O Diabo da Ciência

Prof. Dr. Karl-Otto Apel “O Diabo só pode se tornar independente de Deus por meio de um ato de destruição”

Karl-Otto Apel (O a priori da comunidade comunicacional)

Recebi dois emails provocativos essa semana. O primeiro sobre o novo livro de  José Arthur Giannotti “Lições de Filosofia Primeira”. Ele defende que “num mundo em que as coisas e as pessoas se tornam descartáveis, a filosofia e o filósofo também se tornam dispensáveis.” Não li o livro (mais de 40 paus!) mas fiquei com vontade. Engoli o batráquio pensativo e logo veio o segundo. Um link do blog Neurologica (muito bom, aliás) sobre uma declaração de Stephen Hawking de que a filosofia da ciência estaria morta. O próprio Neurologica tem um link com uma defesa boa de Christopher Norris. Norris envereda pela crítica que todo cientista faz à filosofia após a “virada linguística” em sua vertente relativística, apelidada de “pós-moderna“, hermética, com termos abstrusos e textos difíceis, e se defende muitíssimo bem (é do ramo!).

Numa coisa, entretanto, discordo totalmente de Norris: a filosofia não precisa de defesa. Ela é uma atitude natural do ser humano. É mais fácil impedir uma pessoa de sonhar que de filosofar (o que, muitos sciencebloggers diriam, é quase a mesma coisa, hehe). A formalização do negócio é que é complicada e muitas vezes envereda para caminhos não muito frutíferos.

Gostaria, entretanto, de abordar o problema com algumas ferramentas frankfurtianas. Meu xará Karl-Otto Apel move uma ofensiva contra o falibilismo dos popperianos acusando-os de ceticismo desenfreiado. Estes últimos (em especial Albert), alegam que ao buscarmos um fundamento (ou critério) para verdade terminamos em um beco sem saída. Quando se tenta derivar o fundamento de outro e este, de outro e assim indefinidamente, ou chegamos a uma causa primeira o que dá, invariavelmente, em alguma divindade; ou giramos em círculos sem chegar a lugar nenhum. Por isso, a melhor saída seria o falibilismo popperiano. Há que se duvidar de tudo, quem estiver se sustentando, sobrevive.

Mas, como não poderia deixar de ser em se tratando de um frankfurtiano da gema como Apel, ele diz que Albert ignora uma terceira via para a fundação do critério de verdade. Assim, diz ele que: 1. O que você diz é verdadeiro se sua sintaxe lógica estiver correta (definição sintática). Há uma regra no jogo e você deve obedecê-la. 2. O que você diz é verdadeiro se suas proposições de base corresponderem à realidade, a tal história da “adequação”, a linguagem como referência à realidade. Para avaliar essa “correspondência” é preciso pressupor uma consciência, também conhecida como sujeito. 3. Quando esse sujeito argumenta, ele o faz com quem? A polemização leva à validação de um conceito e isso só pode ser atingido se tivermos com quem validá-lo, ou seja, outros sujeitos. E chegamos então, a uma comunidade de sujeitos. É essa a terceira saída do beco encontrada pelos frankfurtianos. Wittgenstein já dizia que “o jogo da dúvida pressupõe uma certeza”. Onde existe a dúvida, o sujeito da dúvida não é eliminável. O cético radical tem que duvidar de seu método, ou não? Há um ceticismo ingênuo que nos assola e que tem como único critério de verificação a própria ciência, o que é um argumento circular, já dizia o próprio Popper. A ciência não pode cumprir esse papel que, de tão importante, nos indivíduos teístas é atribuído ao próprio Deus (e é o que aproxima, mais do que se supõe, as ciências de outras racionalidades dogmáticas). Isso não é relativismo, é pensar sobre as formas do pensamento.

