Certezas Médicas II

No primeiro post da série,  procurávamos por exemplos que tipificassem o fato de que “certezas” muitas vezes não são conseguidas apenas com argumentos de uma racionalidade, digamos, linear. Discutimos as limitações em detectar “certezas” nas pessoas e que elas, principalmente no que tange à profissão médica, têm a ver com condutas, ações ou tomadas de decisões, talvez a única forma de saber que existem na cabeça de outrem, por mais falha que seja este tipo de metodologia.

De qualquer forma, buscávamos um exemplo de conduta, ação ou decisão médica que não fosse embasada, por assim dizer, “cientificamente” e que ainda fizesse parte do repertório médico atual. Em tempos de medicina baseada em evidências, protocolos, diretrizes, e tantas outras interferências – algumas das quais, bastante positivas, diria – não seria mesmo fácil encontrá-lo. A medicina é uma profissão fortemente embasada em conceitos científicos mas, acho que tenho um exemplo.

http://www.meb.uni-bonn.de/cancer.gov/Media/CDR0000415499.jpgO câncer colorretal é uma das doenças mais prevalentes no Brasil. Está em quarto lugar para ambos os sexos e em 2002, o Datasus aponta o número de 8.772 brasileiros mortos pela doença e suas complicações. Sendo assim, o número de cirurgias para extração desses tumores é cada vez maior. De fato, centenas de milhares de colectomias, hemicolectomias e instrumentações dos cólons, sigmóide, reto e canal anal são realizadas anualmente no Brasil. O preparo para essas cirurgias inclui a limpeza mecânica dos cólons.

O raciocínio é simples: O cólon é “sujo” porque tem fezes em seu interior. As fezes têm uma população bacteriana muito grande. Em 1,0 g de fezes há aproximadamente 100000000000000 bactérias (10 elevado a 14!). Bactérias causam infecção. Logo, o cólon deve ser limpo antes da operação! São utilizadas medicações laxativas extremamente potentes para isso e quem já fez um preparo para colonoscopia sabe do que eu estou falando. Esse tipo de preparo, não infrequentemente, causa uma depleção de eletrólitos e líquidos no organismo, fazendo com que o paciente vá para cirurgia em condições não ideais. Por isso, foi feita a pergunta: será que o preparo de cólon é imprescindível?

Bucher publicou em 2004 no Archives of Surgery uma metanálise com 7 ensaios clínicos randomizados contabilizando um total de 1297 pacientes. Não houve diferença entre os que fizeram preparo mecânico dos cólons e os que não fizeram o procedimento. Em 2007 no Lancet – uma das principais revistas médicas – foi publicado um grande ensaio clínico com 1354 pacientes; 670 com preparo vs. 684 sem preparo. A conclusão dos autores é curta e grossa: “We advise that mechanical bowel preparation before elective colorectal surgery can safely be abandoned“. No Brasil já temos dados. Em 2009, Aguilar-Nascimento publicou uma série de pacientes 53 pacientes na Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgia e também não encontrou diferenças entre o grupo com e sem preparo no que se refere à mortalidade e aparecimento de complicações pós-operatórias. A conclusão de todos esses estudos é que há evidências científicas suficientes para se abandonar o procedimento de limpeza mecânica do cólon como preparo para cirurgia.

A pergunta que se faz então é: Por que o procedimento continua a ser realizado? A resposta que invariavelmente recebo é “bom senso”. “Por que operar uma víscera cheia de fezes se posso operá-la limpinha? O risco de contaminação grosseira é menor”. Não é! É igual. O que é menor é a chance do paciente apresentar distúrbios hidroeletrolíticos e desidratação no pós-operatório. Por que, então, o procedimento não é abandonado? Talvez a resposta esteja em outro tipo de raciocínio, como veremos no próximo post da série.

