Nós, tecnocratas?

O termo “tecnocracia” foi criado nos EUA em 1919 mas só ficou conhecido após um movimento que ganhou considerável notoriedade. Começou com um grupo de técnicos e engenheiros dedicados à reforma social. Influenciados por conceitos provenientes da república tecnológica de Edward Bellamy na novela Looking Backward, pelas teorias econômicas de Thorstein Veblen e pelos princípios científicos de gerenciamento de Frederick W. Taylor, que sugeriam que políticos e empresários abdicassem em detrimento a elites de especialistas, o objetivo era abolir políticos corruptos, melhorar um sistema econômico obsoleto e expandir a racionalidade técnica e administrativa.
Posteriormente, Habermas classificou as sociedades ocidentais contemporâneas quanto sua relação com a ciência em decisionais, aquelas em que os políticos mandam e os outros obedecem; pragmáticas, aquelas em que os políticos se aconselham com especialistas e tomam as decisões; e tecnocráticas, aquelas em que os especialistas tomam as decisões.
Para onde pende o fiel da sociedade médica? Obedecemos a uma ordem tecnocrática? Quem são os técnicos/especialistas? Quem detém o expertise das tomadas de decisões? Por fim, obedecemos ou somos obedecidos?
Respostas para um médico extemporâneo….

A Complexidade do Conceito de Doença


Por que o conceito de doença é importante para um clínico? Normalmente, os médicos não estão preocupados se o conceito de doença que utilizam é ontológico ou fisiológico, normativo ou descritivo. O que é importante e o que tem sido amplamente discutido é o bombardeio de questões provenientes de pacientes, da mídia, de setores da medicina alternativa e até de outros médicos sobre as bases do raciocínio clínico – cujo ponto de partida é o conceito de saúde e de doença. A crítica principal normalmente gira em torno da medicalização da Medicina e a sua contrapartida teórica: a patologização do curável, nos quais o conceito contemporâneo de doença é altamente implicado.
Sobre isso, segue um excerto do trabalho de Bjorn Hofmann (para o texto completo clique aqui):
“I have argued here that the debate on the concept of disease is complex, and that this complexity can be recognised in the theoretical frameworks of the debate. The profound philosophical issues underlying the debate illustrate the complexity of the concept. That is, the complexity of the concept is displayed by the complexity of the categories of the debate. There is something outstanding to the concept of disease generating logical, ontological, epistemological and normative challenges. The concept appears to be irreducible to a particular perspective or a monistic conception. Even if we could answer the question of the ontological status of instances of disease, its classificatory and normative issues would not be resolved. Correspondingly, if we cleared the evaluative status of disease, the ontological, semantical and epistemological issues would still be open. These issues seem not to be inter-reducible. However, is this only a theoretical complexity? People are actually treated in the health care system without there being any reflections of this kind. Are the challenges only of an abstract kind? The complexity in the theoretical frameworks appears to be more than a mere academic issue, and it is reflected in medical practice. Whether pregnancy, excellence, infertility, whiplash, or a general feeling of incompetence are cases of disease are practical issues, and even the status of homosexuality as a disease has been a topic in clinical practice until recently. Furthermore, the classification of disease entities is a great challenge to modern medicine. A strict and consistent concept of disease, be it theoretical or practical, should result in a strict and consistent taxonomy, which obviously is not the case. Disease entities are classified according to symptoms, syndromes, physical signs, paraclinical signs, abnormalities of morphology, physiological aberrations, genetic abnormalities, ultrastructural abnormalities, etiological agents and according to eponymal origin. Hence, the theoretical complexity discussed in this study corresponds to a practical complexity, and as far as the conceptual debate on disease is concerned, the concept should give practical guidance and pave the way to a tidier practice. In this respect it has certainly failed. The reason for this is reflected in the complexity of the theoretical frameworks. My aim has not been to argue that the profound issues revealed in this study are final and absolute for the debate on the concept of disease. A conceptual debate of human disease may follow other lines of thought. The presentation has been one attempt to structure the categories of the debate. However, I would argue that any investigation of these categories has to take into account the theoretical complexity. The profound philosophical distinctions of the debate show that the concept of disease involves fundamentally different issues. Disease is basically an issue that is so complex that it appears extremely difficult to encompass it by a single monistic theory.”

O que é a Doença?