Se queremos discutir conceitos temos primeiramente, que admitir uma comunidade que possa fazê-lo. “Criticar, argumentar é pressupor em ato que a comunidade de argumentação é instituída e funciona!” Como diz Apel:

” […] a comunidade dos sujeitos argumentadores não é idêntica à comunidade dos especialistas, embora esta a pressuponha. No a priori da argumentação reside a pretensão de justificar não apenas todas as ‘asserções’ da ciência mas, além disso, todas as pretensões humanas – inclusive as pretensões implícitas dos homens em relação a outros homens que estão contidas nas ações e instituições. Aquele que argumenta reconhece implicitamente todas aquelas pretensões possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que podem ser justificadas por meio de argumentos razoáveis – na falta disso, a pretensão da argumentação se limitaria tematicamente a ela própria[…]”.

Em suma, não é possível, para a infelicidade geral, “matar” ou descartar a filosofia, nem mesmo um pequeno ramo dela, a filosofia da ciência. A ciência seria uma atividade chata e solipsista se assim o fosse, sem jamais alcançar o brilho de hoje. É quase como o indivíduo “temente” a Deus tentar expurgar o Diabo! Ele faz parte das regras do jogo. Ainda bem que cientistas gostam de falar de suas pesquisas e descobertas e que outros cientistas interessam-se em discutir e duvidar de suas premissas porque, ao fazê-lo, já estão a filosofar… =)

Bibliografia

1. Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.
Foto da home-page de K.O. Apel.

Metafísica Médica

ResearchBlogging.orgO que é a Medicina? O lugar-comum das respostas é a tal “fusão entre Ciência e Arte”. Dado que não há uma definição universalmente aceita para Ciência e muito menos para Arte, eis que ficamos em situação bastante pior, posto que uma fusão entre duas coisas indefinidas é uma confusão! Praticar medicina baseado apenas nas evidências científicas, nos processos de generalização e indução, é tratar dos pacientes como sendo iguais em suas diferenças, o que favorece um tratamento massificado; por outro lado, a recusa aos dados científicos nos leva de volta às experiências pessoais, anedóticas de uma medicina pré-científica.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Turkey_ancient_region_map_ionia.JPGCostuma-se dizer que a Medicina é uma profissão e isto é bem verdade. Assim como o sapateiro, o mascate e o barbeiro, o médico procura, com sua técnica, facilitar a vida da espécie humana em troca de alguma remuneração. Uma separação de ordem conceitual, entretanto, começou a ocorrer entre a Medicina e outras profissões há mais ou menos 2500 anos. “Segundo Werner Jaeger (Paidéia – página 198) o conceito de physis foi o ponto de partida de pensadores naturalistas do século VI AC, dando origem a um movimento espiritual e a uma forma de especulação. Na verdade, seu interesse fundamental seria o que chamamos hoje metafísica, por seu interesse nas causas primordiais dos fenômenos.” Esse tipo de pensamento surgiu numa região chamada Jônia (território da atual Turquia – foto ao lado, clique para aumentar e ver os créditos).

Hipócrates e seus seguidores eram da ilha de Cós, de população e língua dóricas, e escreveram todo o Corpus Hippocraticum em jônico. A razão disso é que o jônico era como se fosse um tipo de linguagem científica da época e da região, a exemplo do que é o inglês para o mundo hoje. Ainda segundo Jaeger, a incorporação do pensamento jônico fez com que a medicina se tornasse uma techné consciente, metódica e, principalmente, distante do pensamento mágico, este último o responsável pela estagnação da medicina egípcia desde suas grandes descobertas, todas bem anteriores aos progressos da medicina grega. Longe de querer repetir toda a bela história da medicina, essa minúscula retrospectiva teve o intuito de dizer que a medicina está, desde sempre, apoiada sobre uma base científica para exercer sua profissão. Como é, ou como está, essa base hoje? Posto de outra forma, de que áreas do conhecimento humano se constitui a ciência médica – as bases científicas da prática médica? A tabela abaixo é uma tentativa de resposta sintética para essa difícil pergunta (clique para aumentar – modificado da referência 1).

