Cisto Sinovial
João Batista era eletricista. Ficou desempregado e conseguiu arrumar um “bico” de porteiro no meu condomínio. Uns 30 anos de idade, sergipano, de pele clara e sorriso fácil, frequentemente sofria repreensões do zelador, seu Belerino, por conversar demasiadamente com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família”. “Meu fraco, Doutor”- como ele dizia. Sabia que eu era médico. Um dia, após estacionar o carro na vaga, abri a porta e dei de cara com o João. “Doutor, olha isso que apareceu na minha mão. É grave?” Examinei e na face dorsal da mão havia um nódulo de uns 2 ou 3 cm de diâmetro.
“Está doendo?” perguntei. “Não, Doutor. Não dói nada” – respondeu. Comecei o discurso: “João, isso parece bastante um cisto sinovial. É um cisto benigno.” Enquanto falava, apertava o cisto com o polegar para sentir a consistência e ver se realmente não doía. “Antigamente, tratava-se isso colocando um livro pesado em cima, de preferência uma Bíblia e ele desaparecia. Hoje sabemos que é autolimitado, desaparece sozinho.” Fui falando devagar e pausadamente. João Batista prestando a maior atenção. “Alguns médicos operam isso, mas só se estiver doendo muito. Portanto, não há nada a se fazer por enquanto” – terminei. Ele disse “Então não é nada, né, Doutor? Posso ficar tranquilo?” Eu já sem muita paciência “Sim, João, pode ficar tranquilo. Qualquer coisa me avise”.
Algumas semanas depois, estaciono o carro e deparo novamente com João Batista. “Fala, João. O que foi dessa vez?” – disse amistosamente. Ele olhou para mim, chegou mais perto como quem vai contar um segredo e disse “Doutor, o senhor benze?”
Eu entendi tudo em frações de segundo. Também fiz uma tenebrosa previsão do futuro nos milésimos seguintes. Milhares de pessoas na porta do condomínio, crianças chorando no colo de mães impacientes, idosos, barracas de churrasquinho, a vizinhança em polvorosa, todos esperando o Doutor Benzedor… Inverti as sombrancelhas e falei bem sério “João Batista, eu não benzo. Seu cisto desapareceu sozinho! Se você espalhar para alguém que eu te benzi, vou falar com o Belerino e ele te manda embora!” “Não, não, Doutor. Faça isso, não! Só queria saber. Não precisa ficar bravo. Pode ficar tranquilo que eu não falo para ninguém” – disse ele, se desculpando e andando em direção à portaria. Virei as costas e entrei no elevador segurando a risada. Já pensou, eu benzedor!
Algumas semanas se passaram e após estacionar meu carro… Bem, lá estava João Batista de novo! Saí do carro e olhei para ele sem dizer nada. Ele, com a mesma cara com a qual falava com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família” me perpetrou a seguinte frase:
“Doutor, eu sei que o senhor não benze. Sei sim, pode ficar tranquilo e não falei isso para ninguém. Mas dá para o senhor passar o dedo aqui?”
Com o indicador apontava para a outra mão onde jazia, imponente, um novo cisto sinovial…
imagem retirada de Ehow.
A Fisiopatologia do Preconceito
My brown eyed girl by Mike Doyle at Flickr
“Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provêm da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação, uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal”
Com essa frase, Olgária Matos sintetiza a fisiopatologia de uma doença característicamente humana chamada preconceito. Ela tem como agente etiológico o dogmatismo, elemento altamente contagioso por causar uma falsa sensação de conforto por fazer com que nos sintamos apoiados em verdades firmes e seguras. O indivíduo dogmático é um verdade-adito. Quando compartilhamos um conjunto de dogmas acabamos por criar uma origem identitária que se diferencia de outras origem identitárias.
Essas origens identitárias, necessariamente factícias portanto, produzem uma doença da comunicação, um desentendimento, o que se chamou de ruptura na compreensão recíproca que resulta, finalmente, em desconfiança universal. A desconfiança é um vírus que se dissemina rapidamente e envenena as relações humanas. As relações humanas, por sua vez, têm uma estranha capacidade de sobreviver a essa infecção, mas matar e/ou torturar os envolvidos nela, seja por meio de guerras, escravidão, colonizações, fome, abandono, discriminação e outros tantos sintomas de intolerância e agressividade para com o outro.
É na busca pelas “verdades dogmáticas” e pelas “essências humanas” – identidades fictícias – que se encontram os reais obstáculos à solidariedade. Será necessário impingir o mesmo tipo de sofrimento ao torturador para poder expiar-se-lhe a culpa? De onde vem esse ressentimento? O anti-racismo não é um racismo às avessas.