Por que o conceito de doença é tão importante? Por que os acadêmicos se esforçam tanto para conseguir uma definição consistente e coerente de doença? Vejamos Georges Canguilhem:

“A doença é um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual, concreto, em relação de atividade polarizada com seu meio. Neste sentido, não é apenas para o homem, mas para qualquer ser vivo, que só existe doença do todo orgânico (…) Na medida em que a análise anatômica e fisiológica dissocia o organismo em órgãos e em funções elementares, ela tende a situar a doença ao nível das condições anatômicas e fisiológicas parciais da estrutura total ou do comportamento de conjunto. Conforme progride a minúcia da análise, a doença será colocada ao nível do órgão (Morgagni), tecido (Bichat) ou célula (Virchow). Mas, assim procedendo, esquecemos que, historicamente, logicamente e histologicamente chegamos até a célula por ordem regressiva, a partir do organismo total e com o pensamento, ou talvez mesmo o olhar voltado para ele. Procurou-se no tecido ou na célula a solução de um problema levantado pelo organismo inteiro e que se apresenta primeiro para o doente, e, em seguida, para o clínico. Procurar a doença ao nível da célula é confundir o plano da vida concreta – em que a polaridade biológica estabelece a diferença entre a saúde e a doença – e o plano da ciência abstrata – em que o problema recebe uma solução.”

Onde procurar a doença então? O que é e onde está a doença?

Mais do Conundrum de Williams


“In the 1960s and 1970s it was assumed that physicians who also developed expertise in one of the fundamental sciences by obtaining a PhD degree would use their knowledge of the fundamental science to address problems in the clinical arena. In retrospect, this assumption was naive. The physician-scientists were being trained to be reductionists. The fundamental research approaches they were learning did not lend themselves to an understanding of human physiology or pathophysiology. As a consequence, physiology as a discipline atrophied. In many medical schools, it became extinct, as pointed out by Feinstein (8) in this issue of The American Journal of Medicine. Physiology does not readily lend itself to a reductionist approach. Indeed, by its very nature, it uses the tools of integration to understand complex processes. Thus, it would seem unlikely that scientists trained in a reductionist environment would develop research careers in the fields of human research. Rather, they would spend their time in the fields of the fundamental scientific laboratories in which they were trained, far removed from the bedside.”

Para os textos integrais de Williams e Feinstein clique aqui

A Ciência Médica

Conundrum
Segundo Gordon Williams, a Ciência Médica produz informação a partir de 3 domínios: 1) laboratório; 2) pacientes; e 3) populações. É interessante notar as diferentes abordagens nos três domínios. No laboratório, nos primórdios da Ciência Médica com Claude Bernard, eram utilizadas preparações de animais inteiros como modelos interpretativos. Atualmente, o laboratório é o local onde se produzem os conhecimentos de Biologia Molecular e Celular.
Dos estudos centrados nos pacientes, podem surgir informações de 3 tipos: Ensaios Clínicos, Farmacologia Clínica e Fisiologia Humana (incluindo Fisiopatologia e Genética). Dos estudos populacionais temos as pesquisas de desfecho clínico e toda a Epidemiologia Clínica.
Nas últimas décadas, vem havendo uma mudança importante no perfil das pesquisas realizadas associado a/ou decorrente de uma mudança na filosofia das agências fomentadoras: as ciências integrativas vêm minguando progressivamente em detrimento às populacionais e de biologia molecular. Quais as causas e implicações desse fenômeno?

O Médico Bom


Quando ainda aluno, uma vez ouvi de um professor de Oncologia que “a Medicina nada mais era do que uma discretíssima subseção da Biologia que se ocupava das mazelas de uma única espécie”.
Entendo que a Medicina não é um ramo da Biologia. A Medicina não é uma ciência, é maior: se utiliza da Ciência. A diferença não é semântica. Está na raiz do que entendemos por Medicina. A Medicina é uma profissão. Como característica, trata-se de uma profissão fortemente embasada em conhecimentos científicos. Quem imagina que a Medicina é um ramo da Biologia confunde Medicina com Ciência Médica.
A Ciência Médica – a ciência da qual a Medicina se utiliza – também extrapola os limites da Biologia, pois envolve outras ciências (Física, Química, Estatística, além de Humanidades de uma forma geral).
O médico que abandona a Ciência Médica faz Medicina de baixa qualidade. O médico que pensa na Medicina apenas como ciência, é um cientista em exercício ilegal da Medicina.