Já abordamos o assunto sob a ótica do público e do privado e penso que uma das principais confusões sobre a prática médica chamada de “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) seja o fato de que ela pertence ao “privado”, tendo sido sequestrada pelo “público”. Mas, isso é outra história. Quero me aprofundar desta vez, no conteúdo da tabela. A ciência médica compreende, segundo Williams [1], três domínios de pesquisa, a saber, o laboratório experimental, pacientes e, por fim, populações. Cada um desses domínios têm um tipo de abordagem, trabalha com determinadas ferramentas, necessitando de infraestruturas específicas. Nos EUA, têm programas de treinamento diferentes, que em geral se assemelham aos brasileiros. Apesar de bastante abrangente, a tabela dá uma ideia errônea da ciência médica pois supõe que os vários domínios sejam equivalentes em relevância para a prática clínica. Não são. Há, por assim dizer, uma hipertrofia enorme do domínio “pacientes” e de suas ferramentas, em especial, os ensaios clínicos, sobre a forma de se conduzir do médico contemporâneo.

Tentarei me aprofundar nessa questão no(s) próximo(s) post(s). Investigar o porque disso ter ocorrido e tentar estabelecer questões epistemológicas a respeito desse conhecimento que vem dando base à prática médica é uma tarefa talvez demasiado grande, mas tem bastante medaglia chegando. E eu vou atrás…


ResearchBlogging.org1. Williams GH (1999). The conundrum of clinical research: bridges, linchpins, and keystones. The American journal of medicine, 107 (5), 522-4 PMID: 10569311

Boaventura, Baptista e as Ciências em Bom Português

“Atribui-se, é possível que apocrificamente, a Richard Feynman, o comentário jocoso de que a filosofia da ciência é tão útil para os cientistas como a ornitologia para as aves. (…) Mas recorde-se, por exemplo, o que aconteceu quando o Grande Timoneiro lançou uma das suas famosas campanhas contra as aves que destruíam, segundo ele, as culturas agrícolas da China. Foi uma guerra sem quartel que quase exterminou os pássaros e, assim, quase destruiu as culturas agrícolas na China. Qualquer ornitólogo poderia ter informado os ideólogos do partido que, em particular, os odiados pássaros se alimentavam dos insectos que constituíam, esses sim, um perigo muito maior para a agricultura do que as próprias aves.”
António Manuel Baptista –  DISCURSO PÓS-MODERNO CONTRA A CIÊNCIA
Obscurantismo e Irresponsabilidade


