Propofol

Medicine Man by Jason Freeny at Street Anatomy

Talvez uma das situações que mais assuste um médico seja ficar doente. Ironia das ironias, o advogado processado, o mecânico com o carro quebrado e o médico doente, são arquétipos que sempre são invocados seja, para lembrar do humano em nós, seja para exemplificar o famoso “casa de ferreiro…”
Em nosso meio, Drauzio Varella fez um importante relato por ocasião da febre amarela que quase o matou. Eu, no pós-operatório de uma cirurgia nasal simples, mas cuja anestesia geral foi necessária, fico pensando nos pequenos atos que fazem com que nos sintamos bem em situações de estresse: o circulante da sala – profissional encarregado de auxiliar os médicos durante o ato cirúrgico – se apresentou a mim e disse que ia acompanhar minha cirurgia. Um grande sorriso no rosto, logo o reconheci. Ele havia trabalhado na limpeza da UTI do mesmo hospital, meu habitat natural. Com alguns cursos e concursos, galgou a posição que agora ocupa e pareceu-me feliz.
Por alguns momentos, fiquei orgulhoso ao mesmo tempo em que me vieram a cabeça todas as novas diretrizes corporativas com as quais as instituições bombardeiam os “colaboradores” e reconcluí, nostalgicamente, que uma instituição não é feita de diretrizes mas, de pessoas que deveriam seguir diretrizes. Então, recebi 2 mL de fentanil (um derivado 60 vezes mais potente que a morfina) e tudo começou a girar. Não me dei por vencido e segui falando de um assunto que não necessita muita massa encefálica (pois a minha já estava bastante comprometida a essa altura): FUTEBOL.

Devo ter deixado o anestesista nervoso porque, da rotação em velocidade constante que estava, fiquei surdo e passei a uma penumbra que progressivamente foi tomando conta da minha consciência e tudo, finalmente, sumiu. Propofol é uma beleza. Sentir-se em casa ao lado de amigos, também.

Sobre a Incerteza

Reneé Magritte – Princípio da Incerteza (1944)

Como você lida com a incerteza? Em 1927, Heisenberg abalou a Física com a impossibilidade de uma certeza. Ficamos desconfortáveis com incertezas. É fato conhecido que testemunhas de acidentes ou crimes inventam fatos para preencher histórias com dados incompletos. Com a maior das boas intenções. As certezas nos acalmam, nos deixam pisar em terreno firme, nos enchem de confiança.

Se físicos têm incertezas, que dirá os médicos. As fontes de incerteza dos médicos são basicamente três: 1) nenhum médico sabe ou tem habilidade para dominar toda a Medicina, mas mesmo que soubesse 2) o próprio conhecimento médico é incompleto e incapaz de lidar com todo o espectro do sofrimento humano e, finalmente 3) um misto de ignorância e incapacidade que mistura as duas primeiras. Como os médicos lidam com a incerteza (ou pelo menos, como deveriam lidar)? Há pacientes que gostam de saber das dúvidas e encruzilhadas em sua trajetória terapêutica, instando o médico a compartilhá-las. Há outros que se sentem extremamente inseguros e acham o médico também inseguro, começam a ouvir opiniões de outros profissionais e, no melhor estilo “cada cabeça, uma sentença” a situação só piora.

Conheço médicos que fingem. Fingem estar super-seguros sobre algum assunto do qual não têm a menor segurança. Conheço excelentes médicos que por deixar transparecer uma ponta de dúvida, perderam pacientes para outros médicos. Conheço médicos que ao tentar explicar minuciosamente as possibilidades terapêuticas, confundem. Conheço alguns que deixam a decisão de tratar ou não, para o paciente!

Qual a melhor forma de lidar com a incerteza? Talvez não exista uma fórmula mágica. Sinceridade e honestidade, sempre caem bem. Discutir alguns pontos com o paciente pode reforçar a ligação profissional. Mas acho que a grande lição é que a medicina em seu núcleo duro, é um relacionamento. É uma humanidade. Mas não tenho tanta certeza sobre isso…

