Os 10 Anos da Lei “Mário Covas”

Deixei passar a data inexplicavelmente. Faço então, um post tardio desse que foi um dos maiores avanços médicos do Brasil e pouca gente tem conhecimento.

File:Mário Covas.jpgEm 6 de março de 2001, Mário Covas falecia em um quarto do Instituto do Coração. Recusara-se a ir para a UTI. Tinha o diagnóstico de adenocarcinoma de bexiga, doença altamente relacionada ao hábito do tabagismo, na forma avançada e considerado fora de possibilidades terapêuticas, optou por ficar com os familiares. Essa decisão não é nada fácil. Mas, apesar de estar em uma condição clínica bastante deteriorada e sob efeitos de medicações para dor (morfina e derivados) que alteram a capacidade de raciocinar, Covas, como grande político que era, havia tomado suas precauções.

Alguns anos antes, mais precisamente em 17 de Março de 1999, já sabedor de seu diagnóstico e também do prognóstico ominoso, Covas sancionou a Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (n. 10.241/99), conhecida hoje como Lei Mário Covas, que assegura em seu art. 2º: “são direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: ­ recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.

Muito se discutiu sobre cuidados paliativos desde então. Termos como distanásia e ortotanásia fazem parte do vocabulário médico e leigo agora. Uma alternativa aos extremos da assistência médica se impôs: nem a obstinação terapêutica, nem a eutanásia. A opção depende da capacidade de abstrair-se de religiosismos mal ajambrados, de transcender legislações empoeiradas e de desafiar tecnologias ultra-hipermodernas, em detrimento à humanidade que, afinal, é ou não é o que nos caracteriza?

Se houve alguém nesse país que legislou em causa própria, esse foi Mário Covas. E ao fazê-lo, pode beneficiar milhares de pessoas tão dignas quanto ele cuja opção de morrer sem um tubo na goela cercado de máquinas frias foi feita (e muitas vezes registrada em cartório!), mas que algum parente fariseu auto-referente solicitou à equipe médica que “fizesse tudo o que fosse preciso” (desde que com o dinheiro do convênio) para mantê-las vivas a todo e qualquer custo, seja lá o que se entenda por “vivo” nesse contexto, não havendo possibilidade de que os últimos desejos de extinguir-se em paz fossem assim, realizados. O Conselho Federal de Medicina aprovou em 2006 a resolução CFM nº 1.805/06 que autorizava a ortotanásia mas que infelizmente foi caçada cassada por liminar federal e, pelo que sei, permanece no limbo jurídico desse país.

São 10 anos de uma lei paulista que vale a dignidade de vidas humanas. Dá para saber de quanto estamos falando?

A Vez das Revistas Científicas?

Interessante artigo da PLoS sobre métodos de cientometria (PLoS Journals – measuring impact where it matters). Em tradução livre a pergunta do primeiro parágrafo:

“Em 2009, neste mundo online, como a maioria dos médicos e cientistas encontram os artigos que necessitam ler? A resposta para o que foi publicado na PLoS (e sem dúvida em outros jornais) é por meio de uma máquina de pesquisa (search engines), seja as que procuram apenas literatura científica, ou mais provavelmente, aquelas que vasculham toda a rede. Dado que os leitores tendem a navegar diretamente aos artigos que são relevantes independentemente do jornal onde são publicados, por que os pesquisadores e suas agências financiadoras permanecem vinculados (no artigo, o autor usa “casados”) em avaliar artigos individuais usando uma métrica (o fator impacto) que tenta medir a média de citações de um jornal como um todo?”

A PLoS lançou um programa que foca a atenção em artigos individuais e não nas revistas como um todo. Mark Patterson, o autor do projeto, alega que o fator impacto das revistas é totalmente skewed, sendo 80% das citações atribuídas a 20% dos artigos. Sendo assim, o fator impacto de uma revista é um péssimo preditor do número de citações que um artigo terá sendo publicado nela. Focando nos artigos individualmente, haverá uma “democratização” por assim dizer, do fator impacto, “pulverizado” nas revistas, além de uma forma melhor de avaliar o currículo dos pesquisadores.