É uma solidariedade…
O Olho Azul
“Porque nós também não temos o direito de permitir que sejam os pobres, que viajam o
mundo a procura de uma oportunidade, de um emprego, de um salário, de uma
renda, que sejam os primeiros a pagar a conta de uma crise feita pelos pelos
ricos. Que não foi causada por nenhum negro, nenhum índio e por nenhum
pobre. Uma crise causada, fomentada, por comportamentos irracionais de gente
branca, de olhos azuis, que antes da crise pareciam que sabiam tudo e que
agora demonstram não saber nada” – Presidente Lula.
Não tinha lido a declaração toda. O contexto me parece o de uma discussão sobre imigração. Fechamento de fronteiras por falta de emprego é fato comum nesses períodos. Acho mesmo que o Lula tem razão em dizer que a crise não foi desencadeada por nenhuma pessoa pobre. Mas conta-se nos dedos, as grandes crises provocadas por populações desfavorecidas. A de 1929, a crise com a qual esta atual tem sido frequentemente comparada, também não foi obra dos pobres.
A questão aqui de fato, não é esta. Tenho me debatido, escrito e falado bastante sobre o conceito de raça humana. Sobre os perigos em procurarmos uma essência do humano e da própria humanidade. Tenho me interessado bastante pela solidariedade. Pela ciência solidária, política solidária e outras utopias. O discurso de Lula é racista. Combate fogo com fogo e sinceramente não sei se é eficaz para fazer europeus e americanos enxergarem a dura realidade. Sou radicalmente contra qualquer argumentação que utilize elementos raciais como premissas ou os obtenha como conclusões.
Acho no mínimo curioso que a frase de Lula tenha feito segmentos da Esquerda vibrar de alegria; essa mesma Esquerda que defende negros, índios e homossexuais da discriminação não pode se vangloriar de ter utilizado da mesma arma covarde do racismo.
Mais sobre o Rubor Facial
Interessantíssimo artigo da Plos sobre a ruborização facial que algumas pessoas de origem oriental (japoneses, chineses e coreanos) apresentam após ingerir quantidades, mesmo que pequenas, de etanol.
Rubor facial provocado pelo álcool no artigo da Plos
Quase 1/3 dos leste-asiáticos têm esse tipo de resposta associada ao etanol, muitas vezes acompanhada de taquicardia e náuseas. Isso é devido a uma deficiência genética de uma enzima hepática chamada aldeído-desidrogenase 2 (ALDH2). O etanol é metabolizado inicialmente a acetaldeído e depois para acetado pela ALDH2. A ALDH2 pouco eficaz dos orientais faz com que o acetaldeído, altamente tóxico, se acumule. Apesar desse achado ser bastante conhecido, o fato novo é que a ALDH2 menos eficiente é associada com risco aumentado para um tipo mortal de câncer – o carcinoma espinocelular de esôfago. Em alguns estudos, a chance (odds ratio) chega a ser multiplicada por 18.
O acetaldeído é o responsável pela ruborização facial e pelos outros sintomas constitucionais, mas também pela carcinogênese pois induz mutações genéticas que facilitam o aparecimento do câncer. Por incrível que possa parecer, a ingesta de álcool em pessoas com deficiência de ALDH2 vem aumentando nos últimos anos. Como estima-se que aproximadamente 540 milhões de pessoas apresentem o defeito genético, podemos imaginar o efeito disso em políticas de saúde pública.
Toda vez que temos um gene que codifica uma mal-adaptação a uma população, principalmente na frequência com que esse alelo incide, surgem dúvidas sobre qual o mecanismo que possa ter sido o responsável pela seleção do gene mutante. Já comentamos que essa pergunta institui a medicina evolucionária. Mas, segundo o raciocínio de um importante pesquisador poderia ser porque os japas beberrões são mais facilmente identificáveis pelas japinhas que assim se interessariam por eles, pois saberiam de antemão exatamente quando eles beberam uns sakês a mais, enquanto que os outros poderiam disfarçar melhor, já que o sakê, diferentemente da cachaça ou do uísque, não deixa o hálito alcoólico. Que tal? Na verdade, esse tipo de raciocínio – a resposta à pergunta: o que selecionou o alelo? – resume tudo que deveria ser investigado no assunto: nossa história evolutiva. Tentar contar essa história talvez seja a tarefa mais biológica que um médico possa desempenhar.
