Síndrome Pós-Pólio

Joaquin_Sorolla_Triste_Herencia

Por Meire G. (do Salada Médica) e Karl

Poliós (πολιός) em grego quer dizer “cinza”; myelós (µυελός), medula. Em 1874, o médico alemão Adolph Kussmaul (1822-1902) cunhou o nome da doença a partir de achados patológicos da medula espinhal de pacientes com a paralisia. A pólio já era conhecida dos egípcios constando em inscrições de 1400 AC, mas entrou para o hall da fama das moléstias humanas apenas na década de 50. A pandemia de poliomielite tomou de assalto a Europa e os EUA tendo como características peculiares, o alto número de casos do que foi chamado de pólio bulbar, no qual o paciente, a grande maioria crianças, perde a força da musculatura respiratória necessitando ventilação mecânica para não morrer sufocado.

O vírus da pólio é muito semelhante aos rhinovirus (RV), um dos causadores do resfriado comum, chegando a ter 45-62% de semelhança em seus genomas diferindo, entretanto, na construção da capa viral. Isso impede que o RV penetre na mucosa do intestino, mantendo-o nas vias aéreas superiores. Partilham entre si, no entanto, a alta infectividade de humano para humano, e daí as consequências desastrosas para o caso da pólio.

O último caso de poliomielite no Brasil data de 1990, tendo sido considerada erradicada das Américas em 1994. Em 2000 foi declarada oficialmente eliminada de 37 países do Pacífico Ocidental incluindo China e Austrália. A Europa foi declarada livre da pólio apenas em 2002. Em 2012, a pólio permanecia endêmica somente em três países: Nigéria, Paquistão e Afeganistão, muito devido a problemas religiosos associados à distribuição das vacinas à população. Infelizmente, o vírus da Polio acometeu muitas pessoas no Brasil deixando um número considerável delas com a conhecida deficiência física. Por outro lado, boa parte das pessoas com sequelas adaptou-se à limitação, cresceu, teve filhos, trabalha. Assim como outras pessoas com necessidades especiais, elas brigaram por seus direitos e hoje há reserva de vagas para elas em concursos públicos e em empresas privadas.

Muitos desses adultos estão enfrentando uma segunda grande batalha da doença: a síndrome pós-poliomielite (SPP). Boa parte dos médicos brasileiros em atividade hoje – nos quais nos incluímos – nunca viu um caso de pólio aguda, mas todos conhecemos suas sequelas. Agora é necessário uma atualização para o diagnóstico dessa complicação tardia de modo a dar o encaminhamento correto aos nossos pacientes. Há um interessante manual sobre isso disponível em pdf para download aqui.

A SPP vai se instalando devagar, depois de muitos anos: a perda de funções que as pessoas  tão bravamente conseguiram manter ocorre por volta dos 35 anos anos de idade, justamente na fase em que estão se estabilizando na vida e cuidando dos seus filhos.

O que ocorre?

A pessoa começa a apresentar um declínio das funções do membro acometido pela Polio no passado. Pode haver, em maior ou menor grau, cansaço, dor, alteração na mecânica do corpo, sintomas psicológicos, déficit de memória e piora da atrofia muscular, inclusive com osteoporose associada. Nos casos mais sérios pode haver inclusive alteração na deglutição e na respiração.

O enfoque principal do tratamento é a fisioterapia motora, além dos cuidados de se evitar exposição a agentes tóxicos para o tecido nervoso, como as bebidas alcoólicas. Evitar o excesso de peso e uso de órteses de compensação, com bengalas, por exemplo, são estratégias que não podem ser esquecidas. Outra coisa importante: a exposição a baixas temperaturas é um agravante para a dor.

Os trabalhadores sintomáticos devem passar por consultas com médicos do trabalho a fim de, preferencialmente, serem reabilitados para uma função compatível com o novo quadro. Os trabalhadores em situação de invalidez devem ser encaminhados para exame médico-pericial, de acordo com o regime de previdência ao qual estejam vinculados.O trabalhador em alto risco social e que não esteja vinculado a nenhum seguro sendo, portanto, excluído do direito à percepção de benefícios por incapacidade, deve entrar com um requerimento de Amparo Social junto ao INSS, através do telefone 135.

A atual geração de médicos, esperamos, seja a última a ver tais casos. Tomara a SPP seja o último suspiro da nêmesis humana que foi a poliomielite e que ela sobreviva apenas em interessantes obras ficcionais como a de mesmo nome de Philip Roth. A SPP e as obras de arte servem para lembrarmos do medo e da tristeza que ela espalhou e ora espalha, para comemorarmos nossas conquistas e jamais esquecermos daqueles que trabalharam para que nos víssemos livres. Ao menos desse mal.

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Figura acima. Triste Herência. de Joaquín Sorolla (1863-1923). 212 cm × 288 cm, 1899. Coleção privada. A obra representa uma cena real da praia de Cabañal na cidade de Valência na Espanha. Nela são representadas crianças com problemas locomotores em um banho de mar em busca de suas propriedades curativas. A figura central é muito sugestiva de uma criança com as características sequelas da poliomielite, bastante comum na época, sendo amparada por um religioso da Ordem de San Juan de Dios.

Figura abaixo. Christina’s World de Andrew Wyeth (EUA, 1917-2009) de 1948. Têmpera em painel gessado. 81,9 x 121,3 cm. Museum of Modern Art, New York. Anna Christina Olson (1893-1968) foi acometida por uma doença degenerativa que a impediu de andar por volta de 1920. Apesar de não ter o diagnóstico correto, a paralisia foi atribuída à poliomielite. Wyeth a conheceu quando ela tinha aproximadamente 50 anos, apresentada por sua futura esposa, Betsy. A figura feminina que rasteja em direção à sua casa da fazenda, de fato a propriedade dos Olson, tem as pernas de Christina e o jovem torso de Betsy, à época, com pouco mais que vinte anos.

Carta-Resposta do Prof. Maurício Rocha e Silva

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Segue a carta do prof. Maurício Rocha e Silva sobre a suspensão de revistas médicas brasileiras pelo JCR, conforme publicado neste blog. As opiniões do autor não são necessariamente as mesmas do editor do blog. Esperamos, entretanto, que isso possa fomentar um debate salutar sobre as publicações científicas brasileiras, debate de importância maior para amadurecermos no nosso papel de relevância científica que conquistamos a duras penas. Todas as perguntas dirigidas ao autor do texto lhe serão encaminhadas por email e me comprometo a publicar integralmente, tanto as questões, quanto suas respostas. (Me reservarei, contudo, no direito de editar eventuais textos ofensivos e em “caps lock” abusivo).