Ainda Gadamer

microarray, biochip ou chip de DNA


Gadamer divide o conhecimento utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. 
Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral.

Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.
Em determinadas situações e atividades, devemos tomar decisões utilizando o conhecimento científico. É tarefa do poder de julgamento (que aliás, não se ensina, nem se aprende!) reconhecer em uma situação específica a aplicabilidade de uma regra geral. A tarefa existe qualquer que seja o conhecimento a ser aplicado; é um problema irredutível, o que gera tensão (como demonstrado no post anterior). Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, o fazer.

Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras dele: “The more strongly the sphere of application becomes rationalized, the more does proper exercise of judgement along with practical experience in the proper sense of the term fail to take place.”

A racionalização desenfreada tem efeitos graves. A perda do poder de julgamento é uma doença endêmica da medicina contemporânea. O poder de julgamento se constitui na única ferramenta capaz de dotar o médico de crítica de sua própria razão.

Teoria, Tecnologia, Praxis


Em 1993, Hans-Georg Gadamer fez sua incursão ao mundo da medicina. The Enigma of Health (tradução para o inglês de 1996) é uma coletânea de ensaios e palestras que o filósofo reuniu ao pensar sobre a atividade médica.

O primeiro capítulo tem o título deste post. Logo nas primeiras páginas se percebe a agudeza do raciocínio. Ao abordar a questão da teoria e da prática, ele propõe a seguinte fórmula ao leitor: A Ciência é incompleta. A incompletude da ciência experimental decorre de sua pretensa universalidade pois sempre necessita de novas experiências para comprovar (ou refutar) teorias ou modelos explicativos. Mas o que é a prática? Seria a prática uma simples aplicação da ciência? Prática significa não apenas fazer o que deve ser feito; também é uma escolha entre possibilidades. A prática tem, portanto, uma relação com um sujeito atuante. A prática que se baseia no conhecimento científico é obrigada a tratar o conhecimento a um só tempo, como completo e certo, pois necessita tomar decisões.

Mas o conhecimento gerado pela ciência não é deste tipo!

É na tensão surgida do esforço da prática em interrogar a ciência em busca de respostas cotidianas que o médico procura seu eu atuante.

Medicina e Pós-modernidade


“Within medicine one response to the relativism and uncertainty created by postmodernism has been to emphasise the evidence on which medicine is based. After all, if there are knowable medical truths “out there” then we should get our act together and apply them. Evidence based medicine promises certainty–do enough MEDLINE searches and you will find the answer to your prayers. Read in this way, evidence based medicine is a reaction to the multiple, fragmented versions of the “truth” which the postmodern world offers. It is also a serious attempt to invent a new language that might reunite the Babel of doctors and patients, managers and consumers. However, an evidence based approach will only work for as long as we all view medicine as “modern”–that is, as making statements about an objective, verifiable external reality. To the postmodernist the question is whose “evidence” is this anyway and whose interests does it promote?”
Paul Hodgkin contesta o “tratamento” de Bruce Charlton. E vai além, chama a atenção para a intromissão da tecnocultura no pensamento médico contemporâneo. Abrindo o caminho para Hofmann.

Solo Epistemológico


Esse artigo saiu no último número do JAMA (é free!). Tem como novidade a forma como foram apresentadas suas conclusões. O objetivo era mostrar se uma droga (gemcitabina) aumentaria a sobrevida de pacientes com câncer de pâncreas operado.

Apesar do resultado negativo – o que não se constitui no problema em si – a conclusão do artigo foi a seguinte:

“The addition of gemcitabine to adjuvant fluorouracil-based chemoradiation was associated with a survival benefit for patients with resected pancreatic cancer, although this improvement was not statistically significant.”

Há todo um racional baseado em outro estudo na discussão, entretanto eu, sinceramente, ainda não tinha visto um resultado ser reportado desta maneira. Normalmente, conclusões como esta são reportadas ao contrário, por exemplo: “Não houve diferença estatística entre os dois grupos, apesar de tendência favorável ao grupo do tratamento”.(Se algum prezado leitor tiver mais exemplos desse fenômeno, por favor, permita-me saber também!)