Perguntinha Inverossímil
E em meio a aquinização da ciência brasileira, surge a perguntinha, quase infantil, quase óbvia, quase inverossímil mesmo:
“Se fosse possível um transplante de cérebro, o que de fato estaríamos a transplantar? O cérebro ou todo o corpo?”
O Físico
Noah Gordon escreveu um livro em inglês chamado The Physician. Em espanhol, o livro chama-se El Medico. Em Portugal, virou O Médico de Ispahan. No Brasil, o livro foi traduzido como O Físico, o que gerou muitas reclamações. Muita gente acha que o título do best-seller foi um erro crasso do tradutor, pois physician quer dizer médico em inglês; physicist seria o que chamamos de físico.
Mas… Ou o tradutor cometeu mesmo um erro ridículo e todos nós que somos muito mais espertos (e expertos também) deveríamos assumir seu posto ou ele é um gênio da tradução (que talvez seja a pior profissão que alguém que estudou Letras pode querer para si).
Senão, vejamos. Como físicos eram conhecidos os antigos médicos. Bem antes de existir a Física como a conhecemos hoje. Físico era quem estudava a física. As palavras vêm do latim, physica, que por sua vez veio do grego physiké que quer dizer “ciência da natureza”. Isso porque a palavra grega physis (φυσις), que representa um conceito bem difícil de explicar, é simples e cruamente traduzida como ‘natureza’. Segundo Werner Jaeger (Paidéia – página 198) o conceito de physis foi o ponto de partida de pensadores naturalistas do século VI dando origem a um movimento espiritual e a uma forma de especulação. Na verdade, seu interesse fundamental seria o que chamamos hoje metafísica, pelo seu interesse nas causas primordiais dos fenômenos. Sigamos Jaeger: “No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente (ou seja, uma ontologia)”.
Esse tipo de “filosofia” natural era principalmente jônico. Hipócrates e seu seguidores eram da ilha de Cós, de população e língua dóricas. É sintomático que tenham escrito todo o Corpus Hypocraticum em jônico – era como se fosse o inglês científico de hoje. A incorporação do pensamento ‘físico’ dos jônicos fez com que a medicina se tornasse uma arte (tekné) consciente e metódica. O Egito, nessa mesma época, tinha uma medicina bastante avançada mas que não conseguiu livrar-se do pensamento mágico para evoluir como ciência. Logo, a Medicina passou de uma simples profissão para uma força cultural. Não é exagero dizer que o médico era o protótipo de um saber com fins éticos de caráter prático, sem o qual a ciência ética de Sócrates seria inconcebível nos diálogos de Platão. Essa posição jamais será retomada na sociedade pós-iluminista.
Sabemos agora que os médicos nos seus primórdios eram físicos e o tradutor do livro mandou muito bem – o que é raro – pois dá a exata noção da palavra inglesa physician. Os físicos tinham esse nome por seguirem determinada filosofia jônica que rendeu muitos e interessantes desdobramentos, inclusive a própria ciência, tal como a conhecemos hoje e que, de certa forma, como um Frankenstein, engoliu a Medicina. Mas isso é assunto para outro post.
Tempo de Não Tremer
Miguel Nicolelis emplacou outro artigo. Desta vez na Science. O estudo, considerado uma nova esperança para pacientes com o mal de Parkinson, foi conduzido na Univesidade de Duke, onde ele chefia um laboratório de pesquisa de ponta em neurociência.
Em ciência, às vezes os estudos empacam em determinado ponto. Os cientistas ficam girando em torno do problema, as publicações se repetem. Tentativas cada vez mais sofisticadas de aplicação do conhecimento adquirido são sintomáticas desse período. De repente, por alguma razão, alguém reconfigura o conhecimento. Rearranja os mesmos dados num formato diferente e enxerga o que ninguém via antes. Foi mais ou menos isso que aconteceu com esse estudo.
Miguel reconfigurou dados e aproximou o mal de Parkinson de outro monstro mitológico da neurologia: a epilepsia. Como o próprio Miguel disse em entrevista: “Foi um momento de súbita iluminação. Estávamos analisando a atividade cerebral de camundongos com Parkinson e, de repente, me lembrei de uma pesquisa que fiz sobre epilepsia uma década antes. A partir dali, as idéias começaram a fluir”. A atividade cerebral nos modelos experimentais de Parkinson se assemelha a convulsões leves e de baixa frequência observadas em modelos de ratos com epilepsia.