Blogs, Ciência, Religião e o Debate no Lablog

Talvez, o que mais irrite nos creacionistas e defensores do design inteligente (DI) é a forma de argumentação, principalmente quando utilizam-se de argumentos “científicos”, mas que em geral, são bastante diferentes dos utilizados por nós, simpatizantes da ciência. Também cometemos os mesmos erros quando tentamos discutir assuntos metafísicos com nosso arsenal argumentativo e quando esquecemos da metafísica presente na própria ciência! (Tenho um artigo interessante sobre a metafísica das espécies).
Quando colocamos um blog no ar, temos uma responsabilidade pública e social. Quero testar minhas opiniões sobre as coisas nas quais gosto de pensar. Quero testar a opinião de outras pessoas. Quero melhorar o mundo, por que não?! Posso tanto mudar de idéia, como também fazer com que outras pessoas comecem a raciocinar de forma diferente. Que fazer com idéias divergentes, muitas vezes agressivamente opostas, às vezes com objetivo explícito apenas de provocar? Acho “deletar” um tanto autoritário. Acredito (e isso é fé pura) na razão compartilhada. Isso implica em aceitar opiniões diversas e construir juntos afirmações com valor de verdade. E não em amar a Verdade. A Verdade é tão intangível quanto fadas, duendes e amigos imaginários deificados. Substituir Deus pela Verdade não alivia. Nietzsche já dizia que ciência e religião estão no mesmo terreno pois ambas acreditam na inestimabilidade e incriticabilidade da verdade e nisso, sempre serão aliadas (GM§25, 3a Dissertação). Da mesma forma como existem defensores irascíveis do DI, também conheci vários “ativistas” do ateísmo dogmático que agem como se a ciência fosse a sua religião. Demolir, destruir ou ridicularizar argumentos contrários é para quem acha que detém a Verdade (com “v” maiúsculo mesmo). É fazer o que um provocador quer. É não reconhecer aquela parcela de fé única e exclusiva da qual a ciência também depende.
Qual a diferença entre a crença nessa Verdade quase absoluta que achamos que possuímos e a crença em ETs? Qual é a razão de estudarmos ciência se não adquirirmos tolerância? Isso já não deu certo outras vezes. Que ao menos não se repita o mesmo erro.

Seria a Informação Científica uma Commodity?

Acho que morando no Brasil, o país dos pacotes, entendemos o suficiente de Economia para saber o que é uma commodity. Todos sabemos, por exemplo, que a “commoditização” do etanol é um assunto estratégico. Como todo conceito, o de commodity é sustentado por um arcabouço teórico que permite sua instrumentalização pelos agentes das negociações nas quais estão envolvidas. Tem gente que produz, tem quem venda, tem quem compre. Há, digamos, uma “fisiologia” que pode ser entendida nesse processo todo, pois há uma certa lógica de procedimentos.

Volta e meia, surge alguém que aplica conceitos provenientes de outras áreas do conhecimento humano em determinado campo e abre uma nova avenida interpretativa. A Medicina é especialmente propensa a receber essas análises alienígenas devido a, creio eu, sua ampla margem de atuação.

Quais interpretações poderiam ser hauridas se aplicarmos os conceitos econômicos envolvidos na teoria das commodities na forma como a ciência, em especial a médica, caminha nos dias de hoje? Foi a pergunta que Neal S. Young, John P. A. Ioannidis, Omar Al-Ubaydli tentaram responder. Grandes defensores do Open Access, os autores se notabilizaram pelo estudo da influência do capital na ciência médica. Os resultados dessa estranha análise foram publicados no Plos Medicine em 7 de Outubro e produzem um certo tipo de vertigem. Isso porque, fazem bastante sentido e permitem uma interpretação das distorções científicas que sabemos, estão ocorrendo. Vejamos o arrasador primeiro parágrafo:

“This essay makes the underlying assumption that scientific information is an economic commodity, and that scientific journals are a medium for its dissemination and exchange. While this exchange system differs from a conventional market in many senses, including the nature of payments, it shares the goal of transferring the commodity (knowledge) from its producers (scientists) to its consumers (other scientists, administrators, physicians, patients, and funding agencies). The function of this system has major consequences. Idealists may be offended that research be compared to widgets, but realists will acknowledge that journals generate revenue; publications are critical in drug development and marketing and to attract venture capital; and publishing defines successful scientific careers. Economic modelling of science may yield important insights.”

Particularmente, não compartilho com essa grosseira divisão entre idealistas e realistas, porém devo admitir que a pesquisa tem, em algumas situações, a mesma fetichização de um widget. O artigo enumera seis propriedades econômicas das commodities que podem ser aplicadas em informação científica: maldição do vencedor, oligopólio, herding, escassez artificial, incerteza e branding. (Vale ver a tabela para maiores explicações). Isso nos faz ver coisas interessantes. Por exemplo, o viés de publicação (leia-se preconceito) dos estudos negativos, ou seja dos estudos nos quais a hipótese inicial não conseguiu ser demonstrada, poderia ser explicado, ao menos em parte, pela postura dos revisores das grandes revistas científicas:

“The authority of journals increasingly derives from their selectivity. The venue of publication provides a valuable status signal. (…) This is essentially an example of artificial scarcity. Artificial scarcity refers to any situation where, even though a commodity exists in abundance, restrictions of access, distribution, or availability make it seem rare, and thus overpriced. Low acceptance rates create an illusion of exclusivity based on merit and more frenzied competition among scientists “selling” manuscripts.” (grifos meus)

Se, por um lado, essas propriedades aplicadas às commodities ajudam a explicar porque alguns seres humanos passam fome e outros jogam comida fora – distorções exaustivamente apontadas pelos críticos do capitalismo tardio -, por outro, quando aplicadas às atuais políticas de publicação científica, ajudam a entender, pelo menos em parte, distorções científicas que, por sua vez, não são criticadas com a visibilidade que mereceriam.

Dia do Médico

O dia 18 de Outubro é considerado o dia do Médico. (Ver esse site para interessante texto sobre o porquê do dia 18 de Outubro). Recebi muitos cumprimentos, vários presentes (inclusive um livro do Lablogatórios!). Entre vinhos e chocolates (que não devem jamais serem consumidos juntos, com honrosas exceções, ver acima), recebi um livro sobre Bioética de um laboratório de análises clínicas. A princípio, achei que fosse uma dessas publicações de merchandising, mas me enganei completamente. Escrito pelos padres camilianos Leo Pessini e Christian Barchifontaine, o livro é, de fato, muito bom e bastante abrangente. Padre Léo foi capelão do Hospital das Clínicas e tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Me chamou a atenção sua batalha contra a distanásia e a defesa da ortotanásia. Termos que poderiam ser traduzidos como “morte ruim” e “boa morte”, respectivamente. É óbvia a importância desses conceitos na medicina atual, que tem na terapia intensiva o paradigma do “cuidado médico”.
Gostaria de agradecer os cumprimentos e os presentes, principalmente esse, que com certeza será bastante útil. Nada melhor que Ética (Filosofia Prática) no dia do Médico.
P.S. Mas vinho e chocolate também é “bom demais”.

Placebo

Modificado do livro Clinical Epidemiology – The Essentials – 3 ed.

Placebo é o futuro da segunda conjugação latina do verbo placeo que pode ser traduzido como agradar, aprazer. Tem a mesma raiz de prazer, portanto. Placebo pode ser traduzido como “eu agradarei” e indica medicação sem princípio ativo com o intuito único de “agradar” o paciente.
O placebo é um dos recursos mais controversos da medicina, e também um dos mais poderosos. Tido como comprovação inequívoca da “cura pela mente”, é adorado e odiado por médicos e cientistas, sendo que ambos o consideram indispensável. Explico.
Uma medicação placebo produz o chamado efeito placebo. Trata-se de conseguir o efeito medicamentoso esperado (p.ex. analgesia, melhora da depressão, etc) sem utilizarmos uma medicação com efeito farmacológico específico. O efeito placebo tem diferentes significados para pesquisadores e clínicos. Pesquisadores estão interessados em isolar os efeitos de determinadas drogas de modo a correlacionar tais efeitos com as teorias correntes e associá-las a relações de causas e efeitos. Consideram o efeito placebo como a linha de base da ação de qualquer medicamento, a partir do qual o efeito terapêutico deva ser medido. Clínicos, por outro lado, desejam o efeito placebo e sempre tentam maximizá-lo nos tratamentos que prescrevem. O interessante é que toda medicação tem, além de seu efeito terapêutico real, uma parcela variável de efeito placebo. No caso dos antibióticos o efeito específico é muito maior que o placebo. Já quando falamos por exemplo de medicações psicoativas, a história é outra. É difícil saber exatamente o quanto do efeito de uma medicação antidepressiva é placebo ou específico. Daí as complicadas pesquisas que são realizadas “cegando” pacientes e médicos sobre quem está utilizando placebo ou a droga a ser estudada. É óbvio que o clínico está interessado no efeito específico da droga, mas se o efeito placebo puder dar uma mãozinha também, ele não vai ficar chateado. O importante é a melhora do paciente.
Na verdade, o efeito específico de cada droga prescrita é só uma parte da melhora que o paciente pode alcançar. Olhando para a figura acima, vemos que uma parcela da melhora pode ser atribuída à evolução natural de uma doença – sim, há doenças nas quais a cura é espontânea! Outras vezes, apenas o fato de observarmos um grupo de pacientes e outros não, pode justificar uma melhora clínica nos pacientes observados. Esse efeito é chamado de Hawthorne em homenagem ao local (subúrbio de Chicago) onde foi descrito pela primeira vez (já comentamos esse assunto no post). O restante da melhora clínica alcançada pode então, ser finalmente atribuído aos efeitos placebo e específico do medicamento.
A conversa fica interessante quando perguntamos quais são os mecanismos de ação de um placebo. Dependendo do interpelado, a resposta vai variar da metafísica a neurofisiologia, da psicologia motivacional ao simples condicionamento skinneriano. O fato é que os mecanismos de ação não são bem estabelecidos, o que envolve o placebo com uma aura de certo misticismo. Isso permite as várias interpretações, usos e mal-usos já citados.
Com todos esses comemorativos, a história do placebo é digna de um roteiro hollywoodiano. Quase tão antiga quanto a própria medicina, atravessou séculos e séculos de prática médica ajudando seres humanos necessitados, sobreviveu ao Esclarecimento que demoliu o pensamento médico galênico, resistiu à tecnologização da medicina e é hoje, ferramenta indispensável de uma racionalidade médica ultra-moderna, que depende dele, placebo, para validação de suas verdades.
Me perguntaram certa vez se o uso de placebo era ético. Como se estivéssemos a ludibriar o paciente com uma pílula de açúcar. Primeiro, que não prescrevemos pílulas de açúcar (tampouco, de farinha)! Segundo que, como já se disse, todo medicamento tem uma ação específica e um efeito placebo, em maior ou menor grau. Na realidade, acho que a pergunta é mal-posta.  Ética é diferente de Epistemologia. Como justificar a eticidade de uma intenção? O placebo nos faz lembrar da humanidade que está envolvida na interação entre dois mamíferos primatas: um sentindo-se mal e outro, com a melhor das intenções. Dado que ambos primatas envolvidos têm uma imaginação sublime, a complexidade na qual a relação se dá só é comparável aos sentimentos que eles têm em relação à morte ou ao amor. Um imagina que o outro vai curá-lo. O outro imagina que vai, pelo menos, aliviar o sofrimento de seu semelhante. Nesse jogo de intenções é que a medicação com efeito placebo alto ou baixo atua.
Por isso, considero o placebo como uma das maiores invenções da medicina. Uma meta-invenção, na verdade, já que atua na fonte das invencionices da estranha espécie humana que adoece como todas, mas resiste como nenhuma, em morrer.