Ainda a propósito da suspensão de revistas pelo JCR

Mauricio Rocha e Silva

Editor, Clinics

Clinics foi suspensa por um ano do Journal Citation Reports (JCR) 2012. A suspensão foi provocada por dois artigos publicados em 2011. A suspensão significa que CLINICS não teve Fator de Impacto divulgado para 2012 pelo JCR. Este é responsável pela publicação do fator de impacto de 8.841 periódicos científicos mundiais. Mas não é a única agência avaliadora no mundo, como veremos adiante.

O Hospital das Clínicas e a Editoria de Clinics estão examinando determinados aspectos do ato de suspensão e entendem que não existem fundamentos dentro das regras JCR em vigor que justifiquem esse ato.

Há que notar que, até hoje, o site JCR continua a afirmar que “Suppressed titles were found to have anomalous citation patterns resulting in a significant distortion of the Journal Impact Factor.” (Títulos suprimidos apresentaram padrões anômalos de citação, que resultam numa distorção significativa do Fator de Impacto da Revista). Isto só pode significar que a condição obrigatória para suspensão é uma distorção significativa do Fator de Impacto.

E qual foi a distorção significativa provocada em nosso fator de impacto? Clinics foi suspensa pela publicação de dois artigos na Revista da Associação Médica Brasileira sobre pesquisa científica brasileira em áreas específicas do conhecimento: aparelhos cardiorrespiratório e locomotor. Estes artigos citam 330 artigos brasileiros, dos quais 127 publicados pela CLINICS. Estas 127 citações representam apenas 18% de todas as citações recebidas pela CLINICS em 2011 (total 704 citações) Como consequência, o Fator de Impacto de Clinics elevou-se em 22% (de 1,687 para 2,058). Como é que esta distorção de fator Impacto é comparada com outras no sistema ISI? Para isso realizamos uma avaliação por amostragem pesquisando 200 revistas não suspensas pelo JCR e escolhidas randomicamente. Convidamos qualquer leitor a fazer o mesmo: escolha o seu método de randomização e veja o que aparece. Esta análise revelou 31 revistas (15,5%) com elevações de Fator de Impacto iguais ou superiores aos 22% da Clinics. Estendendo esta amostragem para o universo de 8841 revistas pode-se esperar encontrar cerca de 1300 revistas com “distorções” iguais ou superiores às da CLINICS. Nenhuma dessas foi suspensa. Entenda-se: não estou acusando de distorção estas revistas semelhantes à CLINICS e não suspensas. Estou simplesmente mostrando que o que não é infração ética para tantas, subitamente virou infração para Clinics.

Como notei, o JCR não havia instituído essa modalidade de impropriedade de citação em 2011, quando os artigos foram publicados. As primeiras revistas suspensas por stacking o foram em Junho de 2012. Três revistas foram suspensas por citações circulares. Só então é que se ficou sabendo que esta modalidade passara a existir. Consequentemente, a nova regra foi aplicada retroativamente à Clinics. Mesmo agora, junho de 2013, as regras continuam obscuras e dão a JCR margem para ações discriminatórias.

Vale repetir: o JCR não detém monopólio mundial de avaliação de impacto. Duas outras grandes instituições também o fazem. (1) A editora científica Elsevier, a maior do mundo, sediada na Holanda, possui um site  www.scimagojr.com, que divulga um impacto entendido pela CAPES, pela FAPESP e pelo CNPq como equivalente ao da JCR. Continuamos ali representados e quem quiser saber quanto será o nosso impacto Scimago 2012 só precisa esperar até o próximo mês de julho. (2) SCIELO, uma das mais importantes experiências de catalogação científica do mundo, sediada em São Paulo, publica também um Fator de Impacto. Continuamos ali representados. A suspensão de Clinics no JCR choca de frente com a não suspensão no Scimago e na SCIELO.

Mesmo que comentaristas inseridos neste e noutros blogs prefiram discordar de nossa posição, seria muito mais conveniente evitar a indecorosa e anônima pressa de criminalizar um evento entendido pela própria JCR como mera decisão técnica. CLINICS foi apenas excluída do JCR em 2011. Tudo o mais referente a ela continua incluído no sistema JCR e decorre normalmente.

Aproveito para reafirmar e renovar nosso compromisso com a informação ética e verdadeira da ciência, dentro do conceito de dignidade da atividade científica.

As Origens do Emaranhamento

gasparzinhoEste é um post de um autor convidado, oculto e que faz parte de uma blogagem coletiva do SBBr. Saiba mais clicando aqui. Os leitores também podem tentar adivinhar quem seja o blogueiro entre os participantes.
Por Blogueiro Oculto
O post de hoje é sobre ocultismo. E vai ter fantasmas também. E muita ciência. Quer ver? Vamos lá:

oculto.:adj. Do latim occultu-, «idem», particípio passado de occulĕre, «esconder; ocultar»

1.subtraído à vista, escondido; encoberto; 2. que apenas se conhece pelos efeitos; 3. invisível; 4. ignorado; 5. misterioso; 6. que não pode ser explicado pelas leis naturais, sobrenatural; 7. não explorado

O conceito de “elemento oculto” permeia os mais variados campos do conhecimento humano. Em especial, na verdade, quando há algum nível de desconhecimento: é a incógnita das equações matemáticas ou o sujeito oculto da gramática, é ainda o contaminante de reações químicas ou o elemento que falta em Hamiltonianos na modelagem teórica correta de experimentos. À boca pequena, diz-se mesmo que quando médicos diagnosticam pacientes genericamente com uma “virose”, o que há de fato é algum elemento que eles desconhecem e previne um diagnóstico mais preciso.

Um dos elementos ocultos historicamente mais famosos são as “variáveis escondidas” propostas por Einstein e colegas a fim de justificar que a nascente Física Quântica não poderia ser como de fato é.

Não entendeu? Eu explico. Imagine um sistema formado por duas partes. Duas bolas, por exemplo. Uma azul, outra vermelha. Melhor ainda, pense quanticamente: cada bola pode ser azul ou vermelha e o estado quântico é uma-bola-azul-e-uma-bola-vermelha. Agora separe as duas partes. Quando você olhar para uma delas e descobrir que ela é vermelha, imediatamente você sabe, sem olhar para a outra, que ela é azul, e vice-versa. Mas, e aqui tem uma grande MAS exclusivamente quântico: a bola para a qual você olhou até o momento anterior à medida é azul E vermelha e só “define” sua cor no ato da medida. Consequentemente, a outra bola, não importa quão distante ela esteja, metros, quilômetros, anos-luz distante, IMEDIATAMENTE, define sua cor também.