Imaginem a cena. Um professor de Zoologia é chamado para um grupo de estudo cujo o tema é “o que é ciência?”. Um dos textos propostos para discussão foi o “Um Discurso sobre as Ciências” do polêmico sociólogo português Boaventura Sousa Santos. Pânico! O texto é recheado de parágrafos rococós, idas e vindas e de fato, imprecisões científicas. A inteligibilidade do texto é um desafio para quem está acostumado ao estilo enxuto e direto da linguagem científica. Que fazer?Antes de mais nada, é necessário entender as raízes de uma “pósmodernofobia” da qual cientistas, divulgadores científicos e alguns sciencebloggers sofrem. Isso porque o Pós-modernismo é visto como uma relativização do discurso da ciência; ou pelo menos assim foi apresentado a ela. Mas, o fato é que o Pós-modernismo não é bem isso. Já é tradicional tentar defini-lo pelo que ele não é, pois que existe muita contradição sobre o que ele é ou deixa de ser. Definição? Nem pensar. Um jeito de entender é que o Pós-modernismo questiona do pensamento moderno (leia-se iluminista) seus próprios fundamentos que antes eram considerados imutáveis, supra-históricos, transcendentais. Ao fazer isso, o pensamento pós-moderno tira de centro o próprio Sujeito cognoscente, veja só. O Sujeito todo-poderoso que havia sido colocado ali por Descartes e toda turma, e também pela sucessão de fantásticos resultados obtidos a partir de então. Ao questionar quem é esse Sujeito, o Pós-modernismo dissipa a objetividade [1], desafia a autoridade e “truca” a adequação entre objeto e experiências impostas a ele pelo Sujeito, o que convencionamos chamar de Verdade científica, porque diz, por exemplo, que isso pode depender de quem é esse sujeito, ou que essa adequação é feita entre o objeto e um discurso que se produz sobre ele, entre outras. Putz, experimenta falar para um cientista dos bons que seu método é contingente (tipo, depende de outras variáveis que não dele próprio), que outro resultado poderia ter sido obtido se fosse conduzido de outra forma, por outra pessoa, etc. Daí toda essa aversão e as reduções perigosas que todo preconceito termina por efetuar: pós-moderno = relativo, sem base, inconsequente, etc. Tudo isso com requintes de crueldade quando um matemático meio irresponsável publicou um monte de baboseiras em um jornal “pós-moderno” e disse, depois, que era tudo uma farsa. “Hahaha, vocês publicam qualquer porcaria bastando para isto escrever um monte de termos rebuscados e difícieis. Isso é que é ciência? Hahahaha”. (No final, até acho que foi bom mesmo, porque os ‘pós-modernistas’ estavam exagerando).Entretanto, o Pós-modernismo, seja lá o que isso queira realmente dizer, trouxe algumas ideias interessantes e algo incômodas para os carinhas de óculos, avental e crachá (alguns têm gravatas também), preenchedores-de-formulários-para-conseguir-$ (provocação explícita a uma certa lista de emails, =)). Em primeiro lugar, toda vez que falamos de ciência, já deixamos de fazer ciência há muito tempo. Qualquer cientista, por melhor que seja, quando fala de ciência está produzindo um discurso (escrito ou não) sobre a ciência. Podemos chamar isto de metadiscurso. Um metadiscurso quando produz uma visão convincente das coisas pode ser chamado de metanarrativa. O Pós-modernismo tem como passatempo predileto dissolver essas metanarrativas e deixar todo mundo com as calças na mão exatamente por mexer com os fundamentos do conhecimento como dito acima! Em segundo lugar, resolveram perguntar pro cientista se o que ele estava fazendo (pressupostamente, Ciência, oras) melhorava o mundo e o ser humano. O cientista ficou bem bravo porque para ele a Ciência é: “Primeiro, uma atividade executada por cientistas, com certas matérias-primas, propósitos e metodologia. Segunda, é o resultado desta atividade: Um corpo bem estabelecido e bem testado de fatos, leis e modelos que descrevem o mundo natural.” E podem prevê-lo. Você não voa de avião? Não tem GPS no carro? Então, não enche meu saco! Óbvio que o mundo é melhor. Mas…… se quando falamos de Ciência já estamos distantes do ponto de vista científico, a partir de qual ponto de vista falamos, então? A rigor, segundo D. Christino, qualquer um” “(..) pode ser filosófico, mas também sociológico, como crê Boaventura de Sousa Santos, ou antropológico, como argumenta Bruno Latour, ou (mesmo) ético-jurídico.” Pois é, Boaventura Sousa Santos (também conhecido como BSS) aborda a Ciência de um ponto de vista sociológico e não poderia ser diferente porque o homem é um baita sociólogo. Por mais defeitos que a Sociologia possa ter (deu-nos até um presidente!), ela tem lá seu jeito peculiar de ver o mundo. E esse jeito peculiar de ver o mundo vê a Ciência e a critica a partir de seu ponto de vista. O livro em questão (“Um Discurso sobre a Ciência”) é muito polêmico mesmo, tendo sido criticado tanto dentro da Sociologia como fora dela. De fora, em especial pelo físico António Manuel Baptista que publicou dois livros em resposta a tese de BSS, rebatendo suas imprecisões. Cristina Pereira publicou um estudo sobre o livro que vale a pena ser lido onde explica toda a polêmica. É sua conclusão que comento abaixo:“‘Um discurso sobre as ciências’, é uma obra polémica que versa o tema da epistemologia das ciências sociais, é nesse campo que nos demonstra que nos encontramos numa fase de transição, uma vez que face à existência de um paradigma dominante, já é possível encontrarem-se vestígios um paradigma emergente.” Apesar de criticas de dentro e fora da Sociologia, segue a autora “A obra está no centro da discussão sociológica e há que lhe reconhecer a qualidade de 21anos depois da sua primeira edição ainda despertar o interesse do público académico, tendo dado origem a outras obras, quer como resposta, quer como defesa de teoria.” 
Ao Eduardo Bessa e à sinceridade de suas dúvidas

