Um Rosto sem as Maçãs 2

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É impossível para qualquer médico saber tudo sobre todas as doenças. Mas há um problema anterior a esse que é o de identificar a presença da doença. Saber se ela existe ou não no paciente que estamos a avaliar. Isso pode ser bem mais complexo do que parece à primeira vista. Atribuir uma causa psicológica para algo que tem um substrato fisiológico ou “orgânico”, como gostam de dizer alguns clínicos da velha guarda, é um erro estratégico que pode custar a vida do paciente. Há uma máxima antiga que diz que esse tipo de diagnóstico – o de causa psicológica – é um “diagnóstico de exclusão”, ou seja, excluídas todas as outras causas possíveis, então, e só então, ficamos com ele. Devassei com perguntas a vida privada da moça. Exceto pela sua natural timidez, não havia nenhum estigma depressivo, nenhum tipo de comportamento compulsivo, nenhum vício. Nada. Ela estava feliz por realizar um casamento há muito programado e preocupada com nossa preocupação em relação a algo que ela achava relativamente simples. Viera apenas checar algo estético. Nada de mais. Saí do consultório 12 e voltei para sala de discussão.

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Afundei na poltrona. Dessa vez, era o meu indicador no temporal direito que apoiava minha cabeça. Como diagnosticar alguma coisa que nunca tinha visto antes? O aluno parado com a ficha na mão, me observava, se divertindo comedidamente com minha transparente agitação mental. Outros médicos já organizavam pastas, estetoscópios, canetas e carimbos, aprontando-se para enfrentar outro pesado dia de ambulatório. Ao perceber a discussão que se avolumava, um deles perguntou qual era o problema. O interno contou-lhe o caso. Ele voltou-se para mim e disse “Isso não existe. Prescreva um polivitamínico pra menina e deixe que ela case em paz”. Era um dos senhores bonachões. Eu pensava exatamente como ele, mas minha “intransigente vaidade juvenil médica” me fazia agora pensar no exato oposto. E se houvesse realmente uma entidade que explicasse o paradoxo “engordar o corpo e emagrecer o rosto”? Seria interessante, não? O problema é que eu não sabia nem por onde começar.

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Acostumamos desde o início do curso médico a pensar sindromicamente nos grandes problemas que afligem a espécie humana. Por exemplo, uma queixa de falta de ar, após uma caracterização apropriada, gera o diagnóstico sindrômico de insuficiência respiratória. Esta, por sua vez, na dependência da velocidade de instalação, pode ser aguda ou crônica. Uma insuficiência respiratória crônica tem várias causas. Pode ser de origem respiratória, cardíaca, causada por descondicionamento físico ou mesmo de fundo psicológico. As causas respiratórias podem ser relacionadas a problemas nos brônquios, nos alvéolos pulmonares, nos músculos respiratórios, etc. Esse raciocínio segue para todas as causas e o que não é possível descartar com a história e o exame físico, descartamos com exames laboratoriais, de imagem ou anatomo-patológicos, como as biópsias. Grosso modo, é essa a forma como funciona o raciocínio clínico comum. A moça em questão poderia ter, como imaginei no início, o diagnóstico de uma síndrome consumptiva. Teríamos que investigar problemas de tireóide e até descartar a presença de neoplasias. Entretanto, isso não se sustenta pois a pobre ganhara 3 kg em sua silhueta o que descarta uma sindrome cuja principal característica é perder peso. Problemas psiquiátricos podem alterar a forma como nós nos percebemos. A anorexia nervosa é o exemplo mais radical disso. De novo, em uma conversa rápida com a paciente era fácil perceber que seu estado psicológico não era suficiente para causar tamanho estrago. Além disso, sua foto no documento de identidade não deixava margem à especulações. Me defrontava pela primeira vez em minha curta profissão de médico com um problema que depois vim compreender como sendo um dilema que atravessou séculos de prática médica, sendo conhecido desde os tempos da ilha de Cós: o problema da sede das doenças. Mais importante que responder à pergunta “o que é?” é saber “onde está a doença”. Essa aparente inversão “ontológica-topográfica” é característica do pensamento médico de todos os tempos e a origem que a justifica é bem simples: para iniciar o combate a alguma coisa, o mais importante não é saber o que é, mas sim, onde está. Entre escolher acertar o diagnóstico ou acertar o tratamento, a última alternativa é sempre preferível. Eu não sabia onde localizar a doença da moça. Meus esquemas de raciocínio clínico acostumados a pensar em orgãos e sistemas, insuficientes ou hiperfuncionantes, e que sempre deram conta de diagnosticar os casos mais difíceis, nessa situação, não estavam funcionando. Ou eu prescrevia polivitamínicos à paciente e a liberava para casar, ou achava a sede da doença, fazia um diagnóstico brilhante e assim, alimentava ainda mais minha insaciável vaidade. Mas, para isso, eu precisava de uma pista.

