A Náusea, A Fome e Ella
Volta e meia me deparo com pacientes precisando de tratamento para “enjoo”. Mais raramente (pois não sou pediatra), mães, esposas, avós, etc me pedem algo que “abra o apetite” de seus queridos anoréticos. Apesar de já ter notado que as medicações utilizadas para tratar náuseas e vômitos, quando administradas a pacientes sem tais sintomas, não despertavam o paladar, e vice-versa, pois remédios para “abrir o apetite” não são lá muito eficazes em tratar seres humanos nauseabundos; eu imaginava que a náusea era o exato oposto da fome e que nesse caminho, o indivíduo necessariamente passaria pela saciedade. Isso porque, para mim, era inadmissível alguém estando nauseado, sentir fome! Mas um amigo, médico, estando em tratamento para um câncer, me disse claramente que as náuseas causadas pelos quimioterápicos não atrapalhavam sua fome. Fiquei com isso na cabeça. Recentemente, por força de um procedimento e de medicamentos que tive que ingerir, tive a mesma sensação: estando totalmente nauseado, sendo capaz até de vomitar sem muita dificuldade caso fosse até o vaso, consegui comer nhoque! Descobri-me errado e tentarei esclarecer aqui alguns conceitos.
O que é náusea?
– É a sensação que normalmente precede o vômito, em geral referida na garganta ou na região epigástrica.
O que é “ânsia de vômito”? (em inglês retching)
– É a movimentação muscular involuntária que precede o ato de vomitar propriamente dito.
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O que é o ato de vomitar?
– É uma resposta autonômica, altamente organizada, mediada por uma complexa interação entre receptores, neuromediadores e a musculatura efetora, visando a ejeção do conteúdo gástrico. O vômito é considerado um mecanismo de defesa selecionado para nossa espécie. Muitos venenos naturais desencadeiam o vômito ao simples contato com a língua ou estômago.
O que é a fome?
– É a sensação que experimentamos quando necessitamos comer. É causada por contrações gástricas mediadas por hormônios liberados pelo hipotálamo, orgão do sistema nervoso central responsável pelo controle da fome e da saciedade. O hipotálamo é também responsável pelos mecanismos capazes de causar vômitos.
Nem todo mundo vomita pelas mesmas razões. Na verdade, existem 5 sindromes eméticas que podem estar sozinhas ou em conjunto fazendo com que uma pessoa apresente vômitos:
1. Toxinas na Luz Intestinal (quimioterapia, alimentos estragados, venenos)
2. Toxinas no Sangue (Área Postrema)
3. Doenças Intestinais (Gastrite, Diarreia, Pós-operatório)
4. Estímulos do sistema nervoso (medo, antecipação)
5. Doenças do labirinto (o orgão do equilíbrio)
Cada uma destas sindromes acaba estimulando principalmente uma ou mais das vias do intrincado mecanismo responsável pelo reflexo do vômito e isso tem grandes implicações terapêuticas visto que cada uma das vias têm um receptor farmacológico que lhe é mais específico e que pode ser bloqueado ou estimulado por medicações.
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É interessante notar que nem todas as sindromes eméticas causam náuseas, algumas provocando o que os médicos chamam de “vômitos em jato” que é exatamente o episódio de vômito não precedido por náusea ou “ânsia”, sem aviso prévio. A náusea parece ser um sintoma menos específico, mais sistêmico e que deve levar muito mais em consideração fatores relacionados ao córtex cerebral pois está bastante vinculada à vontade e à consciência. É possível nausear só de lembrar de determinadas situações, o que de fato acontecia com meu valente amigo médico, que só de passar pela rua onde recebia a quimioterapia, sentia-se mal. Sendo assim, fica mais fácil entender que a fome não é o oposto da náusea, talvez o seja da saciedade, mas isso é outra história.
