Zacarias Conceitual: O Humor na Saúde e na Doença
Em 1:59 minuto, uma crítica contundente à atuação da medicina privada e seus preços quando se põe em busca da saúde. Dizia que a medicina privada tem planos de saúde mas não tem um plano para saúde (com raríssimas e honrosas exceções). Quando busca “causar” saúde, por possuir um arcabouço teórico inadequado, em geral, tudo o que consegue, é a falsa sensação de esvaziamento de um “estado de doença”. Zacarias genial, interpreta um cirurgião de jaleco (o verdadeiro).
DEK – J e a Polêmica do Vestuário Médico
Recentemente, vem ganhando corpo uma campanha interna do ScienceBlogs Brasil contra o uso indevido do vestuário médico em locais inapropriados como lanchonetes, restaurantes e até metrôs e ônibus. A campanha é mais que justa. Jalecos, aventais, guarda-pós, estetoscópios e outros apetrechos utilizados pelos médicos não são de fato, para ficar perambulando por aí, tendo em vista o enorme problema das infecções cruzadas e o surgimento de germes multirresistentes.
Entretanto, há um tom iconoclasta na campanha que me incomoda. Eu fiquei pensando muito no porquê ficar incomodado com um assunto pelo qual luto diuturnamente e que tem um embasamento científico bastante razoável como pode ser visto aqui (em inglês). Digo razoável, porque o papel desses veículos (dizemos fômites) na transmissão de doenças ainda está para ser estabelecido. Estar contaminado, por mais nojento, incorreto e reprovável, que possa ser, não quer dizer estar ou deixar doente, apesar de tornar mais provável.
Este é o Dicionário Etimológico do Karl e esta é a letra J, e vou usar este espaço para psicoanalisar um pouco do meu comportamento médico. Afinal, esse é um dos fins deste blog.
J (jota) de jaleco s.m., segundo o Houaiss, (1605) ‘jaleco, jaqueta turca cujas mangas chegavam só aos cotovelos’ (tur. yelék, pelo ár. argelino djalíka ‘casaco de cativo’; segundo Corominas, s.v. chaleco, Haedo descreve o jaleco da seguinte forma: ‘um gibão de pano, de mangas curtas, até o cotovelo, que os turcos argelinos usavam, debaixo do cafetã’; trata-se de um dos vários nomes de trajes transmitidos ao esp. e ao it. pela língua franca dos portos africanos; f.hist. 1725 jalecu, 1725 galleco, 1727 jaleco. Chamavam os portugueses “galegos” de jalecos também. Há um tamanduá de nome jaleco. Para nós, jaleco é uma capa curta de mangas também curtas que pode ser usada sobre a camisa, como na foto acima. É utilizada por dentistas, farmacêuticos, churrasqueiros e balconistas em geral, entre outros tantos. Eu já usei jaleco. Parei porque achava o jaleco meio churrasqueiro demais. Gosto mais de usar o (ainda segundo o Houaiss):
Avental: peça de pano, plástico ou couro, presa pelo pescoço e pela cintura, usada para proteger a roupa em certos tipos de trabalho. Etimologia: avante + -al, com alteração do -a- pré-tônico para -e-; f.hist. sXIV auantal, sXIV uantal. (Atualização: eu acho que o nome mais correto para esse tipo de vestimenta é guarda-pó ou simplesmente, capa, como no inglês)
Avental e gravata constituem um “uniforme médico” de respeito não só porque a imagem do médico veiculada em muitos filmes é essa, mas também porque nas faculdades de medicina, em geral, formam a vestimenta padrão dos professores. A gravata já foi alvo de várias críticas [1] e muitos já a abandonaram. Mas isso não nos exime da pergunta: Mas então, o que é que um médico deve trajar?
Tive uma experiência interessante com a série “Sala de Espera I e II” e recomendo a leitura dos comentários porque são bastante esclarecedores quanto às expectativas dos pacientes quanto a aparência dos médicos(as). Cito abaixo as respostas de 3 sciencebloggers à pergunta, como seria a aparência de um médico importante para você?
“Para mim, estereótipo de médico mesmo. Meia-idade, cabelo meio grisalho, sem brincos ou tatuagens. Este primeiro resultado do Google Images é bem o que imagino mesmo” Kentaro Mori do 100nexos.
“Irei contra todos os comentários acima e direi que meu ideal de médico é um sujeito novo, recém-saído da universidade, doido para colocar em prática anos de estudo e assumir, enfim, a responsabilidade por isso, sem alguém olhando por cima do seu ombro. Um médico jovem, empolgado, atualizado, que lê muito e sabe a importância de uma batidinha no abdome e uma puxada de pálpebra. Quanto mais estetoscópio no pescoço e esfigmomanômetro no bolso melhor. Na minha cabeça, quanto mais velho o médico, mais antiquados os seus métodos, chegando numa zona dos formados entre dez e vinte anos atrás para os quais “pedir exame” é sinônimo de “examinar”.” Igor Santos do 42. (grifo + sublinhado, meus)
“Fico com o cientista, principalmente pelo jaleco branco.” Atila do Rainha Vermelha.
