DEK – A Cura

Matteo23.12.05 095

O Homem de Barro (húmus) moldado pelo Cuidado

Já contei sobre o diálogo do clínico com o cirurgião. Nele, está envolvido um dos conceitos de cura na medicina contemporânea. Há outros tantos. Este é o DEK e o verbete cura nos trás de volta à letra C. Outros verbetes podem ser vistos aqui (ou procurando pela tag “DEK”).

Como nos referimos ao estado subsequente a uma moléstia não-fatal? Sem entrar nas complicadas análises ontológicas em relação ao ser da doença e sua nomenclatura específica, podemos dizer que no indivíduo doente são investidas práticas que visam reverter os processos alterados do organismo para que assim se possa restabelecer seu status pré-patológico. Tais práticas, em grego, podem ser agrupadas sob o termo θεραπεία (therapia), utilizado em várias línguas. Em alemão, há o termo Behandlung que contem a palavra “mão” e apesar de poder ser traduzido por “tratamento”, adapta-se melhor ao nosso “manuseio” que é a forma de lidar com certas doenças e inclui várias técnicas e procedimentos da terapia. “Tratamento”, em português, tem a mesma raiz de “tratado” ou “trato” (sm. Do lat. tractus) que significaria “con-trato, ajuste, pacto”. O que não deixa de ser bastante interessante já que ao tratar alguém, o médico também deveria tratar com alguém, sem destratar ninguém. O tratamento é, ou pelo menos poderia ser, um tipo de acordo.

Deixando um pouco de lado o processo pelo qual se reconduz o enfermo de seu estado mórbido para um outro “novamente” saudável, passemos agora a investigar como nos referimos a esse estado de “nova saúde”. Há um processo envolvido nisso. Um ciclo: saúde -> doença -> terapia -> restabelecimento -> saúde de novo. Pra mim, um dos termos que melhor define esse restabelecimento (e também um de meus preferidos) é convalescência. Se não, vejamos, con-valescere é latim e quer dizer “prosperar, ganhar saúde, ficar forte”. Garotos na puberdade “valescem”, crescem, ficam fortes e valorosos. É a mesma raiz de “valete” e de alguns nomes germânicos como Valter e Waldo. Em alemão se diz Genesung, restabelecimento. Portanto, “convalescer” é restabelecer-se, ficar forte de novo. Sarar também é latino (sanare) e descreve igualmente a fase de restabelecimento. Em grego moderno, a palavra utilizada para “cura” é επούλωση (epoulossi) que também quer dizer “cicatrização” ou seja, semelhante ao heal do inglês e ao heilen do alemão. Tanto o termo inglês como o alemão tem a mesma raiz que parece ser proto-germânica *hailjan (cf. saxônico antigo helian, que quer dizer literalmente “fazer-se inteiro”). Daí derivam os termos utilizados nessas línguas para designar saúdeHealth e Gesundheit. A propósito, o nosso “saúde” (Do lat. salusutis; estado de são, salvo) originou também a palavra “saudação” e seus derivados que significam, portanto, “desejar saúde a alguém”; que é exatamente o que fazemos quando cumprimentamos outras pessoas. Isso não deixa de ser um exemplo de como as moléstias podem moldar o comportamento ético dos homens.

Após o indivíduo doente ter-se restabelecido completamente, o que sobra da doença? É o tal “saúde de novo” do esquema acima. Podem restar cicatrizes físicas e não faltarão as espirituais. Esse é o processo de healingheilungepoulossi do qual falamos. Em português utilizamos a palavra cura. A raiz latina parece acrescentar algo mais, dado que cura também quer dizer cuidado, como nos termos curador (jurídico ou artístico), queijo ou peixe curadoscurativo, etc, mas também preocupação, como no ato de velar um enfermo. Sêneca e os estóicos utilizavam o vocábulo μέριμνα (mérimna) para designar esse tipo de “atenção preocupada”. Μérimna vem de merízō, (“dividir”, parte separada do todo) e adquiriu, em sentido figurado, o significado de preocupação, ansiedade, pois uma pessoa nessas condições está dividida entre o agir e a não-ação. Não deixa também de se relacionar com a ideia de “inteireza” que o termo “saúde” evoca. Platão utilizava o termo melete (μελέτη). Melete era uma das 3 musas da Beócia e representava a “ponderação”, a “contemplação”, donde se depreende sua associação com “preocupação”. Este termo originou επιμέλεια (epiméleia): o “cuidado de algo ou alguém”, correspondente à cura latina.