Referências

1) Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a meta-analysis. Bucher P, Mermillod B, Gervaz P, Morel P. Arch Surg. 2004 Dec;139(12):1359-64; discussion 1365. PMID: 15611462 [PubMed – indexed for MEDLINE]. Texto integral livre.
2) Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a multicentre randomised trial. Contant CM, Hop WC, van’t Sant HP, Oostvogel HJ, Smeets HJ, Stassen LP, Neijenhuis PA, Idenburg FJ, Dijkhuis CM, Heres P, van Tets WF, Gerritsen JJ, Weidema WF. Lancet. 2007 Dec 22;370(9605):2112-7. Erratum in: Lancet. 2008 May 17;371(9625):1664. PMID: 18156032 [PubMed – indexed for MEDLINE].
3) AGUILAR-NASCIMENTO, José Eduardo de et al. Abordagem multimodal em cirurgia colorretal sem preparo mecânico de cólon. []. , 36, 3 [2009-08-30], pp. 204-209 . : Link. Texto integral livre.
Bucher P, Mermillod B, Gervaz P, & Morel P (2004). Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a meta-analysis. Archives of surgery (Chicago, Ill. : 1960), 139 (12) PMID: 15611462
ResearchBlogging.org

Pondé x Dawkins

Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé não é, propriamente, o que poderíamos chamar de agnóstico ou mesmo ateu. Que dizer de um homem que é coordenador geral de um Seminário e de um núcleo de estudos chamado NEMES – Núcleo de Estudos em Mística e Santidade – na PUC? Além disso, tem linhas de pesquisa em pensamento conservador, mística medieval e ciências da religião. Também por isso, não se pode dizer que não é um estudioso de um assunto que, para dizer o menos, “move montanhas”.

Pois, o que diria esse homem sobre o best-seller de Dawkins “Deus, Um Delírio” ? Foi exatamente esse o teor de uma entrevista dada a uma instituição de ensino ligada à igreja católica. Resolvi postar sobre a entrevista porque Pondé repete com os jargões do “lado de lá”, algumas das ideias que temos avançado no Ecce Medicus. Apesar de não concordar com tudo, principalmente algumas generalizações rasas – que considerei “licenças”, pois ele se sentia “em casa” – vamos ao que se pode aproveitar.

Em primeiro lugar, para Pondé, a dicotomia Deus x Ciência ou Esclarecimento x Escuridão só tem lugar dentro de uma utopia racionalista moderna na qual, razão é definida como “relação de causa-efeito empiricamente perceptível e suas funções instrumentais”. Não considerar outros tipos de racionalidade, seja metafísica ou não, é empobrecer o conceito lato de razão, a ponto de ele necessitar uma teoria de libertação (“saída do armário”) e, consequente busca de felicidade pela via científica, causa abraçada por Dawkins. Para Pondé: “Esse livro de Dawkins é uma auto-ajuda para ateus inseguros”. Outra dicotomia abordada é “fé x razão”. Ele diz: “Não há oposição entre fé e razão. Há uma relação de trabalho entre elas, ainda mais porque são centros de atividade do mesmo animal, o ser humano.”

Ao fazer uma análise política do livro de Dawkins – quando diz que Dawkins tenta convencer uma neo-esquerda que mistura iluminismo anti-clerical com foucaultismo de minorias oprimidas -, Pondé revive a discussão pós-metafísica e pós-moderna de como buscar o bem-estar e a felicidade e, também, da transmutação do desejo. Citando Chesterton ele diz: “não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que se acaba sempre acreditando em alguma besteira, como por exemplo, no bem-estar da humanidade”. Pensamento utilitário que ele mesmo critica na entrevista.

Como teísta que é, não resiste à tentação de, ao contrapor a crença em Deus a uma atitude antropocêntrica, em afirmar que “filosoficamente, o antropocentrismo é simples empobrecimento epistêmico, Deus é o melhor de todos os conceitos, e o contato com Ele nos torna mais inteligentes”. Reduz então, o antropocentrismo a “mania de políticas públicas + publicidade auto-ajuda”.

Eu diria que sim, o antropocentrismo é mesmo empobrecimento epistêmico. Trocar Deus pelo Homem, como fez Feuerbach, não resolve o problema. Daí, seu elogio às filosofias trágicas de Nietzsche e Rosset: únicas a combater o deus disfarçado em ciência, natureza e no próprio homem. Sim, é preciso matar Deus. Apenas autopsiá-lo enquanto ainda “vivo”, não será suficiente. É isso que Pondé combate, que Dawkins não vê e que pode ser chamado trágico.

