Kehl, Freud e o Processo da Verdade

Craig Kiefer no Street Anatomy - clique para ver os créditos

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A verdade social não é ponto de chegada, é processo

Maria Rita Kehl

Maria Rita Kehl é dessas mulheres fascinantes. Sou seu fã desde há muito e adoro ouvi-la falar de qualquer assunto. Também adoro lê-la. Não foi à toa que li com carinho seu artigo na Folha de SP no último domingo – 24 de Março de 2013 – data emblemática desde que a ONU a escolheu como o Dia Internacional do Direito à Verdade. Para “rememorá-lo”, como membro integrante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita escreveu, sobre Psicanálise e Estados Totalitários, um artigo com o título sugestivo de “A verdade e o recalque“.

No artigo, Maria Rita associa o conceito freudiano de “recalque” – interdição de fragmentos de lembranças e/ou fantasias sexuais, por exemplo – à repetição de sintomas neuróticos que, como uma válvula de escape, permitem dar vazão ao que foi aprisionado à força, no inconsciente. Freud propõe a quebra desse binômio esquecimento/sintoma psíquico pela elaboração do trauma. Até aqui, esse seria, talvez, o pensamento padrão de um psicanalista.

O problema, na minha humilde opinião, está na seguinte frase: “Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintoma sociais”. Bom – pensei -, ao juntar psicanálise e sintomas sociais vamos acabar na Frankfurt do pós-guerra e sua mistura “explosiva” de Freud com Marx de seu Instituto para Pesquisa Social. Depois de uma aproximação pacífica, já em “Eros e Civilização” (1955), Marcuse articula uma crítica ao conceito freudiano de uma repressão orgânica e biológica com a qual teríamos que conviver. No lugar desse “biologismo” freudiano, ele afirma com Marx, que “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem”[1]. No texto, Maria Rita chega a afirmar que “Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história”. Se Freud leu Marx eu não sei, mas n’ “O Futuro de Uma Ilusão” chega a esboçar uma luta de classes (em livre tradução do espanhol de [2]):

Mas quando uma cultura não superou a situação na qual a satisfação de um número de seus membros tem como pressuposto a opressão de outros, quiçá de uma maioria – e este é o caso de todas as culturas atuais -, se compreende que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que tornam possível com seu trabalho, mas de cujos bens têm escassa participação.

Horkheimer e Adorno, a partir de sua volta a Frankfurt depois de exílio forçado nos EUA, Marcuse, que ficou por lá, e em especial, Habermas alguns anos depois, reformulam suas interpretações públicas das teorias freudianas[2], mas mesmo as críticas da Escola de Frankfurt se tornaram obsoletas quando se viram obrigadas a lidar com a dissolução dos conceitos de totalidade postulados por Marx e Hegel. O próprio Habermas constatou que sua “‘teoria da história da espécie’, elaborada no texto Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), também continuava presa, a exemplo da teoria marxiana, a categorias da filosofia do sujeito e da reflexão, porquanto entendia que os processos de aprendizagem da história mundial se concretizariam em classes sociais e povos, isto é, sujeitos superdimensionados“.[3] (grifos meus). Daí em diante, vem o “Giro Linguístico” e todos os seus desdobramentos, em especial, no que se refere a dissolução do paradigma do sujeito.

Acho problemático que a teoria freudiana do recalque, tão criticada, seja aplicada a um contexto sociológico atual com intuito de estabelecer uma explicação da doença social causada pela interdição da verdade; em que pese a nobreza da causa. Não sei bem porque Maria Rita escolheu esse caminho. Poderia ter usado algo da Teoria Crítica ou mesmo de Hannah Arendt, sei lá. Talvez por objetivos didáticos, já que Freud “pega na veia” e esses autores não são popstars como Freud e ela quisesse causar impacto. Ou talvez por familiaridade com o tema; fico pensando se o não dito, ou no caso, o não citado, também não falaria por si. Também acredito que para dizer, como ela disse lindamente no artigo, que “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva” pudesse prescindir de Freud. Esse “coletiva” a que ela se refere parece não estar ainda na obra do médico vienense. Essa ligação entre os desejos individual e o coletivo na construção da sociedade moderna talvez só viesse anos depois com a Teoria Crítica. Já a belíssima frase que epigrafa o post demanda algo mais. A verdade como processo é aquisição kafkiana recente da sociedade. Livre.