A exemplo dos blogs que vêm redefinindo a cartografia da divulgação de notícias causando uma crise no setor da chamada imprensa tradicional, esse tipo de iniciativa com certeza fará com que as grandes e tradicionais revistas de medicina e ciência coloquem as barbas de molho.

Sobre a Letalidade da Gripe Suína no Brasil

Temos discutido os dados sobre a epidemia de gripe H1N1 (^::^)~. Como tenho sido questionado sobre a letalidade da nova cepa, resolvi publicar algumas ponderações que foram feitas por especialistas:

1. Quando se fala que a mortalidade pelo H1N1 é de 0,4 – 0,5% e isso é igual a da gripe comum, não é totalmente verdade. Nos países com muitos casos, a enorme maioria dos casos confirmados são em jovens, possivelmente pelo fluxo migratório maior dessas populações. Os óbitos, por conseqüência lógica, também se concentram nesta faixa etária. Daí tiramos duas conclusões interessantes:

A- Não sabemos, se realmente os idosos são menos afetados por terem anticorpos protetores de Influenzas geneticamente similares de décadas atrás e os mais jovens estariam mais susceptíveis. A distribuição de casos e óbitos pode ser somente uma questão epidemiológica e não fisiológica…
B- Letalidade de 0,5% é normal para gripe sazonal em grupos de alto risco. Em pacientes jovens e sem co-morbidades, a letalidade seria de 1/100.000 casos. Assim, considerando o grupo atualmente afetado, a letalidade é muito maior que da influenza sazonal. Com a endemicidade crescente iremos ver qual é a mortalidade nos pneumopatas, cardiopatas e idosos algo que, apesar dos números crescentes, ainda não temos n para nenhuma conclusão estatística.

Comentários do Blog:

1. É muito importante a percepção de que o cálculo de letalidade da gripe suína é BEM superestimado em função do número real de pacientes ser desconhecido atualmente.
2. Venho colecionando casos de insuficiência respiratória grave – algumas fatais –  decorrentes de gripe sazonal. Tenho um caso em cada hospital que trabalho. Não fazíamos diagnóstico dos agentes etiológicos desses casos, mas agora com as sorologias disponíveis, temos confirmado os dados da literatura.
3. Com isso, chegamos a conclusão que nossa letalidade da gripe sazonal também não deve ser a correta e que não temos estatísticas confiáveis. Talvez esse o grande aprendizado de toda a pandemia. Precisamos de dados. Todas as projeções feitas com as estatísticas disponíveis poderão incorrer no mesmo erro.
4. As sorologias demoram. O screening com pesquisa rápida de vírus respiratórios nas secreções (lavado de naso/orofaringe) é um painel de vários vírus respiratórios e fica pronto em 24-48h. Custa 350 reais em laboratórios particulares. Há relatos de falso positivo e falso negativo com o H1N1 e o CDC não recomenda o teste de rotina.
5. Está havendo confusão de orientações entre os médicos pois elas têm mudado mais rápido do que o possível para sua assimilação.
6. Ainda não vi faltar oseltamivir para ninguém que precisou nos hospitais em que trabalho.

Ratzinger: Covardia e Misericórdia

“Além disso, em solidariedade a Sérgio Cabral, o gerente médico do centro de saúde que participou da cirurgia e a toda a equipe de médicos, enfermeiros e auxiliares que salvaram a vida dessa criança, gostaria profundamente de ser excomungado. A excomunhão é uma punição pública exemplar. Uma pecha. Um rótulo, quase uma maldição, mas que nesse caso se transformou numa das maiores vitrines da miséria de nossa sociedade e das mazelas de nossas instituições. Se lutar contra as injustiças e desigualdades ancestrais merece como pena a excomunhão então, quero ser excomungado já. Por essa razão, um de meus maiores ídolos é Espinoza: Excomungado de duas religiões!

Excomungai-me, Dom José! Pelo amor de Deus”

Assim começa o post de 9 de Março de 2009 num momento em que a notícia da excomunhão dos médicos que participaram da curetagem de uma criança de 9 anos com gravidez gemelar, violentada pelo padrasto, portanto de altíssimo risco, foi veiculada pela imprensa. Depois, um arcebispo de Roma fez declarações mais brandas e usou o termo “misericórdia”.