As Certezas Médicas

Outro dia, conversávamos, eu e meu amigo Kretinas, sobre os mecanismos geradores de certeza. Recomendo a leitura dos dois posts e também dos comentários para que se acompanhe o raciocínio desenvolvido neste.

Qual é o principal mecanismo gerador de certeza de um médico? Melhor, o que faz um médico se convencer de que determinado procedimento deve ser realizado ou não? Dois elementos principais: o primeiro é sua própria experiência; o segundo, a experiência dos outros. O paradigma tradicional era baseado na experiência do médico, no número de casos acumulados durante a vida e na conduta do professor, que era quem trazia informações novas de outros serviços ou de congressos internacionais. O paradigma atual é a literatura médica e a metodologia desenvolvida para avaliá-la criticamente: a medicina baseada em evidências. Ensaios clínicos randomizados (ou aleatorizados) com grande número de pacientes são o modelo para demonstração do efeito de tratamentos experimentais. As metanálises são, grosso modo, conjuntos de ensaios clínicos com tratamento estatístico, de modo a multiplicar o poder para responder perguntas relevantes. Metanálises e ensaios clínicos embasam normas que serão reunidas em diretrizes. Uma diretriz pretende ser um conjunto de normas para tratar uma doença ou situação clínica. Nem todas as normas de uma diretriz têm embasamento suficiente de acordo com o modelo atual, baseado em metanálises e ensaios clínicos, por isso foram atribuídas notas aos graus de “evidência” que embasam determinada norma e as maiores notas são para os dois tipos de estudos descritos acima. A experiência individual dos médicos tem nivel bastante inferior de acordo com esse sistema de classificação.

Voltemos à conversa do início. Um dos pontos defendidos no meu post é de que uma “certeza” é um estado psíquico e, sendo assim, só pode ser avaliada criticamente por quem a possui. Dizia que esse talvez fosse o paradoxo do ceticismo: se os céticos não tem as certezas para que possam criticá-las, os crédulos que as possuem, não querem fazê-lo. Em seu post, Kretinas critica minha postura racionalista, mas rebato com o que os médicos têm de mais peculiar em relação aos filósofos: a prática. Um médico tem, deve, precisa tomar decisões a todo momento. Mesmo que se tome decisões sem a certeza absoluta de que é isso o melhor a ser feito no momento — e essa situação ocorre muito mais frequentemente do que seria desejável –, o mero fato de que a decisão tenha sido tomada, indica um viés de certeza sobre determinado assunto ou situação, viés que deve, no médico honesto, estar amalgamado com intuição e com grandes doses de literatura médica, sob a pena de virar um exercício de palpites, no caso inverso.

Críticas há, sobre esse tipo de metodologia. Um exemplo já foi sugerido. O de que algumas decisões não são tomadas “com certeza”, mas muito mais pela necessidade de agir. Outra crítica seria a de que nem toda certeza se manifestaria diretamente na forma de uma decisão ou ato externos. De qualquer forma, convenhamos que para um médico “abrir a barriga” de alguém ou prescrever uma medicação que tem efeitos colaterais, algum grau de certeza ele deve ter ou então, seria um irresponsável. Isto é suficiente para essa análise. Se a medicina é uma profissão fortemente baseada na ciência médica – mas não reduzida à ela, como canso de repetir – uma abordagem como a “medicina baseada em evidências” deveria ser suficiente para, se não “convencer”, pelo menos deixar bastante propenso qualquer médico a adotar (ou abandonar) determinada conduta.

Preciso então, de ao menos um exemplo no qual uma conduta médica vá contra as evidências científicas para mostrar que uma certeza — pelo menos as certezas médicas — não dependem de uma racionalidade imediata que liga diretamente o raciocínio lógico ao ato. Um exemplo para mostrar que entre a conclusão lógica e a “certeza” há um universo – provavelmente afetivo, na falta de um termo mais adequado – que adiciona um fator de imprevisibilidade à certeza e que, sendo esta necessária à decisão, gera, digamos, um “frio na barriga”. Só um exemplo para mostrar que a “certeza” talvez seja simplesmente um sentimento demasiado humano.