Por isso, Maria Rita é essencial.

 

 ~ o ~

 

PS. Sensacional, diga-se de passagem, o elegante cruzado de direita que ela dá em Contardo Calligaris pelo famigerado artigo sobre tortura.

 

[1] Souza, MA. Eros e Logos: Marcuse, crítico de Freud. Filosofonet. Publicado em 11/11/2007.

[2] McCarthy, T. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. 4a ed. Tecnos. 1998. pp 230-51.

[3] Siebeneichler, FB. Apresentação à edição brasileira da “Teoria do Agir Comunicativo” de Jürgen Habermas. Martins Fontes. 2012. pp XVIII- XIX.

Virtudes Aristotélicas

Sob pena de um esquematismo inexato…

Mais Autópsias


Tenho recebido comentários, alguns bastante indignados, sobre a questão das autópsias. Sejamos breves: não sou contra a autópsia como instrumento de conhecimento médico. É uma atividade médica secular. É interessante notar o comportamento dos médicos frente à autópsia de acordo com o conceito de doença. Na medicina antiga (gregos e galênicos) a autópsia era inútil pois a doença era uma alteração da circulação dos humores. Não se podia aprender nada do corpo morto: humores não circulam em cadáveres.

Quando se associou a doença com a anatomia patológica – coisa que aconteceu no século XVIII e XIX – a autópsia passou a ser um instrumento importantíssimo, permitindo grande avanço da medicina e cirurgia. São figuras proeminentes dessa época Morgagni, Xavier Bichat e, principalmente, Rudolf Virchow.

Entretanto, várias fontes, na última década, têm percebido uma queda no número das autópsias (a exceção são os estudos médico-legais, que vêm aumentando). Para ver algumas, clique aqui. Post no Ecce Medicus. Outros blogs. A literatura médica vem dando mais destaque para esse fato, sempre com um tom de lamentação, atribuindo o fato a uma falta de estímulo aos mais jovens por parte dos mais experientes, custos, medo de processos, entre outros.

Na visão que este blog defende, essas são apenas consequências e não as causas. A causa real seria a de que o conceito de doença vem novamente apresentando mudanças radicais, principalmente nas últimas décadas, o que está exercendo forte influência no número de autópsias realizadas. A exemplo da medicina galênica, a autópsia passa a não ter mais importância para o médico, comunidade médica e familiares. Parece estar havendo um retorno à medicina do vivo! (O que faz todo sentido, aliás, dada a necrofobia dos tempos atuais). Além disso, a fragmentação do conhecimento médico é cada vez maior e os ramos integrativos da ciência médica estão minguando tal e qual as autópsias (ver este post).

Procuram-se explicações para o fenômeno. Habermas: fenômeno de sociedades tardo-capitalistas baseadas na tecno-ciência (autópsia=medieval)? Baumann/Nietzsche: necrofobia, neocristianização (autópsia=violação/violência)? Lyotard: sociedade virtual, simulacros (melhor em bits que em carne e osso)? E por aí vai.

A indignação dos patologistas e defensores da autópsia deveria transmutar o choro em ação e adaptar a autópsia à nova racionalidade médica emergente. Só assim, poderíamos revalorizar a autópsia como procedimento medicamente útil. Quem sabe veríamos hospitais como o Einstein, Sírio-Libanês ou Oswaldo Cruz alardearem como estratégia de marketing a (re)inauguração de suas salas de autópsia?

Nós, tecnocratas?