Isso já foi até tema de um estudo [2] cuja conclusão foi que, “em contraste com os médicos que veem os aventais brancos como risco de infecção, muitos pacientes, e especialmente aqueles com mais de 70 anos, acham que os médicos devem vestir aventais brancos para sua identificação ficar mais fácil.” Com isso, quero chamar a atenção para o fato de que a vestimenta do médico é algo que está além do simples fato da proteção, higiene e etc. Há sim, uma identificação visual, uma comparação cognitiva com uma imagem pré-concebida proveniente das experiências particulares que cada pessoa teve em contato com a doença e com a possibilidade de ser assistida por alguém no qual depositaram sua confiança. Repito aqui o que já escrevi e que acho que se adequa perfeitamente ao tema:
“Acho mesmo que essa imagem pré-concebida do médico varia muito, não
só com a especialidade, mas também com o local onde o médico trabalha,
que tipo de público atende e assim por diante. Tudo isso para dizer que o médico é INDISSOCIÁVEL da população que
atende. Isso pode soar óbvio a essa altura da discussão mas, acredite,
muitos médicos não pensam assim. Além disso, a instituição que abriga o
médico, seja um hospital público ou particular, seja seu próprio
consultório (e no caso a instituição é ele mesmo) faz diferença, não só
na aparência que o médico busca, como também na sua forma de atuar. Isso
é bastante polêmico, eu sei, mas alguns anos de experiência me
mostraram o problema de forma bastante clara. Não reconhecer essa
diferença, que os advogados já reconheceram há alguns milênios, é abrir
mão da oportunidade de minimizar seus efeitos.
A ciência médica é uma só, a medicina não. Isso decorre do fato de
ela ser uma forma, talvez a mais perversa, de aplicação científica
prática! A prática, como já abordei em diversos posts, tem a tensão
irredutível da decisão que envolve o conhecimento tecno-científico e a
experiência prévia. Essa tensão deixa o médico inseguro. Sempre. A
aparência do médico é um modo de “vender o peixe”. Quanto mais adequada a
aparência for à imagem que o paciente faz do médico, mais fácil
conseguir sua confiança, aderência ao tratamento e, consequentemente,
bons resultados. Isso tem a ver com o mercado? Sim. Mas tem muito mais a
ver com o fato de que o médico precisa penetrar em algo bem mais
profundo que o mero organismo de seu paciente.”
Isso não exclui o médico do conceito de adequação. Ser atendido por uma médica atraente com minissaia e decote matador inspira muitos sentimentos, menos os de acolhimento, segurança e confiança profissional. Sentar em uma lanchonete com médicos comendo de avental e esteto no pescoço é desagradável também. A adequação do traje ao local é uma forma de educação e esta, por sua vez, visa o bem-estar de todos.
[1] McGovern, B., Doyle, E., Fenelon, L., & FitzGerald, S. (2010). The necktie as a potential vector of infection: are doctors happy to do without? Journal of Hospital Infection, 75 (2), 138-139 DOI: 10.1016/j.jhin.2009.12.008
[2] Douse, J. (2004). Should doctors wear white coats? Postgraduate Medical Journal, 80 (943), 284-286 DOI: 10.1136/pgmj.2003.017483
Technopathology
Jorge Drexler
Na prática médica em geral, e numa unidade de terapia intensiva em especial, utilizamos vários dispositivos que substituem os sentidos humanos na tarefa de captar dados dos pacientes. Uma vez captados, esses dados serão processados e uma ação deve ocorrer: prescrição de alguma medicação, intubação orotraqueal, solicitação de algum exame, são exemplos de ações possíveis em determinadas situações. A substituição dos sentidos humanos por dispositivos que geram dados sobre os pacientes é tão intrinsecamente relacionada à atividade médica moderna que muitas vezes não nos damos conta de que estamos sobre-utilizando um recurso que, diferentemente de um toque ou um olhar, pode trazer alguma consequência indesejável ao paciente submetido a ele.