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O Médico e o Especialista

Ao avaliar pacientes internados, invariavelmente com alguma(s) doença(s) complexa(s), sou frequentemente intimado a responder a seguinte questão: “Doutor, o senhor não acha melhor chamar o especialista?”. Muitas vezes, no caso, o especialista sou eu mesmo. Outras tantas, não. Há sempre um especialista que pode ser chamado em uma situação de estresse e perigo de morte. Quando o cenário permite, respondo com outra indagação: “E qual pergunta você gostaria que ele respondesse?” As respostas são muito variáveis, mas a maioria se sai com o seguinte raciocínio circular: “Só gostaria de ouvir a opinião de um especialista”.

Antes de mais nada, vamos combinar o significado de alguns termos. Em primeiro lugar, “médico” é o profissional que está cuidando de um determinado paciente (e que obviamente, tem uma licença reconhecida para exercer esse ofício). Esse médico pode ter qualquer “especialidade” seja clínico, cirurgião ou pediatra. “Especialista” é um outro médico, especializado em algum orgão ou, o que frequentemente vem ocorrendo, em alguma doença, que é chamado a dar um parecer sobre um determinado caso. A diferença entre o “médico” e o “especialista” não é a simples diferença entre a “extensão” e a “profundidade”, respectivamente, como querem alguns com a analogia oceânica do conhecimento. Nem tampouco o velho chavão de que o “médico” é o responsável pelo doente e o “especialista”, o responsável pela doença, captaria a totalidade desse encontro. Talvez, essa sutil diferença seja melhor expressa pela dúvida que sempre gira em torno de casos difíceis. É na dúvida que se diferencia o “médico” do “especialista”. O “médico” convive com a dúvida caso veja nisso um benefício ao paciente. O “especialista” quando chamado a opinar sobre um caso que pode ter uma doença que é objeto de seu estudo, não pode tolerar a dúvida. O “médico” pensa em conceitos vagos como qualidade de vida, conforto, convivência com a família. Incansavelmente, o “especialista” procurará excluir ou “incluir” sua doença de modo a definir o que deve ser feito com o paciente. O “olhar” é diferente.

A primeira pergunta do post pode sugerir uma ideia de complementaridade que seria, como de fato muitas vezes o é, benéfica ao pobre paciente. Mas, quando é que esse poço de boas intenções pode dar totalmente errado, colocando o paciente em muito mais risco? A resposta é: quando se confundem os papéis. Um “especialista” deve ser chamado para responder a uma pergunta específica. Não convém ser convocado a dar “uma olhada” ou dar um palpite sobre o paciente. Em situações assim, a opinião de um especialista pode ser desastrosa em termos de exames, custos e sofrimento ao paciente. Por outro lado, há “médicos” que acham que podem dar conta de tudo e atrasam tratamentos, confundem situações ou tratam de maneira obsoleta alguma patologia, também causando prejuízo ao paciente.

Tenho visto pacientes internados com várias equipes médicas a assisti-los, a grande maioria, “especialistas”. De maneira geral, quando a figura do “médico” não existe (ou é fraca), a coisa se complica. Aqui, além de quantidade não ser qualidade, pode ser ainda sinônimo de perigo.

Climatério e Evolução

A fêmea da espécie humana sobrevive longamente após encerrar suas atividades reprodutivas. Aliás, sobrevive mais que qualquer outra fêmea de outras espécies (para desespero de alguns genros!). Uma das teorias para explicar esse fenômeno foi lançada há alguns anos: A “hipótese da avó”. Ela sugere que uma determinada prole teria mais chance de sobreviver caso a avó materna estivesse viva, pois poderia dividir o trabalho de cuidar dos pequenos, além de passar o know-how disso para a jovem e inexperiente mãe. Com o indelével passar dos milhares de anos, as meninas tenderiam a viver mais após o período fértil, tornando-se uma característica de nossas fêmeas.

Independentemente dessa teoria dar conta da explicação de todo o fenômeno, há um fato: as mulheres vivem mesmo muito anos após seu período fértil. Mesmo ajustando essa observação à expectativa média de vida (pouco mais de 30 anos) da época. Como toda solução encontrada pelas espécies, esse fato tem seu lado bom (permitiu que chegássemos até aqui) e o lado ruim. O lado ruim é o climatério.