Parece que Sartre tinha mesmo razão em relacionar a náusea a um sentimento existencialista de ilogicidade e incompreensão do mundo. Essa náusea sartreana só cedia com a música “Some of these days”. Eu a prefiro com Ella, musa de poderes curativos que deixo aos meus leitores para que não fiquem impregnados com o fel que escorre deste post…
O esquema acima foi modificado de Wender RH (2009). Do current antiemetic practices result in positive patient outcomes? Results of a new study. American journal of health-system pharmacy : AJHP : official journal of the American Society of Health-System Pharmacists, 66 (1 Suppl 1) PMID: 19106335
Princípio de Consolação Secular
Considero ter uma deficiência na prática médica: não sou muito bom em confortar as pessoas. Acho que vou muito bem quando dou notícias ruins – coisa que faço todos os dias há vários anos. Mas tenho dificuldades em consolar pessoas que perderam entes queridos. Confesso também, que meu ateísmo, nestas horas, me atrapalha um pouco. Tendo sempre a considerar que “tudo foi feito” e que “o paciente não sofreu”, mas às vezes, isto não basta: as pessoas querem algo mais. Esse “algo mais” é muitas vezes um conforto metafísico e este, eu não sou capaz de dar. As próprias pessoas às vezes verbalizam isto e acabo concordando com acenos beneplácitos de cabeça e sorrisos benevolentes. Outras vezes, parece ser suficiente tirar a culpa das pessoas. Filhos que há muito não viam os pais, esposas(os) separados pelo tempo em cuja relação há embutida a palavra “abandono”, mesmo que apenas no inconsciente de cada um. Para estas pessoas, uma frase do tipo “fique tranquilo(a), você fez tudo que estava ao seu alcance” tem, em geral, o efeito da cena do beijo do Cinema Paradiso: a explosão em um choro incontido e catártico que lhes expia a culpa e abre caminho para uma paz de espírito… Digo que gosto de fazer isso. Libertar alguém de uma culpa – seja ela justificada ou não, isto não nos cabe julgar – é sempre algo muito bom de se fazer.
Entretanto, conversando com uma moça muito querida e com um ex-padre (veja só), ambos muito fiéis à crença em Deus diga-se de passagem, tive um insight para um princípio de consolação secular que passo a partilhar com meus leitores. Gostaria de “testar” com os senhores(as) antes de usá-lo com meus pacientes. Obrigado pela compreensão.
Pense em uma pessoa. Esta pessoa tem, em você, dois tipos de representações principais: uma, quando você está com ela de fato. Você pode vê-la e tocá-la. Ouvir sua voz e conversar com ela sobre as mais variadas coisas. Pode partilhar com ela uma série de sentimentos, bons ou ruins, naquele momento em que vocês dividem o espaço e o tempo, ou seja, convivem, ou têm uma convivência. Outra representação é quando a pessoa está ausente. Esta é constituída pela memória mas, não é simplesmente memória de fatos ocorridos. É um tipo especial de memória que vem junto com sentimentos, bons ou ruins. À esta fórmula memória + sentimentos podemos dar o nome de vivências (sem o con-, veja que interessante a língua portuguesa aqui). As vivências não são simples fatos de nossas vidas. São ocorridos carregados de emoção que fazem com que nos lembremos de lugares – vivências que tivemos sózinhos – e/ou situações, eventos, aulas, festas, etc – vivências que compartilhamos com pessoas ou com uma pessoa. Se você pensar, vai encontrar pessoas com as quais suas vivências são mais importantes que a convivência que você tem com ela no momento. Incrível, né? Um indivíduo faz vibrar seu “aparelho emocional” de duas formas diferentes: ou ele está presente, ou não está presente. As emoções decorrentes dessa interação estão aí para serem sentidas e são muito parecidas. A esta sequência emocional causada por ausências e presenças somadas ao longo do eixo do tempo, alguns chamam de vida. Pelo menos alguns poetas…
O que acontece se e quando uma pessoa que a gente gosta morre. Vai embora apenas um dos tipos de representação. O outro pode continuar. Ou não. Não estou propondo aqui lembrarmos simplesmente dos mortos como forma de consolo. Este tipo de lembrança nos faz sofrer e costuma ser chamado de saudade e de fato, pode mesmo acontecer com quem ainda não morreu. A saudade pode ser entendida como um desejo da presença e, portanto, da convivência com a pessoa ausente. Esta impossibilidade racional nos faz sofrer irracionalmente. O exato oposto disto, a proposta seria manter e continuar a criar vivências com a pessoa ausente de modo a associá-la a eventos importantes (e porque não, felizes) permitindo uma lembrança futura na qual a representação dela estaria vinculada. Reconhece-se a impossibilidade de conviver mas preservam-se as vivências.
Isto é quase um diálogo com essa representação em nosso espírito e não é nenhuma loucura. Crianças fazem isso com muita facilidade. Talvez por esta habilidade em lidar com ausências preenchendo-as com imaginação viva de sentimentos, as crianças consigam ser felizes por longos períodos de tempo.
Foto daqui. Greta Garbo e Lew Ayres em The Kiss.