Agora, o Vaticano ratifica sua posição e mantém todas as punições de acordo com seu juízo do direito canônico (a partir de post do Pharyngula que o chamou de Monolito Inumano!). Direito canônico ora dominado pela Congregação para a Doutrina da Fé, orgão presidido pelo próprio Ratzinger antes de tornar-se papa e que tem íntima relação com a instituição da Santa Inquisição. Essa é a fé da maior instituição cristã da Terra. Uma fé “degenerada em contradição da vida, em vez de ser tranfiguração e eterna afirmação desta!” “Uma vontade de nada canonizada.”* Perdeu-se uma belíssima oportunidade para se demonstrar o real significado da palavra MISERICÓRDIA. Uma covardia e uma pena…

*Citações do aforismo 18 de “O Anticristo” F. Nietzsche.

Deus, um Desejo

O ateísmo “engajado” parece estar mesmo na moda. Textos agressivos, talvez motivados pela vinda de Richard Dawkins ao Brasil, conclamações, blogs, artigos vociferantes – parece que os ateus “pegaram em armas” e decidiram “sair do armário” contra a religiosidade em geral e Deus, em particular. Apesar de concordar que essa atitude é compreensível, tendo em vista certas notícias publicadas, e que a agressividade de algumas condutas teístas beira mesmo à discriminação, quando não a constitui descaradamente, acho-a ineficaz.

É engraçado: todo mundo lê Dawkins, mas pouca gente lê Michel Onfray. Ele devia ser mais citado e reverenciado nesses tempos de cólera. É dele a frase “Superemos portanto a laicidade ainda marcada demais por aquilo que ela pretende combater.” Dele, a justificativa: “Os excessos se explicam e se justificam pela rudeza do combate da época, pela rigidez dos adversários que dispõem de plenos poderes sobre os corpos, as almas, as consciências, e pelo confisco de todas as engrenagens da sociedade civil, política, militar pelos cristãos.” Dele ainda, o caminho a seguir: “A descristianização não passa por ninharias e quinquilharias, mas pelo trabalho sobre a episteme de uma época, por uma educação das consciências para a razão.” Segue, então, minha humilde contribuição a esse trabalho. (Nos passos de Clément Rosset.)

Episteme. Uma crença sabe sempre dizer porque crê, mas nunca no que exata e precisamente crê. Sim, pois o “grande inimigo da crença não é a ‘verdade’, mas a precisão”. Não sendo possível a “verdade” como resposta, o que seria então preferível, o silêncio ou a mentira? Leiamos juntos essa passagem: “A palavra precisa – seja ‘verídica’ ou ‘mentirosa’ – não possui continuidade nem consequência para a atividade intelectual em seu conjunto: no máximo pode engendrar um erro de fato. Em torno da fala solitária da mentira, tudo é silêncio. A palavra imprecisa, ao contrário – sempre mentirosa, e por omissão -, proporciona um ponto de apoio à representação das ideias: pode ser utilizada numa rede de relações ideais que encontrará sua coesão e sua justificação nessa argamassa imaginária”. Qual a relação entre a imprecisão e o silêncio?

Pode-se (re)visitar as expressões epistemológicas básicas da teoria do conhecimento de acordo com o tipo de silêncio que as violam. O racionalismo – atenção à ideia, indiferença ao detalhe – tem o silêncio ideológico. O empirismo – atenção ao detalhe, indiferença à ideia – tem o silêncio cético. O silêncio ideológico é prolixo e impreciso. Permite uma enxurrada de interpretações que se sustentam em uma rede praticamente invulnerável à crítica; permite que um rumor ideológico gire ao seu redor. Esse é o silêncio da imprecisão. O silêncio cético é cirúrgico e milimétrico em não afirmar e não causar rumor – não pode ser confundido com a metáfora do “armário”. A ideia de Deus e o que advem dela pertencem entretanto, ao silêncio ideológico.