O climatério é o período que antecede a última menstruação (menopausa) até aproximadamente 12 meses após. Algumas pacientes o definem como “a pior fase de toda a vida”. Além das alterações orgânicas, calores absurdos, dores de cabeça sem sentido, insônia e variações de humor, há enfraquecimento ósseo, aterosclerose, alterações cognitivas, disfunção sexual e uma constelação de problemas menos graves mas não menos importantes, que fazem com que a mulher nessa fase seja um desafio terapêutico dos grandes. Um dos mais intrigantes problemas é o rubor/fogacho facial do qual já falamos em outra situação clínica (aqui e aqui).

Os fogachos podem ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite e podem ser ocasionados por uma variedade de estímulos a saber, estresse, álcool, café, mudanças bruscas de temperatura entre outros. A sensação subjetiva é a de aquecimento seguida de sudorese e vermelhidão na pele. Pode haver palpitações. Começa na parte superior do corpo e espalha-se de maneira variável. Duram de 30 s a 60 min com uma média de 3 a 4 min. Muitas referem uma “pressão na cabeça”. Podem permanecer por 1 a 5 anos, mas há relatos de calores por 40 anos. É um sintoma debilitante. Impede a pessoa de dormir adequadamente por meses a fio o que gera mais ansiedade, queda de desempenho e depressão.

Mecanismos

O fogacho é o resultado de um distúrbio do sistema de regulação de temperatura do organismo. Entretanto, dentre os homeotérmicos, a fêmea humana parece ser a única a apresentar esse distúrbio apesar de modelos animais em ratos e primatas terem sido desenvolvidos. Alterações de temperatura de fato ocorrem e podem ser demonstradas por meio da termografia. Por exemplo, a temperatura nos dedos das mão e dos pés chega a variar entre 20 a 33 ◦C. Como resultado do aumento da temperatura na periferia, há uma diminuição na temperatura central que pode ser medida por meio da temperatura retal e timpânica. A sensação maior entretanto, é mesmo na região cervical e facial apesar das variações de temperatura serem bem menores – em torno de 1◦C. Esse aumento de temperatura é causado por intensa vasodilatação local. O papel dos estrógenos na geração dos fogachos ainda não está bem estabelecido apesar de sabermos que mesmo doses baixas são eficazes em eliminá-los. A explicação mais interessante foi dada por Robert Freedman que utilizou o conceito de zona termoneutra. Em uma mulher normal e assintomática a zona termoneutra é de 0,4 ◦C. Isso significa que variações dentro desse intervalo não gerarão nenhum tipo de resposta para autorregular a temperatura. Esses reflexos são integrados no hipotálamo. A supressão repentina do estrógeno ao qual o hipotálamo esteve “acostumado”, aumentaria sua sensibilidade e mesmo variações dentro do intervalo normal desencadeariam respostas termorregulatórias. O que a hipótese não explica é que as mulheres com fogachos não têm calafrios em ambientes mais frescos sugerindo que a explicação só serviria para um dos limites da curva.

Evolução

Hormonal ShiftsUma das perguntas evolutivas que subjaz a toda essa complexidade seria sobre qual a relação que hormônios sexuais teriam com a regulação da temperatura? Uma possível resposta seria a ovulação. A ovulação é um fenômeno altamente dependente da temperatura. Em animais pecilotérmicos, a temperatura do ambiente é crucial para a sobrevivência dos ovos fecundados cujo exemplo clássico são os peixes. O gráfico ao lado mostra como a temperatura corporal da mulher sobe no momento da ovulação, fenômeno que já foi utilizado para monitorar o período fértil com resultados conflitantes. Hormônios sexuais têm influência sobre a termogênese apesar dos mecanismos não terem sido completamente elucidados.