Ora, “imediatamente” é um conceito completamente avesso à Teoria da Relatividade de Einstein. Em Relatividade não há NADA imediato: toda informação leva um tempo para se propagar e, no máximo, se propaga com a velocidade da luz. Com a interpretação do parágrafo anterior e sua Teoria da Relatividade em mãos, Einstein, Podolski e Rosen escreveram um trabalho onde afirmavam categoricamente que havia aí um paradoxo: a interpretação só poderia estar errada pois, afinal, a Relatividade estava correta. Abre parênteses: Einstein, dentre tantos, ajudou a construir a Física Quânica não apenas “positivamente”, desenvolvendo-a, mas especialmente por criticá-la, questioná-la, tentar mostrar que havia problemas e instigando seus colegas, defensores da Física Quântica, a achar interpretações coerentes para contornar os supostos problemas. Fecha Parênteses.

Desta feita, os três sugeriram duas possibilidades para resolver este aparente paradoxo: ou há, na Física Quântica, variáveis ocultas que fazem a transmissão da informação e, obviamente, ainda não haviam sido consideradas e/ou descobertas ou havia algum tipo de “ação fantasmagórica à distância” (olha os fantasmas que eu prometi aí!) responsável pelo efeito. Mais um parênteses: vindo de cientistas de alto gabarito, a menção explícita a “fantasmas” chega a ser engraçada e surpreendente.

A questão manteve-se e foi estudada por muitos e por muito tempo. Coube a Bell colocar a existência das variáveis ocultas numa simples desigualdade matemática (a desigualdade de Bell) e ao físico Alain Aspect a testar essa desigualdade e, surpreendentemente, violá-la, descartando definitivamente a existência das variáveis escondidas propostas por Einstein. Mas então, perguntará você: se a parte oculta da questão não existe, isso significa que há fantasmas agindo por aí? É claro que não.

De fato, a aventada “ação fantasmagórica à distância” tornou-se uma das mais emblemáticas e potencialmente aplicáveis faces da Física Quântica. Nascia ali o Emaranhamento. Em termos simples, e voltando ao nosso exemplo lá do começo do texto, as duas bolas estão emaranhadas e por isso, não importa quão distante elas estejam, ainda assim formam um único sistema, delocalizado e, por isso, quando a cor de uma se define, a da outra, imediatamente, também se define, pois elas formam um único sistema. Esse tipo de fenômeno é exclusivo da física quântica e não tem, nem pode ter, análogo clássico. De fato, é este fenômeno um dos pilares das propostas de transmissão, criptografia e computação quânticas, e do teletransporte (“Beam me up, Scotty!”) que um dia farão (farão mesmo?) seus caminhos para o nosso dia-a-dia e que hoje começam a se tornar reais em laboratórios ao redor do mundo.

[Este texto é parte da primeira rodada do InterCiência, o intercâmbio de divulgação científica. Saiba mais e participe em: http://scienceblogs.com.br/raiox/2013/01/interciencia/]

Um Sistema Nacional de Controle de Receituários

Hoje, o Ecce Medicus tem a honra de receber Roberto Takata. Sujeito universal e “omnipresente” na e da internet brasileira – em que pese o fato de sua real existência ter sido seriamente contestada, o que eu, particularmente, duvido muito, apesar de não conhecê-lo pessoalmente -, seja por meio de redes sociais (em especial, o Twitter @rmtakata), seja como comentarista ácido de posts sobre os mais variados assuntos, seja, por fim, como autor dos imperdíveis blogs Gene RepórterNAQ (Never Asked Questions). Aqui, Takata sugere como o controle de receituários poderia auxiliar no acompanhamento dos pacientes e aproveita para elaborar uma crítica da situação atual, ao meu ver quase pré-histórica, do controle de receitas no Brasil. 

~ o ~

Por Roberto Takata

A lei federal 11.903/2009 criou o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, cuja implementação está parada desde 2011. O sistema é importantíssimo para evitar não apenas a comercialização de medicamentos falsificados e fora do prazo, permitindo maior controle sobre medicamentos de venda restrita, além de também poder gerar dados fundamentais para orientação de políticas públicas e ações sobre a saúde da população, questões como automedicação, dependência química de medicamentos (analgésicos “fortes” e psicotrópicos, por exemplo) e mesmo acompanhar as regiões com maior demanda para certos tipos de produtos.

Um outro sistema, julgo, seria também de grande valor: o de rastreamento de receituários médicos, veterinários, odontológicos e agronômicos. Há algumas receitas que são retidas, outras que não. Para os medicamentos controlados, o controle é feito por guias numeradas de notificação de receituário: retidas na apresentação na farmácia. De todo modo, para a maioria dos medicamentos e produtos, essa informação não é compilada em um banco de dados que permita avaliar o quadro geral: onde, como, quando são geradas tais receitas? Nem há associação com dados do paciente como idade, peso, histórico médico…

Muitos consultórios já possuem sistemas informatizados de produção de receitas – entre outras coisas evitam a prescrição de medicamentos fora de uso, além da famigerada letra de médico. Esses sistemas poderiam enviar dados a um repositório central para cada receita emitida, associando-os aos dados do paciente (exceto, claro, dados pessoais como nome, número de identidade, endereço ou telefone – o paciente seria identificado apenas com um número hash único no sistema gerado no terminal do médico); o sistema central geraria, então, um número identificador e o associaria ao receituário, esse número seria impresso como código de barras junto com a receita. O retorno do paciente também seria registrado. Ao ser apresentado na farmácia, o código seria lido e a operação de compra registrada no sistema central.

Mas tal sistema não seria redundante em relação ao SNCM? Em parte sim. E isso não é ruim. A redundância permitiria uma avaliação independente de certos parâmetros; diferenças ajudariam a monitorar casos de erro ou de fraude. O cruzamento entre ambos os sistemas permitiria também acompanhar outros dados, p.e., seria possível inferir uma taxa de eficiência de medicamentos e grupo de medicamentos, a partir da comparação entre a receita inicial e os dados do retorno, em uma escala nacional. Se alguma reação adversa desconhecida ocorre em um grupo pequeno, uma interação medicamentosa não prevista, rapidamente isso tudo poderia ser descoberto.