Segundo Irene B. Duarte [1] “o campo semântico de “cuidar” e de “cuidado” guarda, no português atual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, “cuidar” é pensar: atender a, refletir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela”. Como no grego, duas palavras de origens diferentes são necessárias para cobrir esse campo semântico: cura e sollicitudo. Cura evoluiu para “uma acepção predominantemente relacionada ao âmbito da saúde: curar é sanar, tratar de restabelecer a saúde perdida”. Cura provém de quaero (procurar) mas num contexto bem vasto, indo da medicina até a administração (como em cura rerum publicarum) e religião (cura deorum). Sollicitudo, em contrapartida, continua Duarte, emprega-se de maneira mais precisa: é “cuidado” no sentido de “estar movido (citus, part. de ciere, mover) ou comovido por inteiro (sollus)”, isto é, sentir inquietude, pena. É “solícito”, pois, quem se aflige por algo ou alguém. Digamos que em cura parece predominar o “mover-se numa certa direção”, em sollicitudo o “ser movido por” aquilo que nos assalta ou se nos apresenta.”

Em alemão, o termo utilizado é Sorge e aqui cabem algumas considerações filosóficas. Na primeira parte de “Ser e Tempo”, Heidegger dá grande importância ao cuidado como fundamento do ser, como o ser da própria Existência. O homem pertence ao Cuidado, conforme conta a fábula 220 de Higino (ver abaixo), citada por Heidegger no parágrafo 42 de sua obra máxima. Com isso pretende-se, grosso modo, dizer que o homem é marcado por sua abertura ontológica. É uma possibilidade, um vir-a-ser. O homem, enquanto permanecer como ser vivente, é uma tarefa.

Por isso, Cura (ou Cuidado), como diz C. Dünker [2],  “não implica apenas o retorno da saúde, mas também a experiência legada por seu processo, a integração, à história dos envolvidos, da cicatriz formada, dos conselhos recebidos e do sentido do evento … ou sua falta de sentido”. Vista dessa forma, a Cura está, portanto, fora do âmbito do médico. Pertence ao paciente na sua tarefa de si, de recriar-se e de encontrar no processo novas possibilidades de (vir-a-)ser. Tudo o que o médico pode fazer é provocá-la.

 

[1] DUARTE, IB. A fecundidade ontológica da noção de Cuidado. (pdf)

[2] DUNKER, Christian I.L. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica. Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo, Anna Blume, 2011.

 

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Fábula do Cuidado

“Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. O Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter o proibiu e exigiu que fosse dado ao invés disso, seu próprio nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus) reivindicando que o nome fosse o seu, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes resolveram então, tomar Saturno como árbitro. Saturno pronuniou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver.”

Lorraine II

lorraine2Lorraine estava agora com fome. Seu estômago doía porque a última coisa que colocara na boca fora na longínqua madrugada de hoje, antes de sair para o trabalho e sentir-se mal com as tais dores abdominais. Já passava das dez. Perguntei como estavam agora as dores e ela disse que haviam sumido quase completamente. Restava uma dor na região epigástrica, misto de queimação com um tipo de pontada, que poderia muito bem ser interpretada simplesmente como “fome”.

Perguntei sobre seu futuro. Ela me contou que gostaria de cursar a Faculdade de Direito, mas achava que era muito concorrida para ela. Não falou sobre cotas, nem sobre como pagar a mensalidade. Isso ela resolveria com a tia, ou por si mesma. Falou que esperava muita dificuldade com os vestibulares dada a base teórica muito frágil que tinha desde os anos em que cursava a escola pública. O ensino médio não ajudou muito porque, na época, não tinha o prazer de “estudar para conhecer”. Apenas “apagava os incêndios das provas e trabalhos”. Palavras dela. Por tudo isso, pensava em fazer Educação Física para pagar a faculdade de Direito! Apesar de não entender a lógica imediata dessa afirmação, preferi continuar ouvindo sem dizer nada.