O Desejo

Tenho defendido que o ateísmo engajado de Dawkins é inútil. Mais que isso, é contraproducente. Para facilitar a exposição do meu ponto de vista, consideremos isso como um debate. Essa estratégia ataca o opositor pelo seu lado mais forte; o lado no qual ele é invulnerável, blindado por uma carapaça ideológica difusa e densamente amarrada. Vamos dar meia volta e tentar a retaguarda. De onde vem o apego a essa ideia? O que faz um homem acreditar piamente em histórias fantásticas sem qualquer comprovação? A resposta de um século: O Desejo. “O homem não se engana porque ignora, mas porque deseja.” Mais, o homem que se ilude não mente jamais, pois o desejo nunca é preciso o suficiente para produzir um erro de fato. “Essa falta, não de crença, mas de objeto de crença, é precisamente o que define a especificidade da crença e lhe assegura a invulnerabilidade” – diz Clément Rosset.

Mesmo que se “convença” um homem ou mulher que ele(a) está errado(a) com fatos, números, lógica ou qualquer outro tipo de arma cognitiva que se queira usar, não se mata o desejo que ele(a) terá de que a história decorra assim, da forma como eles a veem, pois o desejo pertence a uma esfera não-cognitiva, instintiva ou animal, inerente ao humano. O desejo é inextirpável! Tentativas de extingui-lo podem danificar permanentemente o hardware humano: somos o que somos por desejarmos ardentemente. A psicopatologia desse desejo não é coisa para um post, nem mesmo uma tese e não se ousa aqui explicar o que filósofos e psicanalistas já tentaram com muito mais competência. Mas, posso avançar que talvez a ideia de Deus (e da própria Natureza divinizada que é a tese de Rosset) são os mais poderosos antídotos já elaborados pela imaginação humana contra a ideia de Acaso. A ideia de Acaso que implica em uma insignificância radical de todo e qualquer acontecimento, de toda e qualquer existência, é um soco no estômago do ser que ousou desejar.

Na impossibilidade do des-desejo, melhor seria compreender no que o desejo implica, no que ele tolhe a liberdade e a capacidade de tolerar. Caminho solitário e difícil. Enfrentar o desejo só lhe dá materialidade e força. A ele, dedico apenas meu silêncio cético e aprendo.

Perguntinha Surpreendente

Milagre
Pedaço de Peixe com a imagem de Jesus Cristo

Se “todo mundo” acredita, por que quando “ocorre” um milagre “todo mundo” fica surpreso?

Ou, o homem se engana porque ignora ou porque deseja?

Judicialização do Direito à Saúde no Brasil

O Brasil é um dos 115 países do mundo no qual o direito à saúde está garantido pela Carta Magna. Isso é bom. Já não tenho tanta certeza quanto à validade das interpretações que estão sendo dadas sobre esse direito constitucional. Foi publicado no Lancet, um comentário de um grupo gaúcho sobre os problemas que o estado vem enfrentando em relação ao número crescente de processos com objetivo de custeio de tratamento pelo erário público estadual.

Se considerarmos que uma parte da saúde, talvez não a mais importante, observariam uns, seja a administração de medicamentos e que há, entre o arsenal terapêutico disponível, alguns medicamentos de alto custo e ainda o fato de que o governo garante o acesso à saúde na constituição, não é muito difícil pensar em contratar um advogado para redigir um recurso e que um juiz sensibilizado dê parecer favorável a que o Estado custeie a medicação ao paciente que dela necessite. Dentro de um estado democrático de direito (como insistem em afirmar velhas vozes ditatoriais!) esse é um procedimento regimental e aceitável. É Direito. Entretanto, os autores do artigo entrevistaram alguns personagens dessa história:

“Our recent interviews indicate conflicting views. Many judges and public defenders working on right-to-health cases feel they are responding to state failures to provide needed drugs, and some judges admit a lack of expertise to make informed decisions consistently. Administrators contend that the judiciary is overstepping its role, although some acknowledge that, because of these legal cases, distribution of several drugs has risen. Patients’ associations have a highly contested role. Officials claim that at least some organisations are funded by drug companies eager to sell to the government high-cost drugs.”

Como é complicado o mundo do Direito! O artigo tem como referência uma exposição de um dos autores, Paulo Dornelles Picon da Comissão de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, disponível na rede. Os números são impressionantes. O número de ações judiciais por medicamentos parece seguir uma exponencial nos últimos anos. O pior é que alguns desses medicamentos conseguidos por meios judiciais não têm sequer registro na ANVISA, enquanto outros têm sua efdicácia e/ou segurança ainda não justificados por ensaios clínicos bem conduzidos ou reproduzidos em outros contextos.