(continua…)

Gravura de Emily Evans no Street Anatomy. Clique aqui para ver o original.

Um Rosto sem as Maçãs

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O Ambulatório Didático estava frio e vazio naquela manhã de sexta-feira. Era meu dia de chegar primeiro. Cumprimentei os funcionários de sempre com um sorriso automático, contornei o cadastro de pacientes e entrei na sala de discussão afundando na poltrona de couro surrado que nunca me parecera tão confortável. Dor de cabeça e sono são uma combinação terrível para quem tem que discutir didaticamente casos de Clínica Médica com alunos do 5o ano de medicina. Eles são, por vezes, digamos, demasiado insistentes em detalhes que têm pouca importância. A mentalidade prática do médico mais experiente constroi atalhos difíceis de serem trilhados pelos estudantes. Se bem que eu não poderia ser chamado exatamente de experiente dado que terminara a residência há apenas 2 anos. Na verdade, eu era bem mais confiante que experiente. Tinha aquela confiança própria de motociclistas cuja moto ainda nunca havia derrubado. Ocupava a mesma posição de outros médicos, estes sim, com 20 ou 30 anos de formatura. Senhores bonachões aos quais eu frequentemente confrontava em conhecimento e condutas. Eles, bem, digo que eles tinham bastante paciência comigo.

Dizia então, que sentara na poltrona e, com a cabeça apoiada na mão direita fechada sobre minha maxila, fiquei a vegetar modorrento, quase arrependido da noite anterior, quando chegou um interno com a ficha de um paciente na mão.

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“Posso discutir um caso?” “Claro” eu disse sem a menor convicção. “É uma paciente de 31 anos cuja queixa é que seu rosto emagreceu…” disse o aluno e ficou me encarando, esperando alguma reação. De olhos fechados, inabalável, eu disse “Quantos quilos ela perdeu e em quanto tempo?” iniciando a caracterizacão anamnéstica de um possível quadro consumptivo. “Ela engordou” disse o quintanista, com um rasgo indisfarçável de prazer. Eu tive que abrir os olhos e olhar para o rapaz. Era um garoto grande, 1,90 m, bom aluno e bom atleta, mas nada de excepcional. Já conhecia-o de outros casos e nunca tinha me chamado atenção exceto pelo corpanzil. Seus pacientes que retornariam das consultas passadas ainda não haviam chegado e ele resolveu chamar a moça que aguardava, sozinha, na sala de espera. “Engordou?” “Sim. Disse que ganhou uns 3 kg. Mas, o rosto emagreceu” – respondeu agora bem sério, dando peso às suas afirmações. A impressão de que ele me pregava uma peça foi se dissipando. “Você a examinou?” “Sim. Não vi nada de mais. Tudo normal.” Levantei da minha poltrona e fiz sinal para que ele me mostrasse o consultório onde estava. O ambulatório começava a receber outros pacientes e a sala de pré-consulta – onde as enfermeiras aferem os dados vitais e avaliam as queixas dos pacientes – já estava lotada. Entramos no consultório 12.