Haveria ganho de eficiência também em relação ao sistema atual de notificação de receituário: em que o médico solicita uma sequência numérica para identificação das receitas, os dados são registrados a mão, depois é retido pela farmácia e enviada a uma central, que digitaliza os dados, compila-os e notifica a cada mês, trimestre ou ano. O registro seria quase em tempo real, eliminando etapas intermediárias como digitação dos dados.

Claro, um sistema desses não seria criado do dia para a noite. Afinal, nem o SNCM está efetivamente implantado. Mas frente a problemas de confiabilidade de registros de medicamento – a BigPharma, obviamente, tem seus interesses econômicos e a tentação é suficientemente grande para haver uma tendenciosidade (consciente ou não) nos dados publicados sobre a eficiência de seus produtos -, e mesmo de vendas de medicamentos, e sua receita (o caso é na Europa, mas poderia ocorrer aqui), creio que valeria a pena. (Sim, difícil é enfrentar um lobby bem organizado e abastecido.)

O Nome do Doente. Poder e Identidade nas Práticas de Saúde no Brasil

Desenho de David Oliveira, escultor português. Vi no Street Anatomy.

Hoje, trazemos uma contribuição da professora Tatiana Piccardi da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com quem temos tido um contato enriquecedor e jubiloso.  O texto parte da nomenclatura atribuída aos agentes das práticas de saúde – pacientes e seus familiares incluso -, pelas formas contemporâneas da gestão em saúde, para fazer uma crítica da ética dos discursos envolvidos nessas práticas, concluindo que as novas terminologias podem ser “sinais e sintomas” dessas mudanças. Já comentamos sobre o assunto há alguns anos. De minha parte, deixaria o questionamento sobre se tais novas terminologias não seriam – elas mesmas – os vetores de tais mudanças, dada a possibilidade da linguagem de construir e constituir tais realidades. Bem, deixo que o texto fale por si. E ele é eloquente.

Por Tatiana Piccardi

Quando os discursos institucionais trazem à cena os agentes do sistema de saúde e os categorizam em grupos (gestores, profissionais de saúde e pacientes/familiares), apagam o fato de que esses grupos não se alinham com exatidão e não podem ser sequenciados como grupos paralelos entre si.  No caso dos gestores, sua menção os traz à cena como sujeitos alinhados a práticas políticas em saúde, práticas tais que, em tese, cabe a eles viabilizar em benefício do sistema. Trata-se, portanto, de sujeitos cuja subjetividade tende a ser apagada por força da atuação política. Sua fala é, assim, predominantemente institucional e se dá de cima para baixo.

Os profissionais de saúde, por serem os que interagem mais ou menos diretamente com os doentes e seus familiares, ocupam uma posição diferente nessa rede de relações. Ao mesmo tempo em que se alinham às prescrições de uma prática médica norteada por princípios objetivos e externos ao sujeito – inclusive políticos –, manifestam necessariamente sua subjetividade durante sua prática, sem o que não haveria a possibilidade mesma de interagir e se comunicar com seus pacientes e pessoas a eles relacionadas. Sua fala, portanto, oscila entre a fala institucional e a fala pessoal, ou seja, entre a fala prevista para o exercício da função e as falas espontâneas próprias das relações pessoais, em que as diferentes posições sociais dos sujeitos em questão não afetariam de modo predominante a interlocução.

O paciente e familiares, por sua vez, interagem com os médicos (e profissionais de saúde de modo geral) de forma predominantemente espontânea, o que significa dizer que sua prática, enquanto sujeitos enfermos que, em princípio, estão mais fragilizados e dependentes que seus interlocutores, ocorreria de modo a que a subjetividade fosse a tônica. Haveria por parte de tais sujeitos – antes de efetuar-se uma análise mais acurada – maior liberdade no falar e maior vazão dos sentimentos vários que permeiam esta prática interlocutiva.

Da perspectiva dos estudos da linguagem que se atêm ao estudo dos discursos produzidos nos diferentes campos da atuação humana, em especial os discursos ditos constituintes[1], o modo de articulação dos três grupos de agentes acima mencionados explica-se em função da força que os discursos político e científico exercem na esfera da saúde pública. Gestores e profissionais de saúde teriam sua prática fortemente determinada por tais discursos, que constroem uma certa identidade para tais sujeitos, que, por sua vez, a reforçam no sentido de marcar o pertencimento ao grupo.  Ocorre que o paciente e seus familiares não estão alheios a essa determinação. Sua espontaneidade e subjetividade explicitada não os coloca fora das coerções. Seu comportamento, inclusive linguístico/comunicativo, dá-se por coerção dos mesmos discursos, como o reverso necessário à prática de poder instituída pelos discursos político e científico.

Na interlocução com o médico (destaco o médico porque é na relação com ele que as coerções discursivas aparecem mais evidenciadas), o doente ocupa a posição assimétrica de “paciente”, de quem se espera todo um modo de comportar-se e reagir, em geral caracterizado pela subordinação ao médico e a suas prescrições, e pela não contestação à prescrição, uma vez que se subentende que o saber do médico se sobressai e ocupa lugar epistemológico superior aos saberes do paciente. Na relação com o sistema de saúde, personificado em gestores em diferentes níveis, o paciente ocupa a posição assimétrica de “usuário”, de quem se espera igualmente todo um modo de comportar-se e reagir, que se caracterizaria pela subserviência, uma vez que o saber burocrático do sistema não pode ser contestado.

As intricadas relações de poder no sistema público de saúde, de que inevitavelmente se impregna o SUS, não são novidade no âmbito das discussões sobre linguagem, conhecimento e poder. Michel Foucault há muitos anos discutiu a questão em sua obra. Em Microfísica do poder (2004), há textos que tratam especificamente das relações de poder na medicina. Em O nascimento da clínica (2006), desenvolve de modo brilhante as condições históricas que determinaram a ruptura que houve entre a prática médica do século XVIII e a prática médica que se inicia no final do século XVIII e início do XIX (período no tempo considerado marco para o que se convencionou chamar de medicina moderna).  Nesta obra, não se trata tanto, segundo o autor, de apontar as modificações havidas nos discursos médicos de um século a outro no que se refere à descrição das doenças e dos sintomas, ou mesmo de se avaliar as diferenças nas práticas médicas nos dois momentos, mas se trata, sim, de apontar as condições históricas que tornaram possível, de um século a outro, transformar de modo tão radical a relação médico e doente, a ponto de torná-lo secundário enquanto interlocutor, seja denominando-o “paciente”, seja denominando-o “usuário”.