A Linha entre Hipocondria e Autonegligência

O título acima foi retirado de um instigante post do Cretinas.
A medicina grega era uma medicina de equilíbrio. Para os gregos, as doenças eram causadas por desequilíbrios entre os humores internos. O médico deveria tratar seu paciente restaurando esse equilíbrio. Grande parte, se não todo o tratamento, deveria ser executado pelo próprio paciente, até porque não existiam muitas medicações disponíveis na época. O médico indicava o caminho a ser trilhado e – era dada grande importância para isso – convencia o paciente à trilhá-lo. Para tal, o médico deveria contar com a confiança de seu paciente. A responsabilidade do paciente sobre sua própria saúde, o cuidado-de-si, acabou ficando um tanto para trás. (Lia outro dia, um fantástico livro do qual ainda vou falar bastante, onde se discutia o papel do médico na conduta moral de seu paciente: seria o médico um aconselhador crônico do paciente do tipo “não fume”, “não beba”, “faça sexo seguro”; ou o médico seria alguém para nos tirar de enrascadas ético-morais com repercussões orgânicas nas quais nos metemos irremediavelmente pelo puro fato de vivermos?)
Deixando essas divagações para uma outra oportunidade, a questão do Cretinas é: como devo regular meu cuidado-de-si? Se muito sensível, me transformo em hipocondríaco. Se pouco sensível, serei negligente comigo, descuidado, ou no jargão médico “tigrão”!