Paciente ou Cliente?


Segue interessante desabafo de um hospitalista americano (médico responsável por cuidar de pacientes internados) que não suportou a nova onda “capitalizante” que vem repaginando a medicina nos EUA. Aqui, seguimos a cartilha, também temos nossas versões de acreditação (ONA – Organização Nacional de Acreditação) além de importar as mais famosas internacionalmente, com o fim declarado de aumentar a segurança dos pacientes mas que apresenta um forte viés de mercado.
Essa é bem a visão do médico. Frases como essa sobre “centros de excelência”:
“Now the medical center, riddled with “centers of excellence” instead of departments, answered only to administrators who cared nothing about medical education, except for the Medicare dollars they would
lose if they cut the training programs.”

Ou essa, sobre a enfermagem:
“The doctor-nurse collaboration I grew up with as a trainee and young attending didn’t exist anymore,
and patients suffered as a result.”

São frases clássicas de médicos que sentem que o clima, o enfoque, a filosofia do health business, mudou! É muito interessante como a ciência médica se encaixa nesse tipo de administração hospitalar. Não há um CEO que não atribua uma importância estratégica à chamada “produção de conhecimento” e aqui no Brasil, há uma fortíssima tendência de instituições particulares (for profit, of course) assumirem a vanguarda tecnológica e científica, deixando para trás universidades poderosas como a USP.
Se o conhecimento produzido por uma universidade já deve ser submetido a uma análise crítica pois envolve conflitos de interesse (além de outros interesses que ainda não geram conflitos – falaremos disso oportunamente!), imagine o produzido dentro de uma instituição voltada para atendimento de convênios que exigem “protocolos” de conduta médica, exigem desempenho e uniformização dos médicos, além de velocidade em resolver os casos! Não temos ferramentas ainda, na minha maneira de ver, para criticar a ciência médica produzida nas condições normais, que dizer das produzidas nas novas condições que o “mercado da saúde” está exigindo. Um futuro de incertezas cerca a medicina pós-moderna.

Questionamentos…

Perguntinha wittgensteiniana:
“Se alguém diz: eu tenho um corpo! Não seria o caso de perguntar-lhe: Que bom! E quem está falando por essa boca? (On Certainty, §244).