Atualmente as condições históricas permitem rotular o doente de “cliente”, tendo-se em vista a crescente mercantilização da medicina na esfera privada. Ou ainda de “cidadão”, da perspectiva da gestão política que levanta a bandeira do direito à saúde. Permanece ainda assim assimetria. No primeiro caso porque, ao contrário do que ocorre em outras esferas do comércio, o “cliente” paga pelo que em geral não recebe; no segundo caso porque o “cidadão” não é respeitado como tal.  De qualquer modo, a nomenclatura para referenciar  o sujeito que procura atendimento médico no Brasil (paciente, doente, usuário, cliente, cidadão) é sempre problemática ideologicamente, sendo seu uso jamais neutro ou isento. O surgimento de novas terminologias é a contrapartida discursiva visível de profundas mudanças no modo como se relacionam os agentes do sistema de saúde.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6ª. ed., trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Forense, 2006.

________.  Microfísica do poder. 19.ed., org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2004.


[1] Discursos constituintes são aqueles que, por sua tradição e força institucionalizante, são base para a produção de outros tantos discursos (os exemplos centrais são os discursos religioso, político e científico).

Foto do Street Anatomy.

Blog do David Oliveira.

USP – Universidade Classe Mundial?

Publico aqui, com autorização da autora, carta da professora Rita Cruz, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP. É uma carta-reflexão sobre a proposta de alteração regimental na pós-graduação da USP de que falávamos. De forma clara e brilhante, ela expõe os desencontros da política universitária do Estado de São Paulo que, a pautar-se pela interpretação fria de rankings e pelas comparações grosseiras entre as instituições, afeta diretamente a maior universidade do país com consequências desastrosas. Mais que isso, provoca uma reflexão sobre qual o papel da universidade na sociedade paulista e brasileira atuais deixando a pergunta: qual a melhor forma de uma universidade latino-americana portar-se para estar entre as melhores do mundo? Um simples “copy-paste” resolve?

~ o ~

Universidade Classe Mundial: paradoxos de um  pensamento ao mesmo tempo neoliberal e neocolonialista

Como é do conhecimento de todos, estamos vivendo um processo de reformulação do Regimento Geral da Pós-Graduação da USP. Conforme declarações públicas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, as mudanças propostas fazem-se necessárias no sentido de transformar a USP em uma Universidade Classe Mundial.

Todavia, o que nos tem inquietado a muitos, alunos e professores da USP, diz respeito à pertinência/necessidade de algumas das mudanças anunciadas, entre as quais se pode destacar:

  1. exame de qualificação obrigatório para todos os alunos da pós-graduação, a realizar-se em até 12 meses de seu ingresso;
  2. exclusão da possibilidade de re-apresentação do Relatório de Qualificação no caso de reprovação;
  3. necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;
  4. orientador sem direito a voto nas bancas examinadoras finais.

A principal argumentação utilizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação para justificar tais mudanças é a referência a IES [instituições de ensino superior] estrangeiras, as quais têm modus operandi similares ou iguais a este que se propõe hoje para o Regimento da Pós-Graduação da USP, ressaltando-se o fato de que tais Instituições são melhores ranqueadas internacionalmente que nós. Naturalmente, não ignoramos o fato de que há muitas experiências vividas em outros lugares no mundo, no campo científico e acadêmico, passíveis de serem assimiladas por nós de forma positiva, ou seja, produzindo-se aqui, em nosso contexto social, econômico, político e geográfico, as mesmas benesses que produziram em seus lugares de origem.

Entretanto, entendemos, também, que não há um modelo universal para se produzir uma Universidade Classe Mundial e, se considerarmos as condições em que fizemos ciência no Brasil e na USP, particularmente, desde a sua fundação, podemos afirmar, sem dúvida, que somos muito mais Classe Mundial que diversas universidades melhores colocadas nos diversos ranqueamentos internacionais. Por que podemos afirmar isso? Pensemos em alguns dados/informações.

Ranking das 10 melhores universidades do mundo segundo a TIMES HIGHER EDUCATION – informações elementares

Universidade

Ano

Orçamento Anual*

No. de Alunos

Orçamento/Aluno¶

Doc/Pesq por Aluno

USP

1934

3

76.000

39.473,68

1/14,5

CalTech

1921

6,3[1]

22.000

286.363,60

1/1,13

Harvard

1636

57.6[2]

21.000

2.742.857,10

1/10

Stanford

1891

37[3]

18.500

2.000.000,00

1/1,73

Oxford

1096

3[4]

20.000

150.000,00

1/ 2,35

Princeton

1746

17,2[5]

12.000

Cambridge

1209

3,4[6]

10.000

340.000,00

1/3,3

MIT

1861

4,8[7]**

11.000

436.363,36

1/11

Imperial College

1891

2[8]

14.000

142.857,14

1/12

Chicago

1907

4,6[9]

15000

306.666,66

Berkeley

1868

3,5

36.000

97.222,22

1/15

Obs.: as informações e dados acima expostos foram extraídos das páginas das respectivas universidades, disponíveis na web.*Valores aproximados em bilhões de Reais.**Excluindo-se orçamento destinado ao Laboratório do MIT que tem parceria com a NASA.¶ Em Reais.

Como se pode ver na tabela acima, a Universidade de Harvard,  Estados Unidos, desenvolveu sua reconhecida capacidade de produzir conhecimento ao longo de pouco mais de três séculos e com orçamentos, muito provavelmente, bem superior aos nossos. Vale lembrar que se hoje Harvard tem um orçamento anual quase vinte vezes superior ao da USP, com um número total de alunos 60% menor, há poucos anos atrás, o orçamento total da USP – 2005, por exemplo – não chegava aos 2 bilhões de reais. Entre outras coisas, pode-se notar que enquanto a USP investe menos de R$ 40.000,00 por aluno, em Harvard esta conta chega ao estratosférico valor de quase 3 milhões de reais!!! Dá para comparar?

Oxford, por sua vez, tem, aparentemente, um orçamento igual ao da USP hoje, mas como a comunidade estudantil oxfordiana é 70% menor que a nossa, a universidade inglesa, com  quase mil anos de história, empenha cerca de 150.000 reais por aluno. Certamente, os seus quase dez séculos de história foram importantes na definição de suas políticas acadêmicas e, especialmente, de pesquisa. Estaremos nós querendo ser mais oxfordianos que nossos colegas ingleses? Ou será que queremos mesmo é ser mais realistas que o rei?