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Era uma moça bem clara, de cabelos castanho-claro, finos e estendendo-se até os ombros; tímida, corou ao me ver. Me apresentei e sentei na cadeira reservada ao médico. O aluno ficou em pé do meu lado direito. “O que aconteceu?” – perguntei. “Dr. Eu vou me casar em Julho e fui experimentar o vestido. A costureira ao me ver ficou feliz porque achou que eu tivesse emagrecido. Mas na verdade, engordei. Acho que estou nervosa, trabalhando muito e tenho abusado do chocolate” – disse isso e olhou para o chão, como se tivesse cometido um pecado. “Sim. Mas e a história do seu rosto?” – perguntei querendo chegar logo ao problema. “Pois é. Todo mundo está dizendo que meu rosto emagreceu, mas eu, de fato, engordei um pouco.” Olhei bem de frente para ela. Levantei e peguei seu queixo com a mão direita, para examiná-la bem de perto. Eu jamais tinha visto algo semelhante. De fato, o rosto da moça estava emagrecido. As maçãs do rosto bem murchas deixavam transparecer os ossos que estavam por trás. Os olhos discretamente encovados. Tive uma ideia. “Você tem alguma fotografia antiga com você? A identidade, por exemplo?” Ela tinha. A foto não deixava dúvidas. Seu rosto, de fato, emagrecera, dando-lhe um aspecto que chamamos de emaciado. Nenhum sinal de desnutrição. Nenhuma outra queixa. Nada. Apenas um rosto sem as maçãs.

(Continua…)

PS. A foto acima não é da paciente em questão, mas é supreendentemente parecida e me lembrou esta história. Colocarei o link na continuação.

Coisa-Em-Si

O gráfico abaixo é só para lembrar você, macaco pelado que brinca de compreender, que a “coisa-em-si” não lhe é acessível, ok? Seus aparelhinhos de surdez e lentes de aumento foram bem longe, devo admitir, mas tudo que conseguiram foi alargar o buraco da fechadura. Abaixa a bola, cuida da tua casa e olha pro espelho. Nele não está a natureza, só um macaco pelado desesperado em busca de sentido.

(via Drunkeynesian, que por sua vez, via Abstruse Goose)

Slow Doctoring

 

É mais um manifesto. Depois do Slow Food, do Slow Blogging, Slow Thinking, entre tantos, chegou a vez do Slow Doctoring. O Slow doctoring é uma proposta de relacionar tempo e prática médica. Expus minhas vivências sobre tempo e de como acredito que ele seja intrínseco a cada pessoa. Se assim de fato é, uma consulta, visita ou qualquer interação onde se dê a relação entre um médico(a) e um(a) paciente é, também, uma relação entre vivências de tempo diferentes. Há uma percepção geral de que os médicos não têm muito “tempo” para seus pacientes. Um slowdoctor é um sincronizador dos tempos: aeônicos médicos e khrônicos dos pacientes.

1

Slow Doctoring é ouvir. P a c i e n t e m e n t e. É confiar, estimular e aprender a construir uma narrativa do paciente. Você, além de se divertir, certamente se surpreenderá com isso.

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Slow Doctoring é a rejeição da filosofia do “Quebrou-Conserta” vigente na medicina contemporânea. Nada contra os ortopedistas, por favor. O problema é esse tipo de filosofia que passou a ser regra e vem sendo aplicada onde não seria necessária. Exemplo, dor no peito = cateterismo = stent-em-tudo-quanto-for-obstrução. “Quebrou-conserta”.

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Slow doctoring é entender que alguns diagnósticos só vem com o tempo e que para isso, é preciso ter o tempo como amigo e que ele, não é muito fácil.

4

Slow doctoring é desobjetivar a medicina. Ela, menina dos olhos de Platão e Aristóteles, ficou moça com Descartes e Bacon e parece ter casado com Adam Smith. Para entender o humano não basta quantificá-lo, é preciso ser humano também, a maior das empatias.

5

Slow doctoring é entender que atrás de sua caneta existe um arsenal gigantesco e extremamente agressivo de exames, tratamentos clínicos ou cirúrgicos capazes, hoje, de virar seu paciente literalmente do avesso e encontrar, não só doenças potencialmente tratáveis, mas também pseudodoenças cujo “tratamento” é, em si, a maior de todas as doenças: iatrogenia. Um carimbo em cima disso não endossa o ato.

6

Como corolário do item 5, slow doctoring é domar a tecnologia médica e não deixar que ela dome você. Muito da “velocidade necessária” da prática é o médico a serviço da tecnologia e não do paciente. Evitar confundir medicina com tecnociência para não correr o risco de ser cientista em exercício ilegal da medicina.