Ficam então, as perguntas: Seriam os incômodos fogachos das mulheres recém-menopausadas, resquícios de um imprinting hipotalâmico pelos hormônios sexuais com fins reprodutivos? Seria o climatério, ao menos no que se refere a alteração da regulação da temperatura corporal, um “fóssil fisiológico” desenterrado pela estranha sobrevida prolongada pós-fértil da fêmea humana? Talvez seja esse o preço a pagar pela longevidade. Talvez seja esse o preço para ver crescer os netos.

Fontes
1. Sturdee DW. The menopausal hot flush–Anything new? Maturitas 60 (2008) 42-49.
2. Hampl R et al. Steroids and Thermogenesis. Physiol. Res. 55: 123-131, 2006.

Marketing Genérico?

http://todaysseniorsnetwork.com/Prescription%20pills,%20medicines,%20medication.jpgOs medicamentos genéricos foram uma evolução importante na terapêutica moderna. Muito do que se paga por uma medicação é fruto de pesquisa e desenvolvimento – o chamado P&D -, mas muito do custo é devido ao marketing, que são os custos da comercialização, veiculação e inserção do medicamento no mercado supercompetitivo da BigPharma. A ideia é que se você tem um medicamento sem nenhum marketing, pelo menos o custo disso poderia ser abatido do valor final do remédio. No Brasil, e em muitos países do mundo, os genéricos têm que passar por estudos que mostrem equivalência com os chamados medicamentos-índice. Esses estudos custam caro – essa, uma das razões do genérico normalmente ser mais caro (e mais confiável, teoricamente) que o similar, que não passa por esses testes.

Além disso, está havendo uma competição de genéricos. Várias indústrias produzem o mesmo medicamento e têm autorização para comercializá-los. O médico prescreve o sal. Como decidir entre uma marca de genérico e outra? Propaganda leiga?! De alguma forma, será que esse tipo de publicidade não é repassado para o produto? Daí a pergunta:

Você é a favor da propaganda de medicamentos genéricos ?

O Cobre e a Menina

Eu era residente, dentre os leitos dos quais era responsável na enfermaria de Clínica Médica, havia uma vaga. Isso significava encrenca. Ou os médicos do staff vinham solicitar alguma internação vip, ou o pronto-socorro queria subir algum paciente grave, o que, de qualquer forma, era igual a muito trabalho.

Peguei meu interno (estudante do 5o ano da faculdade de medicina) e fomos dar uma olhada no pronto-socorro antes que alguém soubesse da existência da vaga. Lá encontramos uma menina de 14 anos bastante ictérica. Os médicos do PS não tinham ideia do que poderia ser. Sabiam apenas que não era um caso para cirurgia. Fiquei bastante intrigado com o caso e resolvemos interná-la.

Na enfermaria, a história dela era muito peculiar. Veio ao hospital proveniente do interior da Bahia porque estava com medo de acabar como a irmã. “Como assim?” Tinha uma irmã que morreu amarela, urinando escuro e gritando, isso aos 16 anos. Agora que ela tinha ficado amarela, tinha medo de enlouquecer também. Fiquei preocupado. Disparamos a “cavar” os exames de laboratório e imagem dentro de um raciocínio que contemplasse o diagnóstico de insuficiência hepática, que era o cabível pelo seu quadro clínico.

Seu estado piorou rapidamente. Ficou sonolenta no dia seguinte. Hematomas começaram a aparecer nos locais de punção venosa. A icterícia piorou. Sua urina ficou bastante colúrica (cor de coca-cola). No outro dia ela ficou agitada, tendo de ser restrita ao leito. Confusa, não obedecia a qualquer tipo de ordem e começou a gritar… Ficamos 24 horas por dia monitorando tudo e correndo com exames e procedimentos. Morreu dois dias depois sem que pudéssemos fazer absolutamente nada.

Os exames colhidos revelaram uma ceruloplasmina muito baixa e um cobre sérico de 225 mcg/dL (normal < 15). A menina tinha uma forma fulminante da Doença de Wilson de característica hereditária, autossômica recessiva, provavelmente a mesma que levou sua irmã anos antes. A única possibilidade era um transplante hepático que não era realizado de rotina no hospital àquela época.

Só no ano de 2009, até julho mais de 200 transplantes hepáticos foram realizados na cidade de São Paulo. Em especial um, era muito parecido com o da menina.