Entre as dez melhores do mundo, ainda segundo o ranking “Times Higher Education”, por exemplo, aquela que tem o menor investimento per capita por aluno – Califórnia University at Berkeley – empenha duas vezes e meia os valores investidos pela USP. Apesar de a USP ter, proporcionalmente às melhores universidades do mundo, orçamentos bem mais modestos, parte da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos países que abrigam as “top 10 do mundo”, estimulada por uma visão tupiniquim de uma imprensa irresponsável, nos rotula de “burgueses gastões” .

Outro elemento importante neste debate e que não pode ser negligenciado diz respeito à hegemonia lingüística mundial da língua inglesa, ou seja, pesquisadores/cientistas anglófonos levam reconhecida vantagem em termos da reverberação internacional de seus trabalhos em relação, por exemplo, a pesquisadores/cientistas não-anglófonos.

Em sua competente análise acerca de classificações internacionais de universidades e, especialmente sobre a classificação “Xangai”[10], Hervé Théry (2010: 192) diz a esse respeito:

Outro fator de distorção é que o inglês tornou-se, na maior parte dos campos científicos, a língua internacional e que os universitários do mundo anglófono são muito mais integrados ao circuito internacional que os seus homólogos dos outros blocos culturais. Consequentemente, essa classificação das universidades favoreceu claramente os países para os quais o inglês é a língua materna.

Outra distorção apontada por Hervé Théry (2010: 191-2) quanto à classificação “Xangai”, diz respeito à subestimação clara das ciências sociais e humanas. Conforme o autor:

O lugar das ciências sociais e humanas é claramente subestimado nessa classificação, os próprios autores o reconhecem, mas eles confessam não ter encontrado, para esses campos científicos, critérios que correspondam às exigências que tinham fixado: medidas universalmente reconhecidas como válidas e livremente acessíveis na internet. Em especial, o fato de não poder dispor de uma classificação dos livros, um dos principais meios de expressão dessas ciências, prejudicou a sua inclusão correta na classificação.

Se, entretanto, insistem alguns em comparar o incomparável, uma das conclusões a que podemos chegar é a de que a USP é muito mais Classe Mundial que as dez melhores universidades do mundo, afinal de contas, conseguimos ser a melhor universidade da América Latina e estar hoje entre as 70 melhores do mundo, com pouco mais de 70 anos de história, utilizando muito menos recursos que a maioria delas e abrigando 3, 4 ou 5 vezes mais alunos que a maior parte dessas instituições.

ISTO POSTO, NÃO DEVERÍAMOS NÓS ENSINAR A ELES OS NOSSOS MÉTODOS E NÃO O CONTRÁRIO?

Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais

Na onda dos ranqueamentos internacionais, outro processo em curso na USP é o de criação de um novo sistema de avaliação da qualidade de sua pós-graduação.

Para que e a quem servem os sistemas de avaliação seja de universidades “classe mundial” ou de programas de pós-graduação?

1. No caso da avaliação da pós-graduação, o sistema Capes tem servido, entre outras coisas, para fomentar a competição entre Programas, em escala nacional. Como? Os Programas melhor classificados são aqueles que recebem mais recursos. Assim, esse sistema trabalha para manter na penumbra aqueles que apresentam maiores dificuldades; enquanto isso, os melhores têm suas receitas fortalecidas.

2. Um sistema de avaliação pautado na competição contribui, efetivamente, para “varrer” do universo da pós-graduação os Programas que não conseguem melhorar suas notas, por razões diversas, entre as quais a dificuldade em vencer os mecanismos vorazes da competição (fatores temporais – programas jovens; fatores geográficos – dificuldade em fixar professores/pesquisadores em lugares distantes dos centros econômicos mais dinâmicos do país, fatores financeiros – escassez de recursos, por exemplo).

3. Coincide, historicamente, com a instalação do sistema de avaliação da Capes uma reconhecida perda de qualidade na formação geral de pós-graduandos no Brasil. Naturalmente, não se pode atribuir única e exclusivamente à avaliação Capes algo que decorre de um sucateamento do ensino em todos os níveis no país, reinante durante décadas. Todavia, alguém duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém  duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?

Tais inquietações me conduzem a perguntar: como se fazia a avaliação da produção na USP, por exemplo, nos anos 50, 60 e 70?

O reconhecimento nacional e internacional da USP, historicamente construído, subordinou-se, durante décadas, única e exclusivamente  à inserção social de seus formandos, graduados e pós-graduados, bem como à sua produção científica, que revolucionou diversos setores da vida social.

Todavia, na medida em que, pós anos 80, começa a ampliar-se, substancialmente, o universo da pós-graduação brasileira, “a fatia do bolo” para cada um tinha de diminuir!

É nesse contexto que assumimos uma lógica empresarial de avaliação, fundada não somente na produção, mas sobretudo e principalmente na produtividade. Paradoxalmente, enquanto o setor produtivo se flexibiliza, supera o paradigma fordista e incorpora princípios toyotistas, a vida cotidiana na universidade volta-se para a produção em massa além de tornar-se cada dia mais inflexível!

A melhor avaliação da USP foi e continua sendo feita pela sociedade brasileira, de modo geral, e paulistana, especificamente. A inserção de nossos egressos, tanto da graduação como da pós-graduação em todos os setores do mercado de trabalho, incluindo-se postos de liderança em escolas de ensino fundamental e médio, universidades, empresas de todos os ramos e governos em todas as escalas expressa a verdadeira reverberação do investimento público onde ele deve reverberar.

Por fim concluo acreditando que temos empenhado muito tempo e energia na construção de parâmetros, indicadores e relatórios de avaliação, os quais alimentam uma verdadeira esquizofrenia avaliativa nacional. Enquanto isso, nossos alunos clamam, simplesmente, por uma boa aula, por um pouco de atenção, por uma boa conversa, enfim, atividades elementares,  cada vez mais difíceis de serem desenvolvidas em um cotidiano acadêmico regido pela competição. Quanto ao tempo para a pesquisa, passou a ser um sonho de todos nós. Algo me parece estar errado.

Sem mais, despeço-me, cordialmente,

Profa. Dra. Rita de Cássia Ariza da Cruz

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP

 

[10] Instituição Escore (2008)

1 Harvard University 100

2 Stanford University 73,7

3 University of California – Berkeley 71,4

4 University of Cambridge 70,4

5 Massachusetts Institute of Technology (MIT) 69,6

6 California Institute of Technology 65,4

7 Columbia University 62,5

8 Princeton University 58,9

9 University of Chicago 57,1

10 Oxford University 56,8

Fonte: THÉRY, Hervé. Classificação de universidades mundiais: “Xangai” e outras. estudos avançados 24 (70), 2010. Disponível aqui.