Por mais inusitada e genial que possa parecer essa idéia, ela não é totalmente original. No filme Tempo de Despertar o personagem de Robin Williams, o Dr. Malcolm Sayer reconta a história verídica de Oliver Sacks, neurologista que na década de 60 imaginou que pacientes catatônicos poderiam ter um tipo de mal de Parkinson com tremores tão finos, que seriam imperceptíveis. Ao tratá-los com L-dopa, medicação utilizada na época para o tratamento do Parkinson, obtem melhora impressionante dos pacientes. O filme gira em torno do drama da melhora brilhante com os efeitos colaterais da droga que viriam a inviabilizar seu uso a longo prazo.
Longe de desmerecer a estupenda descoberta, prefiro enveredar pelo caminho da religação dos saberes. Cada vez mais, ultraespecialistas darão lugar a cientistas que saibam buscar respostas nas mais diferentes áreas do conhecimento humano. Mesmo que seja da ficção. Aliás, quem disse que ficção não é conhecimento?
Dom José, excommunicate me!
This is the english version of a post written in portuguese, which can be found here.
The excommunication of the medical team – including the doctor, the nurses, and other staff of the surgical room – that performed the abortion, with legal consent, in the nine-years old child that was pregnant after being raped by her stepfather by Olinda’s archbishop dom José Cardoso Sobrinho, is still generating a huge debate in the media.
The succession of absurd is endless: the lawyer of Olinda Archdiocese, Márcio Miranda, plans to sue the girl’s mother over homicide because she authorized the abortion. The Vatican agreed with the decision of the Archbishop, which includes the non-excommunication of the stepfather.
I write this text to denounce the silence of Pernambuco’s Regional Medicine Council (CREMEPE) and to claim for an urgent position from the Institution. At the moment, only the Physician’s Syndicate has made an official statement. A Medicine Council has the obligation to represent their associates, even if an excommunication is an insignificant matter. Just the international repercussion of the case and the whole debate in the press would be enough for that. The image above is from a play organized by CREMEPE in order to increase public awareness about a public health problem (children abuse), specially in Recife’s area. In solidarity with Sérgio Cabral, the doctor in charge of the medical center and his whole staff that saved this child’s life, I sincerely request to be excommunicated. Excommunication is a public punishment, a mark, a label, almost a damnation, but – in this case – it became a symbol of the misery of our society and the poor state of our institutions. If fighting inequalities and injustices are worth of excommunication, I want to be excommunicated now. For this reason Spinoza is one of my greatest idols: he was excommunicated from two religions!
Dom José, for God´s sake, excommunicate me!
Será?
Entretanto, essa semana o Osservatore Romano publicou um artigo do Monsenhor Rino Fisichella (foto ao lado). Trata-se de um arcebispo bastante ligado a Ratzinger e que criticou Obama por seu posicionamento sobre o aborto (ver aqui). Segundo nota da BBC, Fisichella teria escrito que “são outros que merecem a excomunhão e nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e a ajudarão a recuperar a esperança e a confiança, apesar da presença do mal e da maldade de muitos“.
Duas coisas apenas a comentar. Em primeiro lugar, cobrei e cobro ainda, um posicionamento do conselho regional de medicina de Pernambuco (CREMEPE), sobre o assunto. Reitero que a excomunhão, por mais irrelevante que seja atualmente, é uma reprimenda pública. Entidades civis, como o CREMEPE, são humanitárias e têm uma outra visão sobre um mesmo assunto e deveriam se manifestar, quase como um direito de resposta. Por que não?
Em segundo lugar, o artigo de Fisichella mostra que a interpretação de uma lei, mesmo que canônica, não é tarefa fácil. A aplicabilidade prática de uma regra depende de uma racionalidade fronética. É o mesmo tipo de problema que um médico, por exemplo, enfrenta ao ter que decidir se determinado artigo científico se aplica ao paciente que se lhe apresenta ou não. A novidade é essa dissensão tornar-se pública num orgão hierárquico e obscurantista como a Igreja Católica. Palavras de Fisichella “Como agir nesses casos? É uma decisão difícil para os médicos e para a própria lei moral. Não é possível dar parecer negativo sem considerar que a escolha de salvar uma vida, sabendo que se coloca em risco uma outra, nunca é fácil. Ninguém chega a uma decisão dessas facilmente, é injusto e ofensivo somente pensar nisso.” Viva Aristóteles!
Numa fala que poderia muito bem ser de um bispo brasileiro, Fisichella arremata: “Não era, portanto, necessária tanta urgência em dar publicidade e declarar um fato que se atua de forma automática, mas sim um gesto de misericórdia“.
Será?