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Slow doctoring é entender o lead-time bias e suspeitar dele. Sempre. Truque dos deuses siameses.

8

Questionários são para quem não quer conversar. Assim como algoritmos e diretrizes são para quem não quer (ou não pode) pensar.

9

Reconhecer que algumas vidas chegam ao fim e que a morte não é, de longe, a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa.

10

“Se eu quiser diagnosticar um paciente, tenho que conhecer toda sua fisiologia ou fisiopatologia de sua doença. Se eu quiser tratá-lo terei de conhecer a farmacologia e a farmacodinâmica de suas medicações, riscos e benefícios de seus procedimentos. Se eu quiser cuidar dele, o que inclui convencê-lo de utilizar as medicações e submeter-se aos procedimentos, tenho que compreendê-lo como uma totalidade. Se eu quiser curá-lo ou aliviá-lo de seu sofrimento, serei seu médico, e para isso, tenho que respeitá-lo antes de qualquer coisa”. Por isso, ser médico de alguém dá muito trabalho e isso consome tempo.

PS. Deve haver mais algum. Mas 10 é um número bonito.

FMUSP 100 Anos – Carta do Prof. Arrigo Raia

Faculdade de Medicina com o Hospital das Clínicas as fundo. Provavelmente década de 50.

O Ecce Medicus publica hoje, como parte das comemorações dos 100 anos da Faculdade de Medicina da USP, uma carta do professor Arrigo Raia divulgada originalmente no jornal da Fundação Faculdade de Medicina. A FMUSP não é a faculdade de medicina mais antiga do Brasil, mas talvez seja a que dispõe de uma mesa mais farta para que cada aluno possa se servir. Seu prédio na avenida Dr. Arnaldo e o museu de medicina valem uma visita. A FMUSP comemora 100 anos da formatura de sua primeira turma junto com o centenário de seu aluno decano.

Uma vida longa como a da FMUSP

Nasci em Araraquara, no interior de São Paulo, dia 23 de agosto de 1912. Em breve completarei meu centenário, junto com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), escola em que me formei e vivi grande parte da minha vida. Eu sou a única pessoa viva que acompanhou a faculdade por todos os lugares por onde ela passou. Primeiro na Rua Brigadeiro Tobias, em seguida na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e depois minha turma inaugurou os edifícios da FMUSP na Avenida Dr. Arnaldo, onde está até hoje. A medicina chegou à minha vida muito cedo. Meu avô materno era italiano e médico. Ele veio para o Brasil e desde pequeno eu o acompanhava nas visitas aos doentes, no trole ou no carro para passear, então com 8 anos eu já tinha vontade de ser médico cirurgião.

Entrei na FMUSP em 1931 e me formei em 1936. Nos primeiros três anos, o curso era ministrado na Avenida Dr. Arnaldo. No quarto ano passamos para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a princípio eu me decepcionei, porque naquela época a cirurgia era muito restrita e nos casos das cirurgias maiores o índice de mortalidade era muito grande. O panorama mudou muito quando, em 1945, o Prof. Dr. Benedito Montenegro assumiu a direção da primeira cadeira de clínica cirúrgica e o Prof. Dr. Alípio Corrêa Netto assumiu a segunda cadeira, em 1946.

No último ano da faculdade, o governo italiano ofereceu uma passagem para 12 alunos. Em 1937, fomos em caravana para a Itália e tivemos a oportunidade de conhecer diferentes clínicas. Como eu já havia terminado o curso, estendi a viagem e fui para a Alemanha. Voltei para o Brasil em 1938 e regressei para trabalhar com o Prof. Alípio. A partir daí, desenvolvi toda a minha carreira na FMUSP. Em 1939, me tornei o terceiro assistente da cadeira de Clínica Cirúrgica, dirigida pelo Prof. Dr. Alípio. Em 1941, fui nomeado para exercer o cargo de Professor de Enfermagem Cirúrgica da Escola de Enfermagem Obstétrica da FMUSP. Em 1943, me tornei Livre Docente de Clínica Cirúrgica. Em 1961, conquistei, através de concurso, o título de Professor Adjunto. Em 1970, assumi o cargo de Chefe de Disciplina do Aparelho Digestivo do Departamento de Clínica Cirúrgica. E em 1973, após concurso, conquistei o título de Professor Titular do Departamento de Cirurgia.