FMUSP 100 Anos – Carta do Prof. Arrigo Raia

Faculdade de Medicina com o Hospital das Clínicas as fundo. Provavelmente década de 50.

O Ecce Medicus publica hoje, como parte das comemorações dos 100 anos da Faculdade de Medicina da USP, uma carta do professor Arrigo Raia divulgada originalmente no jornal da Fundação Faculdade de Medicina. A FMUSP não é a faculdade de medicina mais antiga do Brasil, mas talvez seja a que dispõe de uma mesa mais farta para que cada aluno possa se servir. Seu prédio na avenida Dr. Arnaldo e o museu de medicina valem uma visita. A FMUSP comemora 100 anos da formatura de sua primeira turma junto com o centenário de seu aluno decano.

Uma vida longa como a da FMUSP

Nasci em Araraquara, no interior de São Paulo, dia 23 de agosto de 1912. Em breve completarei meu centenário, junto com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), escola em que me formei e vivi grande parte da minha vida. Eu sou a única pessoa viva que acompanhou a faculdade por todos os lugares por onde ela passou. Primeiro na Rua Brigadeiro Tobias, em seguida na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e depois minha turma inaugurou os edifícios da FMUSP na Avenida Dr. Arnaldo, onde está até hoje. A medicina chegou à minha vida muito cedo. Meu avô materno era italiano e médico. Ele veio para o Brasil e desde pequeno eu o acompanhava nas visitas aos doentes, no trole ou no carro para passear, então com 8 anos eu já tinha vontade de ser médico cirurgião.

Entrei na FMUSP em 1931 e me formei em 1936. Nos primeiros três anos, o curso era ministrado na Avenida Dr. Arnaldo. No quarto ano passamos para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a princípio eu me decepcionei, porque naquela época a cirurgia era muito restrita e nos casos das cirurgias maiores o índice de mortalidade era muito grande. O panorama mudou muito quando, em 1945, o Prof. Dr. Benedito Montenegro assumiu a direção da primeira cadeira de clínica cirúrgica e o Prof. Dr. Alípio Corrêa Netto assumiu a segunda cadeira, em 1946.

No último ano da faculdade, o governo italiano ofereceu uma passagem para 12 alunos. Em 1937, fomos em caravana para a Itália e tivemos a oportunidade de conhecer diferentes clínicas. Como eu já havia terminado o curso, estendi a viagem e fui para a Alemanha. Voltei para o Brasil em 1938 e regressei para trabalhar com o Prof. Alípio. A partir daí, desenvolvi toda a minha carreira na FMUSP. Em 1939, me tornei o terceiro assistente da cadeira de Clínica Cirúrgica, dirigida pelo Prof. Dr. Alípio. Em 1941, fui nomeado para exercer o cargo de Professor de Enfermagem Cirúrgica da Escola de Enfermagem Obstétrica da FMUSP. Em 1943, me tornei Livre Docente de Clínica Cirúrgica. Em 1961, conquistei, através de concurso, o título de Professor Adjunto. Em 1970, assumi o cargo de Chefe de Disciplina do Aparelho Digestivo do Departamento de Clínica Cirúrgica. E em 1973, após concurso, conquistei o título de Professor Titular do Departamento de Cirurgia.

Logo após me tornar Professor Titular da cirurgia do aparelho digestivo, adotei uma conduta pioneira, acredito que no mundo, dividindo a especialidade em grupos dedicados, respectivamente, a cada um dos setores da disciplina, entregando a chefia a jovens cirurgiões que gradativamente se transformaram em líderes na especialidade. São eles: esôfago, Prof. Henrique Walter Pinotti; estômago, Prof. José Gama Rodrigues; colo, reto e ânus, Profs. Daher Cutait e Angelita Habr Gama; fígado e hipertensão portal, Prof. Silvano Raia; e vias biliares e pâncreas, Prof. Marcel Cerqueira Cesar.

Fui um professor democrata, dei liberdade aos assistentes para que desenvolvessem suas atividades na disciplina, de tal forma que sete deles se tornaram professores titulares: cinco da FMUSP e dois em outras universidades.

Com a colaboração, contribuímos para a evolução da cirurgia digestiva em nosso meio, de tal sorte que, ao fim do meu mandato de professor, eram praticadas todas as técnicas cirúrgicas para tratamento das doenças do apare- lho digestivo, da apendicectomia ao transplante de órgãos.

Após muitos estudos, em 1971, eu e os Profs. Silvano Raia e Marcel Cerqueira Cesar Machado realizamos o primeiro transplante de fígado. O paciente sobreviveu 20 dias. Em 1974, fui convidado a participar da comissão médica que ajudaria na instalação e estruturação do Hospital Universitário (HU), auxiliando na escolha e aquisição dos equipamentos.

Durante minha trajetória publiquei três livros: “Manual de Pré e Pós-operatório”, com a colaboração dos Drs. Joel Faintuch e Marcel Cerqueira Cesar Machado; “Manifestações Digestivas da Moléstia de Chagas” e “Tratado de Clínica Cirúrgica Alípio Corrêa Netto”, com a colaboração do Dr. Euriclydes de Jesus Zerbini. Fui agraciado com 33 prêmios concedidos por sociedades científicas e congressos médicos, destes dez foram outorgados pela Academia Nacional de Medicina e um pela Academia Americana pelo progresso da ciência de Nova York. Sou membro de 14 sociedades médicas nacionais e internacionais e, dentre elas, membro emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Recentemente, fui homenageado em uma comemoração do centenário da FMUSP como aluno mais antigo da faculdade. Fiquei muito feliz por ter sido lembrado e pelo reconhecimento de todo meu trabalho junto à Faculdade e ao Hospital.

Além da minha família, a cirurgia foi minha paixão durante toda a vida: operei até meus 86 anos. Já estou no segundo casamento, tenho uma filha, dois netos e quatro bisnetos. Hoje, com quase 100 anos, minha maior alegria e diversão é brincar com meus bisnetos, e também faço caminhadas e musculação. Sempre que posso, viajo para rever minha cidade, Araraquara.