Na verdade, percebi que ouvi-la falar me acalmava. Mas acalmar do quê? Ou acalmar o quê? Uma moça que fala sobre suas agruras cotidianas sem queixas piegas ou lugares-comuns, que conta como sua vida é sofrida e difícil mantendo uma distância confortável da emoção dos fatos e que, estóica e elegantemente, tolera cólicas e um desagradável desconforto abdominal durante a narrativa, talvez seja mesmo alguém a quem se deva ouvir. O fato de tudo isso me acalmar é que me deixou um tanto intrigado. Quando um paciente inicia uma narrativa de algum grave problema pessoal o que, convenhamos, na minha profissão não é coisa difícil de surgir em conversas com pacientes, ouço de forma profissional e quando julgo ser importante, procuro caminhos que possam ser úteis tanto para o diagnóstico quanto para o paciente. Aprendi na prática diária a não estimular excessivamente narrativas catárticas sobre catástrofes pessoais e isso tem sido uma boa alternativa. Mas o que ocorria ali era outra coisa. E queria ouvi-la “contar histórias”.

O ultrassom não resultou em nenhuma anormalidade. O laboratório, tampouco. Talvez Lorraine tivesse “apenas” o que chamamos de intestino irritável. Após algumas explicações sobre a doença, eu disse a ela para se conformar já que alguma coisa tinha que ficar irritada na sua vida pois, para ela, os humanos e as coisas do mundo eram como simples produtos que precisavam ser meticulosamente organizados numa gôndola de supermercado. Foi quando rimos juntos pela segunda vez. Pensando bem, acho que essa foi a razão de apreciar tanto ouvi-la. Ao contar as histórias da sua vida, Lorraine parecia também colocar algo em ordem na minha.

Lorraine

lorraineA enfermeira me deu duas fichas de pacientes para atender. Atendi primeiro uma senhora de setenta e cinco anos com náuseas. Resolvi rápido, nada de mais. Depois a chamei. – Lorraine? – Sim, sou eu.

Uma moça de vinte anos de idade, negra, esguia, portando um óculos de lentes grossas respondeu. Os dentes brancos e perfeitos esboçaram um sorriso social. Bonita. Após entrarmos no consultório, comecei a perguntar. O problema era uma diarreia crônica, desde há cinco meses. Teve cinco episódios. Emagreceu cinco quilos. Perguntei se havia alguma relação com a menstruação. Ela pensou um pouco e concluiu que a diarreia vinha aproximadamente uma semana após as regras. Sorriu virando levemente a cabeça mas com os óculos focados em mim. Ela ainda não tinha reparado nesse detalhe e pareceu contente com minha pergunta. Disse que ficava de cama durante o período menstrual, por cólicas e muito sangramento. Perguntei se já havia consultado um ginecologista e ela respondeu que ainda não tinha tido relações sexuais. Ouviu minha argumentação em tom de leve bronca sobre incongruência entre os dois fatos, em silêncio. Disse que ia procurar um, ao final.

Comecei a perguntar mais. Sobre o emprego, estudos, dados familiares e ela foi me contando sobre sua vida com extrema naturalidade. Disse que trabalhava em um supermercado no centro da cidade, organizando as prateleiras de biscoitos e papel higiênico, e que seu salário no contra-cheque era de novecentos reais. Mas, com a infinidade de descontos, recebia um líquido de pouco mais de trezentos. Fez o ensino médio no Colégio Mackenzie porque conseguiu uma bolsa por intermédio da tia, mas que teve muita dificuldade em acompanhar o ritmo da classe. Nessa época, trabalhava no McDonald’s no turno da madrugada. Saía da lanchonete às seis horas da manhã para entrar no colégio às sete. Dormia um pouco na estação de trem. Seu salário então, era de fato novecentos reais, mas ficava muito cansada e também dormia durante as aulas. Um dia a diretora a chamou e disse que dessa forma não seria possível continuar, tinha que escolher entre a escola ou o trabalho. Ela optou pela escola e saiu do emprego, terminando o ensino médio, “aos trancos e barrancos” (sic).