hipocondrio.jpgO termo hipocondria foi cunhado, segundo consta, pelo próprio Hipócrates. É formado por duas palavras hypo = embaixo e chondrós = cartilagem. A região hipocondrial faz parte do exame do abdome e fica exatamente abaixo da última cartilagem costal, portanto à direita e à esquerda. Nela estão alojados dois orgãos extremamente caros à medicina grega: o baço, à esquerda; e o fígado, à direita.(ver figura).
Hipocondríaco é o indivíduo obsessivo por sua saúde. Isso o faz procurar por possíveis doenças a todo momento. Recentemente, foi criado o termo cibercondria para dar conta dos hipocondríacos obsessivos por procurar informações médicas na internet. Baseado nesse tipo de comportamento de massa, o Google criou um sítio com as tendências das anuais epidemias de gripe ao redor do mundo e obteve resultados impressionantes. Isso indica que, não só no Brasil, mas em todos os países, é um comportamento comum do paciente procurar informações sobre suas enfermidades, não importando se essa enfermidade é uma doença rara ou uma “simples” gripe. Sendo assim, quer os médicos gostem ou não, essa é uma realidade da qual não se pode mais fugir, portanto, é melhor estar preparado.
Para mim, a linha entre a hipocondria e a autonegligência é, na verdade, um espaço. Um espaço no qual o paciente deveria sentir um desconforto, mas não o desconforto patológico do hipocondríaco, nem o falso bem-estar do negligente tampouco. Deveria sentir um desconforto que o faça procurar ajuda, hipótese imediatamente rechaçada pelo Cretinas, a meu ver apropriadamente, em função das condições atuais de funcionamento do SUS e também da Saúde Complementar. Isso me faz cavar mais fundo. E aqui começam os problemas. A série “Sala de Espera” me trouxe um conhecimento que talvez eu tivesse intuitivamente, mas que se confirma no pequeno “n” de leitores que frequenta essa minúscula ilha no oceano virtual. As pessoas têm sim, um médico prototípico. Têm um tipo de atendimento em mente e ao contrário do que pensava (além de corroborar o parágrafo acima) têm cada vez menos preconceito de procurar por médicos na internet, se bem que o velho boca-a-boca ainda é muito importante. Isso de certa forma, demonstra que o cuidado-de-si é, em geral, calibrado por uma consciência sobre nossa própria existência e funcionamento. Exatamente porque essa consciência de si passa pela imagem que cada um tem de si próprio é que temos uma variação enorme de limiares e formas de procurar ajuda. A imagem que cada um tem de si (e a preocupação com ela) define os padrões de saúde que cada um quer ter. Tenho dito que um dos maiores problemas da medicina contemporânea é lidar com essa imagem que os pacientes constroem deles mesmos, pois ela sofreu enormes mudanças no último século. A medicina se atrasa em compreender a dissolução do sujeito processada na pós-modernidade, para usar de um exemplo bem batido; outro exemplo é dado pelas dificuldades enormes em separar tecnologia médica de avanço médico. Medicina e médico falham em preencher o espaço entre a hipocondria e a negligência.
Juntando tudo, esse espaço só pode ser preenchido por um médico que tenha a confiança do paciente. Um médico que não conheça tudo, mas saiba como buscar esse conhecimento. Que assuma o paciente como ser sofrente e se empenhe em resolver seus problemas. Muitos dirão “ah, isso é um clínico geral bom e custa muito caro.” Eu concordo (hehe), mas digo que muitos médicos de outras especialidades têm perfil assim. Diria também que alguns convênios, a exemplo do que vem ocorrendo nos EUA, vem estimulando vínculos mais intensos com pacientes problemáticos (telefone, por exemplo) sejam eles hipocondríacos ou não, e conseguindo obter expressivas reduções nos seus custos com isso. É bom para todos. Falta o Estado, do alto de sua insensibilidade histórica, aplicar esse conhecimento em larga escala, pois experiências não faltam, como o Programa de Saúde da Família, programas de atendimento domiciliar a pacientes fora de possibilidades terapêuticas (o NADI no HCFMUSP e no HU-USP), e tantos outros dos quais não consigo lembrar o nome agora (meus leitores me farão justiça). No mais, não posso deixar de concluir que, ao menos ao que parece, estimular vínculos interpessoais e tratamento inter-humano, além de tudo, economiza grana…


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A Epidemia Hiperreal

A célebre estorinha conta que uma mãe passeava com o bebê no carrinho quando uma amiga chega e, encantada com a criança, diz: “Ah, que bebê mais lindo!” A mãe, toda orgulhosa, comete a frase que sintetiza tudo o que eu gostaria de dizer sobre a epidemia da gripe suína: “Você não viu a foto que tenho dele em casa!” Uma das maneiras de entender essa estória nos ajuda a compreender o fenômeno da epidemia da gripe que nos assola (não a gripe, pelo menos, ainda não! O fenômeno!).

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Se admitirmos, pragmaticamente, que somos seres comunicativos e que “produzimos” nossa própria realidade por meio da linguagem e da manipulação de símbolos, temos que aceitar que por vezes podemos “hiper-produzir” uma realidade: uma hiperrealidade. Mais “legal” do que o real, no sentido de mais crível, no sentido também de ser uma produção compartilhada por mais pessoas e por isso, mais real.

Não é uma mentira! Só é mais factível e por isso, mais “cool“. Sempre foi assim. O problema é que em tempos de comunicação ultra-rápida e globalizada, a chance disso ocorrer é bem maior. Ainda mais, quando parece imitar um roteiro hollywoodiano. O povo delira. A quantidade de fontes e textos sobre o fato reproduz-se mais rápido que um vírus. Toma corpo e vida própria. Sim, que importa que morram 200 pessoas anualmente no Brasil de gripe? (sem contar as mortes atribuídas que seguramente ultrapassam os milhares). Que importam nossas mortes violentas? Que importa agora o cerco à Palestina ?