Logo após me tornar Professor Titular da cirurgia do aparelho digestivo, adotei uma conduta pioneira, acredito que no mundo, dividindo a especialidade em grupos dedicados, respectivamente, a cada um dos setores da disciplina, entregando a chefia a jovens cirurgiões que gradativamente se transformaram em líderes na especialidade. São eles: esôfago, Prof. Henrique Walter Pinotti; estômago, Prof. José Gama Rodrigues; colo, reto e ânus, Profs. Daher Cutait e Angelita Habr Gama; fígado e hipertensão portal, Prof. Silvano Raia; e vias biliares e pâncreas, Prof. Marcel Cerqueira Cesar.

Fui um professor democrata, dei liberdade aos assistentes para que desenvolvessem suas atividades na disciplina, de tal forma que sete deles se tornaram professores titulares: cinco da FMUSP e dois em outras universidades.

Com a colaboração, contribuímos para a evolução da cirurgia digestiva em nosso meio, de tal sorte que, ao fim do meu mandato de professor, eram praticadas todas as técnicas cirúrgicas para tratamento das doenças do apare- lho digestivo, da apendicectomia ao transplante de órgãos.

Após muitos estudos, em 1971, eu e os Profs. Silvano Raia e Marcel Cerqueira Cesar Machado realizamos o primeiro transplante de fígado. O paciente sobreviveu 20 dias. Em 1974, fui convidado a participar da comissão médica que ajudaria na instalação e estruturação do Hospital Universitário (HU), auxiliando na escolha e aquisição dos equipamentos.

Durante minha trajetória publiquei três livros: “Manual de Pré e Pós-operatório”, com a colaboração dos Drs. Joel Faintuch e Marcel Cerqueira Cesar Machado; “Manifestações Digestivas da Moléstia de Chagas” e “Tratado de Clínica Cirúrgica Alípio Corrêa Netto”, com a colaboração do Dr. Euriclydes de Jesus Zerbini. Fui agraciado com 33 prêmios concedidos por sociedades científicas e congressos médicos, destes dez foram outorgados pela Academia Nacional de Medicina e um pela Academia Americana pelo progresso da ciência de Nova York. Sou membro de 14 sociedades médicas nacionais e internacionais e, dentre elas, membro emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Recentemente, fui homenageado em uma comemoração do centenário da FMUSP como aluno mais antigo da faculdade. Fiquei muito feliz por ter sido lembrado e pelo reconhecimento de todo meu trabalho junto à Faculdade e ao Hospital.

Além da minha família, a cirurgia foi minha paixão durante toda a vida: operei até meus 86 anos. Já estou no segundo casamento, tenho uma filha, dois netos e quatro bisnetos. Hoje, com quase 100 anos, minha maior alegria e diversão é brincar com meus bisnetos, e também faço caminhadas e musculação. Sempre que posso, viajo para rever minha cidade, Araraquara.

Bendigo o momento em que decidi seguir a carreira médico-cirúrgica. Muito trabalhei, muitos exemplos transmiti, muito ensinei e muito recebi em troca. Na fase atual de minha vida, sinto-me realizado e com experiência suficiente para dizer aos mais jovens que vale a pena todo o sacrifício que a carreira médica exige. Além de tudo, nos oferece um ocaso tranquilo e feliz pela nítida noção do dever cumprido.

Prof. Dr. Arrigo Antonio Raia Médico Cirurgião e Professor Emérito da FMUSP

Qualis o Quê?!!

Não sou um cientista cientologista. Mas de vez em quando arrisco aqui uns pitacos.

