O Desdiagnóstico
Em determinados pacientes, saber qual é a doença e tratá-la corretamente pode ser menos importante que saber quais doenças não se deve considerar, pois o custo para excluí-las – e aqui entenda-se não só o aspecto econômico, como também o custo individual do paciente, traduzido na forma de sofrimento físico e psicológico – não tem uma relação favorável com o benefício que o diagnóstico pode trazer. Muitos diagnósticos são, atualmente, tecnologicamente constituídos. Por exemplo, no caso da embolia de pulmão, um exame de sangue (d-dímero) e uma tomografia são muito mais valorizados que a história clínica do paciente. Não são infrequentes diagnósticos errôneos de embolia pulmonar com consequências sérias pois os pacientes necessitam de anticoagulação. De que forma um médico pode discordar de uma tomografia? Esse talvez seja um dos papéis do médico diagnosticador contemporâneo.
Seu papel atual seria também DESDIAGNOSTICAR.
Para o médico, o diagnóstico é um constructo, mais que apenas um rótulo, é um discurso, ou uma formação discursiva. Diagnosticar é, antes de mais nada, elaborar um discurso sobre o paciente. Discurso esse que deve seguir as normas da lógica, ter uma sequência temporal coerente e ser adequado à matriz científica vigente. É muito interessante observar em discussões clínicas como médicos diferentes elaboram discursos diferentes sobre o mesmo paciente e até sobre os mesmos aspectos de sua doença. O discurso acopla-se a uma realidade quando um determinado tratamento baseado nele foi eficaz. O discurso é ele mesmo tão vivo quanto o paciente, ora valorizando, ora minimizando determinados aspectos, acrescentando ou suprimindo eventos de acordo com o que se quer demonstrar. Por isso, desconstruí-lo não é tarefa simples. É um preciso um tipo especial de médico. Um profissional que não se presta a ficar preso a exames, que para ele, são subsidiários.
Quantos médicos conhecemos hoje em dia que seriam capazes de desprezar o laudo de uma tomografia computadorizada por não coincidir com seu julgamento clínico?
O Médico Diagnosticador
Durante muitos anos, a figura do médico diagnosticador foi de fundamental importância para a Medicina. Ele desvendava o mistério da doença do paciente através da história clínica e do exame físico, necessitando mesmo de quase nenhum exame confirmatório. Pouco a pouco, o diagnóstico passou a ter o auxílio cada vez mais presente da tecnologia. Mas, paradoxalmente, o diagnóstico não se tornou mais fácil. Pelo contrário, houve uma proliferação de conceitos na tentativa de entender a revolução que se processou: incidentalomas (nódulos encontrados em exames solicitados por outra razão), achados laboratoriais de significado duvidoso, pseudo-doenças e a necessidade de redefinição do que era considerado normal. O conhecimento “progrediu” e incorporou a tecnologia em fluxogramas de raciocínio clínico – os algoritmos – de modo a “facilitar” o uso das novas tecnologias para diagnóstico que proliferaram, principalmente após a descoberta do uso clínico dos raios-X por Wilhelm Roentgen.
O médico diagnosticador ficou domesticado dentro de esquemas de raciocínio e subjugado por enormes e sofisticadas máquinas que cortam o corpo humano sob todos os eixos e o reconstroem em imagens tridimensionais, fazendo ver o que não se vê. Ficou refém de exames específicos e sensíveis tendo de escolher entre o raciocínio estatístico e o fisiopatológico de sua formação original. Talvez daí provenha uma das razões do sucesso da série House: seu confronto (e até desprezo) frente a tecnologia médica e ao saber comum da medicina.
A tecnologia não só permite o diagnóstico como vai mais além: constitui o próprio conceito de doença . Há doenças forjadas dentro de um ambiente totalmente tecnológico. Mas ainda surge outro problema. Se se pode diagnosticar doenças que ainda não se manifestaram, então que exames realizar no paciente que se diz são? Forças-tarefa em vários países esforçam-se em responder a pergunta laica: que doenças ocultas podemos diagnosticar a tempo? O exame clínico não mais basta. Pior, a opinião médica não basta. O próprio paciente indica o exame complementar. Trafega de médico em médico até conseguir a solicitação do exame que lhe acalma. É uma solicitação de seu círculo familiar, de amigos ou até de médicos amigos, em suma, da própria sociedade na qual a tecnociência é a ideologia.
Neste quadro, qual seria o papel do médico diagnosticador?
House, Holmes, Bell, Shore e Doyle
Vem fazendo sucesso a série médica House M.D. (no Brasil, simplesmente House exibida pelo canal pago da Universal). Criada por David Shore para a Fox, a série tem como ator principal o britânico Hugh Laurie interpretando o protagonista Gregory House e, há quase 4 anos em cartaz, já angariou prêmios importantes. Dr. House é infectologista e nefrologista e tem como principal característica o fato de elaborar diagnósticos bastante difíceis. Além disso, é portador de um grande mau-humor e cinismo praticamente incompatíveis com a profissão médica, preferindo interagir com seus pacientes por intermédio de seus residentes. O autor tem em Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle a fonte inspiradora do personagem principal, inclusive no trocadilho do nome . Doyle era ele próprio médico e nunca escondeu que seu personagem mais famoso foi, por sua vez, inspirado em seu professor na Universidade de Edimburgo: Dr. Joseph Bell. Bell era considerado um mágico por seus alunos. Capaz de diagnosticar pacientes no momento de sua entrada no consultório, também fornecia dados epidemiológicos e falava com exatidão sobre suas vidas pessoais antes mesmo que os espantados pacientes sequer abrissem a boca. Mas por que médicos assim ainda chamam tanto a atenção do público e da mídia em geral?