A foto é mais interessante que o bebê real. A pressa em se buscar números, em divulgar, em embargar, matar porcos, criar listas de recomendações, faz a bolsa subir e descer, faz executivos pirarem, empresas falirem, coronárias entupirem. Faz as pessoas ficarem com aquela sensação estranha de falta de sentido, logo ele, sentido, tão importante na nossa vida. Mas isso é que nem gripe. Logo passa. Até a próxima doença hiperreal.

Dupas e o Pós-Humano

Gilberto Dupas em 2008 (Foto: Paulo Giandalia/AE)

Gilberto Dupas foi muitas coisas. Entrei em contato com suas idéias através do livro “O Mito do Progresso” (ver excelente texto-resumo na Novos Estudos de Março de 2007). Me interessei pelo seu trabalho por sua crítica à medicina. Ela se insere num contexto de crítica ao próprio capitalismo tardio em sua vertente chamada biocapitalismo. O texto que reproduzo abaixo, publicado n’ O Estado de hoje, está dentro dessa linha de raciocínio.
Quase que numa redução fenomenológica (aprendi isso com um amigo), Dupas vai despindo o ser humano dos atributos de sua humanidade até chegar ao que chama de ciborgue e de pós-humano. Por mais que esse exercício seja perigoso e tenha seus efeitos colaterais, ele é necessário. Como ele mesmo diz “do transplante de órgãos às terapias genéticas, passando pela fabricação de tecidos de substituição, a indústria biofarmacêutica e a medicina regenerativa assumem o biocontrole de uma sociedade que se quer pós-mortal”. Não queremos a morte. Não queremos a velhice.
O sonho da imortalidade inclui “modificar geneticamente o corpo humano a fim de parar seu crescimento biológico antes do período da puberdade. (…) Tornados estéreis pelo bloqueio artificial de seu desenvolvimento, eles não seriam nem homens nem mulheres, mas seres assexuados e fisicamente imaturos, ainda que intelectualmente adultos.”  Não queremos sexo primitivo com fins reprodutivos. Ele pressupõe a maturidade do corpo e todos os efeitos deletérios que dela decorrem, da osteoporose aos pelos que teimam em crescer, das rugas às doenças cardiovasculares, do Alzheimer e o esquecimento de si ao espasmo da morte.
Por fim, termina dizendo que: “Enquanto (o biocapital) anuncia o alongamento sem fim da expectativa de vida das gerações mais velhas a custos exorbitantes, cerceando o espaço essencial da alternância de gerações, reduz a saúde dos jovens estimulando o consumismo que provoca obesidade, diabetes, cânceres e outras doenças sistêmicas geradas pelas contaminações e pela inatividade física.”
 Precocemente, aos 66 anos, de câncer de pâncreas, faleceu na madrugada de 17/02/2009, o economista,  professor e, humanista, Gilberto Dupas.

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Ainda Sobre Racismo

Interessante livro sobre racismo do qual fiquei sabendo no Biscoito que por sua vez leu no Liberal Libertário Libertino: The Racial Contract de Charles W. Mills.
A tese do livro, bastante foucaultiana aliás, pelo menos em uma primeira aproximação, é que o racismo é um sistema político e uma estrutura de poder baseados em um contrato social que seria na verdade, um contrato racial. Esse contrato funcionaria como uma “matrix”, chamada de “alucinação consensual” que impediria a correta interpretação da realidade. O LLL comenta:
“Na verdade, a força ideológica do Contrato Racial em criar e moldar a realidade é tamanha que ela mantém a maioria dos seus beneficiários em eterno estado de denegação histérica. Como enxergar a realidade significaria encarar também sua cumplicidade no Contrato Racial, apelam para “racionalizações tão fantásticas que beiram o patológico”, gerando uma “ignorância dolorosa tão estruturada” [a tortured ignorance so structured] que torna impossível levantar certas questões. Por mais que se aponte e se prove empiricamente a virulência do racismo, eles não acreditam e, paradoxalmente, não conseguem acreditar justamente porque sabem que é verdade. (Mills, 97)”
A estruturação do discurso racista se faz tão insidiosamente que se confunde com o “meio” no qual vivemos como se não houvesse outra alternativa. Assim como o peixe que não vê a água, também os pertencentes à raça dominante, não enxergariam o racismo. Como os objetivos são a manutenção do status quo, de privilégios a oportunidades, seria uma ferramenta fundamental de dominação que permearia todas as esferas da sociedade, todos os dispositivos do estado, todo e qualquer rincão onde o poder dominante pudesse ser ameaçado. Pergunto-me se a ciência, que sabemos ser um dispositivo fundamental na constituição do estado no capitalismo tardio, estaria fora desse circuito.
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Feliz Natal a todos.