Pensando nisso, um instituto independente sem fins lucrativos chamado ECRI Institute, cuja preocupação principal é segurança, qualidade e custo-efetividade do atendimento médico, mantem uma publicação chamada Health Devices. Todo final de ano, é publicada uma lista com as 10 maiores fontes de dano aos pacientes provenientes do (mal)uso da tecnologia médica. Chamei, por minha conta e risco, esse ramo da nosologia humana de Tecnopatologia (em inglês no título para chamar a atenção dos gringos, hehe). Aqui vai a lista de possíveis danos a pacientes (e profissionais da saúde) causada pela tecnologia médica para 2011 (publicada em novembro/2010):
1. Radioterapia em excesso ou mal aplicada
2. Mal-uso dos alarmes
3. Contaminação cruzada relacionada à endoscopia
4. Excesso de radiação na tomografia
5. Perda de dados, incompatibilidades de sistema e outros problemas com a tecnologia de informação em saúde
6. Conexões erradas de tubos e cateteres
7. Excesso de sedação com dispositivos acionados pelo pacientes (PCA)
8. Punções acidentais, contaminadas ou não, de agentes da saúde ou pacientes
9. Fogo acidental no centro cirúrgico
10. Não ou Mal funcionamento de desfibriladores durante paradas cardíacas
Dentre os itens da lista, algumas surpresas. Os problemas relacionados à radiação são sensíveis e vem cada vez mais chamando a atenção de administradores hospitalares e profissionais da área. Vários outros relacionados a infecções são também figurinhas carimbadas de listas como essa. Gostaria de destacar 2 itens.
O primeiro é a importância da tecnologias de informação no atendimento aos pacientes. Em quase todos os hospitais que trabalho há um “sistema” que tenta englobar prescrições, solicitações à farmácia, anotações de enfermagem e médicas, enfim, tudo que gira em torno de uma internação. (Em geral, os “sistemas” são muito bons para cobranças e ruins para os usuários – enfermagem, médicos e fisioterapeutas). Imaginem se o “sistema” cair ou dados importantes forem perdidos antes de um backup. É isso que o artigo destaca.
Outro item da lista que me chamou a atenção foi a questão dos alarmes. Quem já entrou em uma UTI sabe que é um local de grande poluição sonora. Muitos alarmes soam desesperadamente sem que alguém vá ver o que está acontecendo. A esmagadora maioria é interferência ou má regulagem, sem que acarrete problemas quaisquer para o paciente. Entretanto, como na história do menino e o lobo, de tanto tocar inutilmente, podemos perder um evento relevante e colocar a vida do paciente em risco. Em 2002, a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations, orgão americano que tem acreditado várias instituições brasileiras, reviu 23 relatos de morte ou lesão grave relacionadas à ventilação mecânica: 19 eventos resultaram em morte, 4 em coma. Destes, 65% foram relacionados aos alarmes (2). Muito se tem estudado sobre a ciência dos alarmes e o modo como eles podem nos ajudar, nos atrapalhando o menos possível.
É isso. Tecnologia também causa doença e morte. Pode ser muito difícil explicar isso para a sociedade contemporânea. Ela é viciada em tecnologia e novidades. Os médicos vão no embalo pois apesar de cuidar da sociedade, também fazem parte dela.
Fonte:
1. HEALTH DEVICES NOVEMBER 2010. TOP 10 TECHNOLOGY HAZARDS FOR 2011 (clique para baixar o pdf).
2. Clinical Alarms and the Impact on Patient Safety. Maria Cvach MS, RN, CCRN, Deborah Dang, PhD, RN, NEA BC, Jan Foster,PhD, APRN, CNS, and Janice Irechukwu, BSN, RN, MSN. (clique para baixar o pdf).
Infecções e Seres Humanos
Estamos mesmo vivendo um tempo de dificuldades no que diz respeito à luta contra as bactérias multirresistentes. Recentemente, tive acesso a alguns dados de uma unidade de terapia intensiva que compartilho com vocês agora na figura abaixo.
As barras vermelhas dão o número de infecções de corrente sanguínea (ICS) em cada mês de 2009. Chamamos de ICS o aparecimento de bactérias (ou fungos) no sangue obedecendo de determinados critérios. A linha horizontal azul é uma média das infecções em UTIs da cidade de São Paulo. Como podemos ver, a referida unidade, excetuando-se o mês de abril, tinha níveis acima da média de ICS no primeiro semestre. Mas, nos meses de junho, julho, agosto, setembro e outubro a taxa de ICS foi ZERO!
Esses dados só foram avaliados no final do ano e os médicos ficaram procurando a razão dessa diminuição drástica e do retorno das taxas “habituais” a partir de novembro. E descobriram:
Sim. Esse período coincide justamente com a epidemia de Influenza H1N1 no inverno de 2009, durante o qual as precauções de contato foram maximizadas, em especial, pelo medo de contaminação pelos próprios profissionais de saúde. O relaxamento das medidas de proteção, a desatenção na lavagem das mãos, o cuidado com a manipulação de sondas e cateteres, particularmente, o manejo adequado de secreções, são o que nos resta para combater infecções por bactérias multirresistentes. Antibióticos já não são suficientes.