Um exemplo frequentemente citado é o dos inibidores da COX2. Essa classe de medicamentos foi envolvida em polêmica desde o primeiro estudo que permitiu seu uso clínico. Em um determinado momento em 2002, segundo Picon, havia nos tribunais gaúchos mais de 28 kg da mesma carta solicitando o rofecoxibe para tratamento (sintomático) da artrite reumatóide. No mesmo ano, o PDCT – Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, documento do Ministério da Saúde que regulamenta o uso de medicamentos excepcionais apontava na página 87 que o uso continuado desses medicamentos tinha uma associação ainda não bem elucidada com o infarto do miocárdio, um dos motivos de sua retirada do mercado anos mais tarde.

O artigo conclui que a judicialização do direito a saúde é uma etapa na história do acesso à saúde no Brasil. Isso envolve direitos humanos, políticas de saúde e práticas de mercado, por isso é necessário aumentar a transparência dos processos que envolvem a liberação de medicações de alto custo, porque de fato, existem pessoas que se beneficiam dessa política. Porém, em decorrência do montante de gastos, tais políticas podem prejudicar a aplicação de recursos em medicina preventiva bem como sua racionalização, caso sejam mal empregados.

Tenho pacientes com processos para receber medicações de alto custo. Alguns necessitam verdadeiramente das drogas, outros nem tanto. Há um caso em que um quimioterápico de última geração e de prescrição off-label, baseada em um relato de uma série pequena de pacientes, foi estocado para uso eventual, caso o oncologista resolvesse prescrever. Não posso julgar os direitos de cada cidadão, minha função não é essa. Por trabalhar em um serviço estadual e também na iniciativa privada, reconheço as falhas e os excessos na estrutura de ambos os lados. A questão é: a corda sempre rompe do lado mais fraco, se é que me faço entender.

Diário de Menininha

Acho que esse post é extemporâneo. Falar da importância dos blogs e de sua divulgação parece não ser mais o hype. Os exemplos pululam: o Fatos e Dados, blog da Petrobrás que, segundo alguns, vem revolucionando a mídia brasileira e a atuação do Ministério da Saúde em responder dúvidas e esclarecer notícias sobre a gripe suína na blogosfera científica, são exemplos que tipificam e consolidam esse tipo de linguagem como dos mais importantes da contemporaneidade.

Por outro lado, tenho evitado falar de política no Ecce Medicus (prefiro muitas vezes falar de religião! Também evito falar sobre futebol devido à fase atual…). Um debate sobre isso ocorreu nos bastidores do ScienceBlogs. É impossível se desvencilhar das opções políticas e de emitir opiniões ou críticas sobre determinadas ações, seja dos governos, seja de pessoas, mas, politizar um blog que não é primariamente sobre política significa, ao menos para mim, perder o foco.

http://3quarksdaily.blogs.com/3quarksdaily/images/2008/09/23/slavoj_zizek.gifContudo, no melhor exemplo “esqueça o que escrevi” fhceano, após ler um interessante artigo de Slavoj Žižek na Piauí desse mês, resolvi escrever sobre a importância dos blogs e política, tudo junto, mas acho que isso proporcionará uma visão diferente sobre a atividade da blogagem. “Shame on me, Mr. President!” Que me julguem os meus leitores!

O artigo fala sobre a recriação da hipótese comunista e que a “nova” hipótese não pode ficar restrita aos malefícios do capital e da propriedade privada. “Não basta permanecer fiel à hipótese comunista: é preciso localizar na realidade histórica antagonismos que transformem o comunismo numa urgência de ordem prática. A única questão verdadeira nos dias de hoje é a seguinte: será que o capitalismo global contém antagonismos suficientemente fortes para impedir a sua reprodução infinita?” pergunta visceralmente Žižek. (A visão do comunismo como ferramenta de crítica sempre me agradou.) A conclusão é que existem 4 antagonismos internos que ele considera suficientemente fortes a ponto de inviabilizar o capitalismo liberal da forma como o conhecemos hoje:

1. A ameaça premente de catástrofe ecológica;
2. A inadequação da legislação da propriedade privada para a propriedade intelectual;
3. As implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos, especialmente no campo da engenharia genética;
4. As novas formas de segregação social.

