão, minha máquina de esquecer não tenha funcionado direito e remoí esse fato alguns meses até que uma outra estória me fez lembrar do que não tinha esquecido…
Como é de conhecimento dos poucos, porém altamente seletos leitores e leitoras deste blog, gasto ainda grande parte do meu tempo em unidades de terapia intensiva pelos hospitais da grande São Paulo. Tenho notado que a área da Saúde trata seus não-heterossexuais da mesma forma que outras áreas do mercado de trabalho “teoricamente” menos esclarecidas sobre as nuanças da sexualidade humana, a saber, com preconceito e violência. Tenho convivido com médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiros, fisioterapeutas entre tantos outros profissionais da área da Saúde, aberta ou veladamente homossexuais, e tenho uma estória para o caso específico do homossexual masculino, levemente efeminado, denominado vulgarmente de “bichinha”, por vezes com o escárnio da pronúncia dos “S” entredentes.
Um homem de 54 anos, empresário bastante bem-sucedido, em um passeio motociclístico de sábado de manhã, bastante comum atualmente na cidade de São Paulo, sofreu um acidente relativamente grave. Fraturas de costelas, traumatismo raquimedular (lesão da coluna vertebral), múltiplas escoriações. Foi para UTI. Com o famigerado colar cervical, intubado e necessitando de ventilação mecânica, logo se recuperou. Jovem, não tinha nenhuma doença crônica associada. Na célula que ficou internado na UTI, o técnico de enfermagem da manhã foi sempre o mesmo. Um pouco mais de 20 anos, bem menos que 30. Gay desses que não deixam dúvida, porém sem ser afetado ou escrachado demais. Pelo menos durante o trabalho. Pelo contrário, a forma e o carinho como cuidava do corpo inerte, por vezes malcheiroso e grande do paciente acidentado transmitia extrema competência. Transparecia a todo o momento o treinamento recebido. Costumo dizer que um profissional começa-se a avaliar pela forma como veste-se com o uniforme. Quem trabalha direito tem um relação com o traje de trabalho, acaba encontrando um jeito de arrumar a touca ou vestir o avental, de deixar os óculos de proteção (chamamos tudo de EPI – equipamento de proteção individual) de um jeito próprio. As mesmas atividades são feitas com elegância particular e tudo isso junto, faz com que admiremos o profissional no exercício de suas funções. Assim era o rapaz. Medicações, banhos, eletrocardiogramas, mudanças de decúbito, instalação das dietas, tudo feito corretamente, com zelo e segurança. O paciente melhorou, acordou, saiu do ventilador, sentou na cama, tirou a sonda nasoenteral para alimentação e começou a receber dieta oral, nos 2 ou 3 dias subsequentes. Cheguei um dia à UTI e o rapaz estava dando uma sopinha, às colheradas, ao paciente. Me postei diante da cama e fiquei observando, satisfeito. Tinha que examiná-lo e questioná-lo sobre dores, falta de ar, etc, mas como estava quase no final, resolvi esperar e apreciar aquele momento de pequena felicidade (dizem até que a vida é feita destas pequenas felicidades!). Ao perceber, o técnico de enfermagem começou a falar, com seus trejeitos característicos, de como ele estava melhor, levantando o ânimo do paciente. Ao terminar a refeição, ele saiu do quarto e eu fiquei a sós com o paciente. Tirei o estetoscópio da parede e antes de posicioná-lo nos ouvidos o paciente disparou: “Pô, Dr! Que é que essa bichona tá fazendo aqui?”
Me senti mal, mas não consegui responder nada. Limitei a dizer que ele tinha sido cuidado, durante quase toda a internação, por aquele rapaz e que ele era muito competente. Agora, com toda essa violência estampada nas páginas de sítios e jornais, me ocorre novamente essa estória de intolerância.
É esse o paradoxo da homofilia. Homossexuais masculinos costumam ter um olhar diferenciado para o cuidar. Amam a espécie humana – sem preconceito de gênero – e aprendi a ver isso no meu trabalho, que, convenhamos, não é um parque de diversões. Peço a licença deste hibridismo, mas usei o homo- do latim que significa homem, anthropos (no grego), ser humano, junto com o sufixo grego –filia, afinidade por, gostar de, amar; e não o homo- grego (igual, o mesmo) pela exata força do trocadilho e pela estranheza que a expressão gera. Estranheza que me causa o fato de não entender como pode ser possível um homossexual que sofre um preconceito diuturno, eternas gozações e piadas de mau gosto, bullyings, agressões verbais ou físicas da sociedade em que está inserido, possa demonstrar um amor tão verdadeiro e engajado pela mesma espécie (Homo) que o maltrata. Paradoxo afetivo-linguístico, sem dúvida. Sem dúvida, um caso de homoafetividade.