Sexo e Progresso

Cézanne – Afternoon in Naples with a Black Servant – 1875-1877

O último post me deixou um pouco encafifado e, procurando em meus alfarrábios virtuais, achei um ensaio de Zygmunt Bauman de 10 anos atrás sobre o uso pós-moderno do sexo. Segue um parágrafo do começo:

“Sex, eroticism and love are linked yet separate. They can hardly exist without each other, and yet their existence is spent in the ongoing war of independence. The boundaries between them are hotly contested – alternatively, but often simultaneously, the sites of defensive battles and of invasions. Sometimes the logic of war demands that the cross-border dependencies are denied or suppressed; sometimes the invading armies cross the boundary in force with the intention of overpowering and colonizing the territory. Torn between such contradictory impulses, the three areas are notorious for the unclarity of their frontiers and the three discourses that serve (or perhaps produce) them are known to be confused and inhospitable to pedantry and precision.”
Dos três campos em guerra, para usar a metáfora baumaniana, o sexo é o menos humano, o que menos progrediu com a espécie e o que tem laços mais tênues com a cultura. Para aqueles que acreditam na história do sexo, rebate dizendo que  temos na verdade uma história da manipulação cultural do sexo.
E eu que pensava que a tecnologia do corpo pudesse ser vista como um “progresso” sexual…

Medicina e Pós-modernidade


“Within medicine one response to the relativism and uncertainty created by postmodernism has been to emphasise the evidence on which medicine is based. After all, if there are knowable medical truths “out there” then we should get our act together and apply them. Evidence based medicine promises certainty–do enough MEDLINE searches and you will find the answer to your prayers. Read in this way, evidence based medicine is a reaction to the multiple, fragmented versions of the “truth” which the postmodern world offers. It is also a serious attempt to invent a new language that might reunite the Babel of doctors and patients, managers and consumers. However, an evidence based approach will only work for as long as we all view medicine as “modern”–that is, as making statements about an objective, verifiable external reality. To the postmodernist the question is whose “evidence” is this anyway and whose interests does it promote?”
Paul Hodgkin contesta o “tratamento” de Bruce Charlton. E vai além, chama a atenção para a intromissão da tecnocultura no pensamento médico contemporâneo. Abrindo o caminho para Hofmann.

O Atraso da Medicina

A meta suprema do Esclarecimento é o progresso obtido através da aplicação da racionalidade. No mundo esclarecido ou moderno, a livre investigação de pessoas racionais, com método e honestidade, leva invariavelmente à Verdade. A Verdade é fixa, transparente e, uma vez atingida, todos seres pensantes devem concordar com ela.
A Pós-modernidade é um mundo onde a racionalidade é desconstruída revelando sua base na subjetividade. A Verdade agora é construída e não descoberta. Relativismo mais que objetivismo. Preferência mais que verdade.
Por mais que se discuta o termo, será útil considerarmos, na ausência de uma definição melhor, que o mundo atual é pós-moderno. Vários segmentos culturais têm se comportado assim. O pensamento dominante na Arte, na Literatura, na Política, na Mídia e mesmo em textos filosóficos, é pós-moderno. Apenas um campo de atuação da ciência e cultura humanas continua fortemente influenciado pelo pensamento moderno/esclarecido: a Medicina…
Como disse um autor:
Medicine is(…) an island of rationalistic modernity floating in a shifting sea of subjective post-modernity – a castle of objectivity besieged by the forces of relativistic cynicism …