Žižek então, introduz o conceito de commons (aqui um excerto em inglês) de Tony Negri e Michael Hardt (página 321-324, Império. Record). Ele acha que o que une os “quatro cavaleiros do apocalipse” acima é o conceito de commons, a substância compartilhada de nosso ser social. Esse ser social que emagrece dia após dia, fruto da substituição de uma relação imanente entre o “público” e o “que é de todos” pelo poder transcendente da propriedade privada. Ou seja, o que é “público” não é de livre acesso, é também sinônimo de malacabado, maladministrado e brega. O que é “privado” tem o que é chamado de poder transcendente, quase um fetiche de “coisa chique” que faz com que pensemos ser o melhor. O artigo envereda por esse raciocínio para poder justificar uma nova forma de pensar a hipótese comunista como uma forma de recuperar os commons da vida pública. De qualquer forma, acho que qualquer pessoa poderia considerar que as quatro razões que Žižek citou como tendo de fato poder para desestabilizar qualquer sistema econômico de proporções planetárias, haja vista a fragilidade da causa-motriz da crise vigente. Queria parar por aqui porque gostaria de retomar a raison-d’etre do post.

Ao progressivo esvaziamento do espaço público seguiu-se o surgimento de um enorme espaço virtual. Parece incrível, mas esse espaço virtual é ainda, em sua grande parte, público. Dá voz a grupos e pessoas sem voz no espaço real. É independente e livre e isso é assustador. Não é de estranhar as insistentes tentativas de privatizá-lo (e o projeto do Sen. Azeredo não me deixa mentir), mas chamo a atenção novamente para os 4 pontos de Žižek. Fica fácil agora analisar a atividade da blogagem, seja ela científica, filosófica, política, ou mesmo puramente informacional, como uma das formas de resistência de manter esse espaço público a salvo do sabor das ondas cerceadoras da liberdade pública. Antes de pensar em Esquerda e Direita, termos que carecem de redefinições como a que tentou Bobbio anos atrás, e no que será a “hipótese comunista” no futuro, prefiro aquele velho exercício de imaginar o que pode conduzir meu pensamento e que é externo a mim.

Penso que o que começou como um “diário de menininhas” vem atualmente se tornando numa das maiores e mais poderosas armas contra a opressão do ser humano pelo simples fato de igualar “condições de fala”, pressuposto básico para democracia.

PS. E já que “enfiei o pé na jaca” mesmo: Abaixo o golpe militar em Honduras!

O Paciente Subsidiário

Muitas vezes, em consultas, sou obrigado a explicar alguns conceitos de estatística para que os pacientes não caiam em alguns engôdos bastante frequentes. O mais comum desses conceitos diz respeito à normalidade dos exames laboratoriais. Vamos a ele.

Suponhamos que alguém invente uma nova técnica laboratorial para se medir a glicose no sangue. Como seriam determinados os valores normais desse teste? Uma vez aprovada o procedimento (assegurado o fato de que ninguém morrerá fazendo o exame!), um sujeito sai a caça de voluntários SAUDÁVEIS (isso é importante) para examinar seu sangue de acordo com a nova técnica. Colherá milhares de amostras de sangue, colocará tudo num gráfico e o que encontrará?

http://curvebank.calstatela.edu/gaussdist/normal.jpg
Curva Normal

Uma curva parecida com essa (se não for, estatísticos darão um jeito de ser). No nosso exemplo, as ordenadas são o número de pessoas com uma dosagem específica; as abscissas mostram a concentração de glicose no sangue de cada uma das pessoas testadas. Podemos inferir que algumas poucas pessoas têm a glicemia alta, outras poucas, bem baixa. A grande maioria fica no “pico” da curva, com glicemias intermediárias. O μ do gráfico é a média de todas as glicemias. O σ é o desvio-padrão, uma medida da dispersão da amostra (não entre em pânico, ainda). O σ mede a variação das medidas, a distância em relação à média. Essa curva tem várias propriedades interessantes. A que vamos utilizar aqui é a que está demonstrada no gráfico. É possível calcular a porcentagem da amostra (área sob a curva) de cada ponto. Se avaliarmos a área compreendida entre μ-2σ e μ+2σ, veremos que ela corresponde a 95,44% de toda a amostra. Pronto. Arbitrariamente determino que os valores normais de um teste laboratorial estão compreendidos entre μ-2σ e μ+2σ, sendo que mais de 95% de todas as pessoas SAUDÁVEIS estão nesse intervalo. Essa é a minha normalidade.