O termo “tecnocracia” foi criado nos EUA em 1919 mas só ficou conhecido após um movimento que ganhou considerável notoriedade. Começou com um grupo de técnicos e engenheiros dedicados à reforma social. Influenciados por conceitos provenientes da república tecnológica de Edward Bellamy na novela Looking Backward, pelas teorias econômicas de Thorstein Veblen e pelos princípios científicos de gerenciamento de Frederick W. Taylor, que sugeriam que políticos e empresários abdicassem em detrimento a elites de especialistas, o objetivo era abolir políticos corruptos, melhorar um sistema econômico obsoleto e expandir a racionalidade técnica e administrativa.
Posteriormente, Habermas classificou as sociedades ocidentais contemporâneas quanto sua relação com a ciência em decisionais, aquelas em que os políticos mandam e os outros obedecem; pragmáticas, aquelas em que os políticos se aconselham com especialistas e tomam as decisões; e tecnocráticas, aquelas em que os especialistas tomam as decisões.
Para onde pende o fiel da sociedade médica? Obedecemos a uma ordem tecnocrática? Quem são os técnicos/especialistas? Quem detém o expertise das tomadas de decisões? Por fim, obedecemos ou somos obedecidos?
Respostas para um médico extemporâneo….

Habermas II


Técnica e Ciência como “Ideologia”– Jürgen Habermas – Edições 70 – 2006 – pág 72-73.
“Desde o final do século XIX, impõe-se cada vez com mais força a outra tendência evolutiva que caracteriza o capitalismo tardio: a cientificação da técnica. No capitalismo sempre se registrou a pressão institucional para intensificar a produtividade do trabalho por meio da introdução de novas técnicas. As inovações dependiam, porém, de inventos esporádicos que, por seu lado, podiam sem dúvida ser induzidos economicamente, mas tinham ainda um caráter natural. Isso modificou-se, na medida em que a evolução técnica é realimentada com o progresso das ciências modernas. Com a investigação industrial de grande estilo, a ciência, a técnica e a revalorização do capital confluem num único sistema. Entretanto, a investigação industrial associa-se a uma investigação nascida dos encargos do Estado, que fomenta em primeiro lugar o progresso científico e técnico no campo militar. Daí as informações refluem para as esferas da produção civil de bens. Deste modo, a ciência e a técnica transformam-se na primeira força produtiva e caem assim as condições de aplicação da teoria marxiana no valor-trabalho.(…). Como variável independente, aparece então um progresso quase autônomo da ciência e da técnica, do qual depende de fato a outra variável mais importante do sistema, a saber, o crescimento econômico”.
Esse texto de Habermas, de 1968, me diz como o capitalismo tardio necessita do progresso técnico-científico para manter o crescimento econômico. Afirmação que é exemplificada à exaustão no livro O Mundo é Plano.No caso da Medicina, posso entender que isso se reflete de muitas e variadas maneiras. Da influência da Big Pharma na atuação dos médicos e geração de informação técnica, até ao comportamento dos médicos diante de novas tecnologias que vão forjando seu raciocínio.

Habermas


E agora, posso avançar um pouco mais: Habermas
“Diferentemente das ciências filosóficas de tipo antigo, as modernas ciências experimentais desenvolvem-se desde a era de Galileu, num marco metodológico de referência que reflete o ponto de vista transcendental da possível disposição técnica. As ciências modernas geram por isso um saber que, pela sua forma (não pela sua intenção subjetiva), é um saber tecnicamente utilizável, embora as oportunidades de aplicação, em geral, só tenham surgido posteriormente. Até ao fim do século XIX, não existiu uma interdependência de ciências e técnica.” (Técnica e Ciência como “Ideologia”– Jürgen Habermas – Edições 70 – 2006 – pág 66-67)
A interdependência entre ciência e técnica é a ciência do fazer. A instrumentação da natureza no intuito da dominação. A medicina se utiliza de uma parte dessa ciência que podemos chamar ciência médica e que vem a nós carregada dessa ideologia.
Vêm daí parte das críticas contemporâneas.