Quando a mãe ficou desempregada, teve que trabalhar novamente e arrumou o tal emprego no supermercado. Mora em Itaquera (extremo da zona leste de São Paulo) e vem de metrô todos os dias para o centro. O metrô é muito lotado e recentemente acabou ficando na “caixa” (afastamento do trabalho por motivos de saúde) porque um rapaz prensou seu joelho direito contra as barras de apoio do trem provocando uma lesão ligamentar. A mãe é divorciada do pai, que não ajuda em casa. Ele ajudava com cento e cinquenta reais mensais mas reclamava muito e ela mesma tomou a iniciativa de fazer um acordo no qual ele foi liberado de ajudá-los logo após completar vinte anos. “Não gosta de homem chorão”. Tem dois irmãos. Um teve problemas com a polícia e esteve preso por alguns meses. Ao sair da prisão, envolveu-se em um acidente motociclístico comprometendo o quadril direito. Agora ele movimenta-se com dificuldade e não trabalha. Ela não gosta muito dele também. “Nunca trabalhou” – primeira frase em tom de queixa que disse desde então. O outro irmão tem depressão e também não trabalha. Ela, portanto, sustenta toda a família com o salário espoliado do supermercado, mas não reclama. Só acha que lhe falta tempo. Inclusive para namorar; e foi quando rimos juntos a primeira vez.

A essa altura, eu me dei conta de que havia esquecido completamente do fato de estar no meio de uma consulta médica. Como quem de súbito fecha um livro envolvente mas leva aquele tempo necessário para livrar-se do universo paralelo criado pelo autor, comecei a me desvencilhar da trama tecida pela Sherazade negra e de óculos e tentei pensar fisiopatologicamente. Solicitei exames e pedi um ultrassom. Receitei-lhe um antiespasmódico intravenoso (sim, toda essa narrativa foi feita sob o jugo de cólicas abdominais). Esperei que ela melhorasse e, depois de disfarçar atendendo mais um ou dois pacientes, sentei-me ao seu lado para “ter certeza de que a medicação estava fazendo efeito”. Eu queria ouvir.

 

(continua)

O Filme

filme2Vou dar só um exemplo, macaco pelado. Só um. Então, agarre-o com as suas mãozinhas glabras e suadas de desespero, com toda a força que puder. Veja só.

Pegue uma boa câmera de filmar. Pode ser celular com câmera também, óbvio. Mas bom. Nossa, como você se prende a detalhes irrelevantes, não? Depois de pegar a câmera, desça pelo elevador e ganhe as ruas. Nas ruas mora o monstro do cotidiano. Mora a vida comum. Nas ruas há vitrines e galerias e é onde está o mundo da vida. Escolha um lugar movimentado qualquer. Ligue a câmera e comece a filmar o que você vê ao seu redor. Filme tudo; vá filmando. Filme os carros, os prédios, as pessoas. Filme-as conversando, paradas ou simplesmente andando. Filme ABSOLUTAMENTE tudo. Até acabar a bateria.

Macaco pelado, você sabe manipular esses aparelhos, não? Sabe sim. Só não sabe muito bem o que fazer com eles, mas vou lhe dizer. Chegue em casa e passe o que você filmou para o computador. Assista. Passe horas, dias, assistindo até quando não aguentar mais ver o filme e me responda com toda a sinceridade – sinceridade com a qual você normalmente não está acostumado a lidar – me responda, macaquinho pelado – à pergunta que farei e que sei, sim, que é a pergunta que você mais teme que eu faça. Na verdade, é a pergunta que você luta para não se fazer!

Pobre macaco pelado… Não vou poupá-lo porque você tem andado meio arrogante nos últimos tempos, viu? É isso mesmo. Então lá vai. Depois de ter filmado tudo o que podia lá fora – no mundo da vida – depois de ter visto esse filme várias e várias vezes, me diga macaco pelado, qual é o sentido desse filme que você acabou de fazer e que viu tantas vezes? Qual é, diz? NENHUM?! Como assim? Mas você filmou o mundo REAL, coisas REAIS, pessoas REAIS, com uma câmera boa, não foi? O que foi que você captou, então? Não foi a REALIDADE? Por que isso tudo não faz sentido, macaco? Será que a realidade não faz sentido?

Nenhum sentido. A  r e a l i d a d e  n ã o  f a z  n e n h u m  s e n t i d o. Descrever a realidade o mais fielmente possível NÃO GARANTE que haja sentido! Explicar é diferente de compreender. Por melhor que seja a câmera, por mais tempo que se filme, por mais longe que se vá, ainda assim, nada fará sentido.

Essa é a sua Ciência, macaco pelado. Uma câmera. Cuidado com os filmes que você faz e principalmente com os que você vê. Agora, quer saber um jeito de como dar algum sentido para as coisas que você filma? Quer sim, eu sei. É fácil. Da próxima vez, conte uma história. Não precisa nem de câmera. Esse é o exemplo. Sacou?