Não sei se todo mundo sabe mas a importância de um jornal científico é dada por alguns índices sendo talvez, o mais importante, o Fator Impacto (em inglês, Impact Factor – IF). Existem muitas críticas a isso. Uma delas é que o FI pertence a uma empresa privada com ações da bolsa de valores e teria, por essa razão, conflitos de interesse com uma ciência, digamos, desinteressada. Não quero ser purista, mas o dinheiro de agências de fomento à pesquisa – a grande maioria, públicas no Brasil – é distribuído tendo como base publicações ranqueadas, em última instância, pelo FI. Vai daí…

Outra crítica frequentemente disparada contra a “ditadura do FI” é que se ele é razoável para jornais científicos, é muito ruim para bons artigos. (Veja aqui a apresentação da bib. Suely Soares a quem cito na sequência). A validade do FI está diretamente associada à aceitação de duas premissas: a) as publicações relevantes são freqüentemente citadas (quantitativa); b) o conjunto de publicações indexadas (pelo ISI, no caso) é suficiente para apreender os resultados das pesquisas a serem avaliadas (quantitativa). E isso não é sempre verdade. Há vários fatores interferentes que vão desde a densidade de citações (número de referências por artigo, maior nos estudos biomédicos) à velocidade de obsolescência da área em questão (menor nas áreas exatas, por exemplo). Isso faz com que a produção de determinado autor seja “desviada” (skewed) e impede que se faça uma análise mais fidedigna. Além de, e talvez por isso, o FI é calculado apenas a partir dos dois últimos anos. Outro erro bastante comum é usar o FI da revista para dizer que um artigo publicado nela é bom. O próprio Eugene Garfield, criador do FI, disse na referência que cito abaixo, que isso é um erro teórico crasso.

Pensando em todas essas confusões e mais algumas (ver leitura adicional no final do post) o prof. Maurício Rocha e Silva publicou um artigo interessante na Clinics, a revista do Hospital das Clínicas da USP. O artigo me chamou a atenção e comecei a escrever esse post no final de 2011. Como que numa transmissão telepática a Revista Pesquisa FAPESP publica em seu número de Janeiro de 2012 (que ainda não está no sítio, para os apressadinhos) uma sensacional entrevista com o professor Rocha e Silva. Eu confesso que tive muita dificuldade para entender o artigo original. A entrevista, entretanto, é muito simples e faz o artigo brilhar. Vamos a eles.

O principal alvo de Rocha e Silva é o sistema Qualis. (Para um dos “defeitos” do Qualis veja aqui). O raciocínio é o seguinte. “Todas as revistas têm uma distribuição de citações assimétrica. Quer dizer, 20% dos artigos concentram 50% das citações e os 20% mais baixos concentram 3% das citações. De maneira que no New England Journal Medicine, a revista médica de mais alto impacto do mundo, por exemplo, tem 20% de artigos que são muito pouco citados. Isso vale para qualquer revista.” O argumento da Capes por intermédio do sistema Qualis é simples e direto: se você publica numa revista com fator impacto alto, você é bom. Ponto. Isso é um erro de lógica de acordo com os cálculos acima.

Para ele, o Qualis penaliza alguns autores por publicarem em revistas brasileiras. De acordo com o raciocínio acima “se eu publico numa revista A1, ganho a nota de A1. Mas, 70% dos artigos que saem na revista A1 não têm aquele bom nível de citação, que vem de 30% dos artigos. Por isso, 70% dos artigos ali publicados recebem um upgrade.” Talvez isso não seja um problema maior pois estamos no topo, tratando de revista com altíssimo FI. Que mal tem em elevarmos o nível de maioria dos artigos de uma grande revista? Contudo, no Brasil, de acordo com a classificação da Capes, não temos revistas A1. Numa categoria intermediária esse problema aumenta muito porque as revistas têm um limite inferior e um superior – uma faixa. Vamos de novo. Publico um artigo numa revista, digamos, B3 da Qualis o que me garante aparecer na prestigiosa Pubmed, e ganho a nota da revista como pesquisador. Se meu artigo for “meia-colher” talvez eu seja “puxado” pelos outros bons artigos da revista (upgrade). Mas se meu artigo for muito bom, eu tenho a chance de 20-30% de estar sendo rebaixado pelos restantes. Note que a Capes deu a nota para a revista – até aí, tudo bem – mas está usando essa nota para qualificar o artigo do pesquisador e, por fim, o próprio pesquisador! Nas palavras do prof. Maurício Rocha e Silva “…na hora em que a Capes atribui uma classificação baixa a uma revista, eles estão dizendo para os pós-graduandos e seus orientadores, ‘Não publiquem nessa revista se você puder publicar em uma com o FI mais alto”.