Bendigo o momento em que decidi seguir a carreira médico-cirúrgica. Muito trabalhei, muitos exemplos transmiti, muito ensinei e muito recebi em troca. Na fase atual de minha vida, sinto-me realizado e com experiência suficiente para dizer aos mais jovens que vale a pena todo o sacrifício que a carreira médica exige. Além de tudo, nos oferece um ocaso tranquilo e feliz pela nítida noção do dever cumprido.

Prof. Dr. Arrigo Antonio Raia Médico Cirurgião e Professor Emérito da FMUSP

Carta da Lu ou Sobre como o Mito de Tritão-Sereia influencia a Vontade de Salvar da População Médica Brasileira

O Ecce Medicus pretende, quem sabe um dia, ser um espaço para reflexões sobre a profissão médica. Por essa razão, há algum tempo, venho convidando pessoas, médicos ou não, a escrever sobre suas práticas e vivências relacionadas à profissão de Hipócrates. Hoje, publico uma carta da Dra. Lúcia, médica infectologista e intensivista do Paraná. 

“Querido Karl,

Queria te contar como foi a minha semana passada! Faz tempo que não batemos papo, e, devo confessar, faz tempo que mal tenho tempo pra ler o seu blog, que sempre alimenta os olhos e a alma… E põe meu cerebro pra funcionar também! Afinal, nesta nossa correria diária, vivemos embotados, no automático, mantendo a cabeça acima da linha d’água… Ops! É bem esse o assunto! Protocolos e água!

A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, numa parceria com o Corpo de Bombeiros do Estado, patrocinou um curso de Salvamento Aquático. O coordenador foi o Dr Ten Cel David Szpilman, autoridade mundial em afogamento. Tirando o fato de estar na frente de um dos mestres, a emoção estava em nivelar a todos, socorristas, guarda vidas, técnicos de enfermagem, enfermeiras e médicos, desde o ínicio do curso. As estatísticas são impressionantes, caro Karl. Cerca de 7000 óbitos por afogamento todo ano no país, dimensões continentais, não? Pessoas jovens, com grande expectativa de vida, produtivos. Nós nos acostumamos a enxergar o que chega ao hospital, que são os mais graves e mais difíceis de recuperar. Nós acostumamos a pensar que afogamento é coisa de mar grande e rio bravo. Quem se afoga e morre hoje?  São mais de 100.000 acidentes não-fatais no BRASIL! Nos pacientes de 1-14 anos, o afogamento é a segunda causa de morte. Na aula de acolhimento com estatísticas, a surpresa: as crianças morrem em casa, na banheira, na piscina, no tanque! Cerca de 70% das pessoas que se afogam no litoral são pessoas que vivem fora da orla. Essa catástrofe crescente está sendo mapeada graças aos esforços e iniciativa do Dr. Szpilmann, que classificou e estudou os tipos de afogamento (link pro site Sobrasa). Os melhores dados do mundo são os dados brasileiros. A educação para a prevenção hoje se mostra a maneira mais racional de combate a esse tipo de morte, uma vez que apenas 7% dos que se afogam em grau 6 sobrevivem, 0,5% sem sequelas. (Clique aqui para ver a classificação de afogamentos. Arquivo pps, em português).

Pra começar, fomos convidados a piscina! Cada dia mais todos convivemos com esportes aquáticos e estamos acostumados a nos divertir na água, no verão. Eu mesma sou uma entusiasta da água: nado desde os oito anos, hoje mergulho, tenho o Rescue Diver como um dos cursos mais importantes que fiz na vida de mergulhadora. Você sabe nadar? Ótimo, não se arrisque. Mas você sabe ajudar alguém em apuros, para que não vire estatística? Coragem e técnica são atributos diferentes e podem fazer a diferença entre a vida e a morte de uma ou duas pessoas (sim, a pessoa em apuros e seu possível salvador!  Ops, agora vítima também!). Como profissionais de saúde, sempre somos referência em situações de risco. E, acostumados com a cena hospitalar montada e razoavelmente confortável, como reagir numa situação de salvamento?  Você não tem a enfermeira e o oxigênio com a máscara, você não tem quatro pares de mãos habilitadas ao seu redor, você tem apenas você e a vítima. E um momento de festa em família, de lazer e recreação se transforma no seu pior pesadelo, atender, SALVAR a quem você ama! (não estamos discutindo o cunhado nem a sogra, nem as relações familiares…). Choque! Não, não tem desfibrilador, mas sim, um corpo boiando em parada respiratória… Karl, acostumados que somos em salvar vidas, em processos invasivos complicados, em atos médicos e monitoramentos… Só você e a vítima… Sentiu o arrepio?

Isto não é o resgate do naufrágio do Titanic. É um treinamento na praia

Hoje, vou pra água mais tranquila! Porque sempre digo: o engenheiro está andando na rua e um prédio que ele não construiu desaba. Ele se compadece e continua. Um advogado assiste ao crime e se protege. E continua. Mas nós médicos, se vemos algum mal súbito acontecendo ao nosso redor, seremos sempre médicos. E se mais alguém souber, ainda respondemos por omissão de socorro, negligência, caso não estejamos prontos a atuar. Esse “inconsciente coletivo”, do médico-Deus, onisciente, onipotente, nos atinge, faz todas as cabeças virarem em nossa direçao. Pois entender como prevenir, evitar, reconhecer o risco, e iniciar o atendimento pré-hospitalar, definidor de quem vai viver ou não nos afogamentos, me faz sentir melhor hoje.

Recebo muitas vítimas de afogamento, de todos os níveis. O conhecimento dos protocolos de atuação, desde a praia até a UTI, nos ajuda a falar uma só língua, entender o valor de cada passo, o empenho do guarda vida, a valorização da VIDA!  Quem sempre me impressionou e hoje valorizo ainda mais, é o Guarda-Vidas. PARECE fácil se jogar e tirar alguém da água. Arriscar a propria vida, Karl!  Não tem nada parecido na medicina intra-hospitalar!  Gastar muita energia, muita técnica e muita garra, não tem nada de fácil.  Existem homens (e mulheres) assim. Quem dera existissem coragens, energias, técnicas, GENTES assim, em todas as áreas. Ver e ser parte do mito do Tritão-Sereia, dominar a força do mar por alguns instantes e ver a vida resistindo, lutando, querendo! Isso muda muitas perspectivas.

Vou voltar a nadar amanhã.”

Civil em treinamento

Fotos cedidas pela autora.

Links interessantes

1. Sobrasa Referências, apostilas e aulas.
2. Poseidon Algumas estatísticas nos EUA (em inglês)
3. Drowning No EMedicine. Precisa inscrição (em inglês).