É surpreendente que uma equipe treinada, frente a um novo e ameaçador inimigo, no caso a gripe H1N1, tenha respondido com tal eficácia a ponto de influenciar a densidade de outras infecções endêmicas na UTI e zerá-la. Resta-me então concluir que os staffs das unidades de terapia intensiva não estão convencidos de que a infecção hospitalar é uma ameaça séria e por isso, não dão o seu máximo. A tabela abaixo mostra que isso não se justifica.
Table 1. Deaths and death rates in the United States, 1997 (1) | |||
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No. of deaths | Crude death rate | ||
Cause of death | (thousands) | (per 100,000) | % of all deaths |
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Heart disease | 725.8 | 271.2 | 31.4 |
Malignancies | 537.4 | 200.8 | 23.2 |
Cerebrovascular disease | 159.9 | 59.7 | 6.9 |
Pneumonia and influenza | 88.4 | 33.0 | 3.8 |
Septicemia | 22.6 | 8.4 | 0.97 |
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Numa modelagem, se 25%-50% de todas as ICS ocorressem nas UTIs, um aumento de 25% na lavagem de mãos poderia prevenir 25% das ICS e salvar de 469 a 1.874 vidas (dependendo do que se considera mortalidade atribuída ao problema). Ver tabela abaixo.
Será que é só assim que conseguiremos eliminar infecções potencialmente evitáveis? Será que a conduta e a atitude de profissionais da saúde se equipara assim, de modo tão vulgar, ao pensamento pseudo-antropológico de que o “ser humano” só reage quando pisam no SEU calo?
As tabelas foram retiradas do site do CDC [link]
Santa Teresa, Orgasmos e o 11° Mandamento
Parece que as opiniões veiculadas nesse blog andam valendo alguma coisa. Ganhei outro livro para “resenhar”, que é o verbo que uso para substituir a expressão “ler e viajar na maionese” que, por fim, é uma atividade que gosto muito de fazer. Então, sem querer torrar a paciência do leitor que, se chegou aqui pelo título absurdo do post, vai se decepcionar de qualquer jeito, vamos lá.
Ganhei, já o disse, de uma amiga, com a promessa de que escreveria uma “resenha”, o livro “O 11° Mandamento” de Abraham Verghese. Não li o livro todo ainda, mas o prólogo e o primeiro capítulo já me agradaram. É um romance. E se você é daqueles que acha que ler romances é o mesmo que ler histórias da carochinha, ou seja, uma perda de tempo irreparável, melhor nem começar. O livro é um toledão de 626 páginas.
Começa contando a história de uma freira que era vidrada em Santa Teresa de Ávila (1515-1582). Essa santa escreveu uma autobiografia com o nome sugestivo de “A vida de Teresa de Jesus”. Nela, Santa Teresa descreve uma experiência mística com um anjo como segue (em livre tradução daqui):
“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser um pequeno fogo. Ele parecia penetrá-la várias vezes no meu coração e perfurar minhas entranhas; quando ele a tirou, parecia atraí-los para fora também, e deixando-me em fogo, com um grande amor em Deus. A dor era tão grande, que me fez gemer, e ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não pude querer livrar-me dela. A alma está satisfeita agora com nada menos que o próprio Deus. A dor não é física mas espiritual; embora o corpo dela partilhe. É uma carícia de amor tão doce que agora tem lugar entre minha alma e Deus, que rezo a Deus pela dádiva dessa experiência, que podem pensar que estou mentindo.”
Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), um escultor napolitano, que de bobo não tinha nada, fez a escultura abaixo, baseada no relato da santa:
A história de uma freira-enfermeira que, após uma viagem fatídica de navio, conhece um cirurgião inglês (e cuida dele!), mudando totalmente seu destino é
narrada por um de seus filhos! Gêmeos! Além de ficar fascinada por uma santa de hábitos orgásticos e ter filhos, ela marca a história do lugar para onde vai. Só isso, já seria suficiente para despertar algum interesse. Para os que gostam de histórias de médicos da velha guarda, o livro é um prato cheio. Bem narrado e fiel com as descrições técnicas de época, a leitura é bem fácil e prazerosa. Abraham Verghese tem alguns livros de sucesso. Esse, segundo consta, vendeu mais de 1 milhão de exemplares nos EUA. Médicos são bons contadores de histórias. Talvez porque tenham muitas mesmo para contar. Esse livro é sobre a história de médicos. O que também não deixa de ser interessante.
[1] Rogelio Luque & José M. Villagrán (2009). Teresian Visions Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (3), 273-276 DOI: 10.1353/ppp.0.0191