“Se o Qualis não tivesse esse problema interno, daqui a 10 anos teríamos uma coleção de grandes revistas internacionais brasileiras porque haveria um estímulo à publicação.” Qual o problema de não termos revistas nacionais? Preconceito científico contra publicações latinoamericanas cientificamente demonstrado. É um círculo vicioso cuja solução passa necessariamente pela melhoria do nível das revistas nacionais que, por sua vez, precisam de uma política diferente de incentivo à publicação. A adoção de outros critérios que não o simples FI para qualificar os pesquisadores é, portanto, prioritária.

Leitura adicional

1. Fator de impacto: Importância e influência no meio editorial, acadêmico e científico (pdf) Ruiz et al.

2. The Agony and the Ecstasy— The History and Meaning of the Journal Impact Factor. (pelo criador da criatura, Eugene Garfield)

3. A vez das Revistas Científicas? – Ecce Medicus

ResearchBlogging.orgMauricio Rocha e Silva (2011). Continuously Variable Rating: a new, simple and
logical procedure to evaluate original scientific publications CLINICS, 66 (12), 2099-2104: 0.1590/S1807-59322011001200016

ResearchBlogging.org Meneghini, R., Packer, A., & Nassi-Calò, L. (2008). Articles by Latin American Authors in Prestigious Journals Have Fewer Citations PLoS ONE, 3 (11) DOI: 10.1371/journal.pone.0003804

Clique na figura para ver a origem. Autorizado segundo as regras do autor. Agradecimentos à Maria Guimarães pelo exemplar da revista FAPESP em primeira mão.

Atualização

A interessante entrevista do prof. Maurício Rocha e Silva na Pesquisa Fapesp.

Deus Não Existe

2946162595_b6e8b16e60_o“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele” (João 1:1-3)

 

Deus não existe. Nem poderia jamais ter existido. Pelo menos do ponto de vista linguístico. Existir vem do verbo latino ex-istere e significa “sair de”, “manifestar-se” tomando um sentido de “vir a ser”. Existir, portanto, não pode ser uma característica do Deus monoteísta. Ele jamais poderia ter vindo a ser em determinado momento porque, nesse caso, não seria eterno.

Se eu digo então, que Deus é… vou compará-lo com algo que conheço e esta é uma metáfora que estará fadada à imortalidade, o que não é bom para quem quer saber das coisas. Segundo Umberto Eco (Kant e o Ornitorrinco, pág 17-54) ninguém jamais estudou semânticamente de forma satisfatória o verbo ser. Parece ter sido Pascal o primeiro a notar a dificuldade: “Não podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo: porque não podemos definir uma palavra sem começarmos pelo termo é, expresso ou subentendido. Então, para definir o ser, é preciso dizer é, e assim usar o termo definido na definição”. Problema semelhante ocorre com as afirmações sobre a essência divina. Quanto mais poder é dado a Ele, menos apreensível fica. Veja a encrenca.

Talvez haja apenas uma só chance de Deus existir de fato. Isso ocorre quando Ele se manifesta, vem a ser, dentro do próprio indivíduo que Nele crê. Acho que Santo Agostinho tratou disso no Livro X das Confissões e Espinoza foi excomungado de duas religiões por pensar algo parecido com isso. Engraçado que este Deus parece não bastar para muita gente. Talvez, sua popularidade não seja muito alta porque, tal indivíduo, um portador de Deus, não pode exportá-lo. Seria preciso que Ele despertasse no outro e isso, além de não depender de uma decisão racional, cria um Deus ao qual um outro não teria acesso. De qualquer forma, não é um Deus muito “útil” porque cada um tem o Seu com todos os corolários decorrentes dessa limitação.

O caso contrário, o do Deus eterno que é, simplesmente, se torna, de fato, uma grande sacada. De cara, já causa um nó em quem tenta “pensá-Lo” ao cair no dilema de Pascal (de fato, existem outros dilemas muito mais cabeludos que esse. Veja por exemplo, o verbete “Ser” no Abbagnano). Sendo inapreensível ou “impensável” formalmente (ou pelo menos difícil de pensar, nem o Kant!), faz-se divino pela intangibilidade.

Gênio. O sujeito que escreveu “no princípio, era o Verbo” sabia exatamente o que queria não dizer.