Quando um paciente for ao consultório e eu resolver testar sua glicemia utilizando esse teste que acabamos de descrever, existirá uma chance, intrínseca ao método, de que o exame tenha um resultado FORA dos valores considerados normais, portanto vir alterado ou positivo, e o paciente não apresentar absolutamente NADA! Essa chance é, pelo exposto, de 5% (2,5% de cada rabicho da curva, arredondei para 95%). Alguém poderia dizer “Tudo bem, Karl. Nem tudo é perfeito e sempre existe uma margem de erro”. Eu concordo. Porém, o problema é que nunca se pede um único exame. Pacientes adoram fazer check-up “Dr., pede tudo aí porque é o convênio que paga mesmo!”; os médicos adoram pedir exame “Bom, vou pedir tudo, já que vai ter que tirar sangue mesmo!” e são pedidos em média, há estatísticas para isso, 10 a 20 testes por consulta, dependendo da especialidade, plano de saúde, etc.

(Agora é a hora de entrar em pânico!) Quando pedimos 1 teste, a chance deste teste vir NORMAL e o paciente NÃO ter a doença que ele testa é 95% ou 0,95, como vimos. Quando pedimos 2 testes, a chance dos dois resultarem NORMAIS e o paciente NÃO ter doença é 0,95×0,95 = 0,9025. OU SEJA, há 10% de chance (1-0,9025) de pelo menos 1 teste vir alterado e o paciente NÃO ter doença nenhuma. Com 4 testes, a conta fica 0,8145 e a chance de pelo menos um vir alterado e o paciente ser saudável é 1-0,8145 mais ou menos 18%. Quando chegamos ao número de 16 testes, a chance de pelo menos 1 vir alterado e o paciente ser inteiramente saudável é de 1-0,66 ou seja 34%: UM TERÇO! A conclusão disso é muito importante. Quando peço a famosa “batelada” de exames a um paciente, a chance de pelo menos 1 desses exames vir alterado e o paciente ser saudável é enorme. Se eu sou um médico “rifado”, como costumo dizer, dos exames dos pacientes, vou achar doença onde não existe! Vou ficar tentando encaixar o paciente nos exames e não o contrário. É o que eu chamo de paciente subsidiário! O exame é o principal.

Há alguns anos estava na moda uma absurda análise de fio de cabelo na qual uma amostra era enviada aos EUA (sempre lá) onde eram realizados testes para quase todos os elementos da tabela periódica! Eram mais de 50 exames. Sabe-se lá de onde tiraram os valores normais, por exemplo do Cádmio, no fio de cabelo. A chance de pelo menos 1 teste vir fora dos padrões normais independentemente da arbitrariedade com que foram determinados beirava os 100%. Daí, o “médico” de posse dessa poderosa ferramenta dizia: “Minha filha, seus níveis de Cádmio estão muito altos. Você precisa desintoxicar-se!” E prescrevia umas poções, em geral feitas em alguma farmácia da qual ele tinha uma porcentagem sobre os lucros. Alguns pacientes melhoravam, claro. E lá ia toda a manada arrancar os cabelos e beber poções para tentar resolver seus problemas…

Eu fico pensando… Que tipo de médico teria ainda hoje, a coragem de desprezar um teste laboratorial positivo apenas porque ele não se encaixa no racional que montou para seu paciente? Pergunta difícil. Outra. Que tipo de paciente confiaria no médico que lhe dissesse isso? Essa é mais fácil. Um paciente que não quer ser subsidiário.

Atualização

1. O link para o post no Brazillion Thoughts.
2. Comentário no DrugMonkey.