Dual Processing – O Público e o Privado

Parece realmente haver 2 formas de pensar, segundo os psicólogos abaixo:
“Psychologists from various persuasions have proposed two fundamentally different modes of processing information:
– one that has been variously referred to as intuitive (Jung, 1964/1968), natural (Tversky & Kahneman, 1983), automatic (Bargh, 1989; Higgins, 1989), heuristic (Chaiken, 1980; Fiske & Taylor, 1991; Tversky & Kahneman, 1983), schematic (Leventhal, 1984), prototypical (Rosch, 1983), narrative (Bruner, 1986), implicit (Weinberger & McCleUand, 1991), imagistic-nonverbal (Bucci, 1985; Paivio, 1986), experiential ( Epstein, 1983 ), mythos (Labouvie-Vief, 1990), and first-signal system (Pavlov, cited in Luria, 1961 ) and,
– the other as thinking-conceptual-logical (Buck, 1985; Leventhal, 1984; Jung, 1964/1968 ), analytical-rational (Epstein, 1983), deliberative-effortful-intentional-systematic (Bargh, 1989; Chaiken,1980; Higgins, 1989), explicit (Weinberger & McClelland,1991), extensional (Tversky & Kahneman, 1983), verbal (Bucci, 1985; Paivio, 1986), logos (Labouvie-Vief, 1990), and second-signal system (Pavlov, cited in Luria, 1961).”
Intuitivo, natural, automático em oposição a lógico-conceitual, analítico-racional, sistemático. A Razão Médica não é diferente. Uma decisão médica envolve um saber técnico-empírico e um juízo clínico global. (Sobre a divisão técnica/empírica do saber técnico-empírico, ver também este post). O conhecimento técnico-empírico é um conhecimento nomotético: busca leis e regras gerais, se utiliza da Lógica e do senso-comum. É teórico, transmissível, objetivo e público.
O juízo clínico global é um tipo de conhecimento idiográfico, individual, específico. Conta com a intuição e experiência pessoal. Por ser prático é difícil de transmitir. É subjetivo e privado.
Como médicos, qual tipo de processamento mais utilizamos? Podemos utilizar um processamento duplo? Eles trabalham em conjunto ou em oposição? Podemos confundir o público com o privado?

Nós, tecnocratas?

O termo “tecnocracia” foi criado nos EUA em 1919 mas só ficou conhecido após um movimento que ganhou considerável notoriedade. Começou com um grupo de técnicos e engenheiros dedicados à reforma social. Influenciados por conceitos provenientes da república tecnológica de Edward Bellamy na novela Looking Backward, pelas teorias econômicas de Thorstein Veblen e pelos princípios científicos de gerenciamento de Frederick W. Taylor, que sugeriam que políticos e empresários abdicassem em detrimento a elites de especialistas, o objetivo era abolir políticos corruptos, melhorar um sistema econômico obsoleto e expandir a racionalidade técnica e administrativa.
Posteriormente, Habermas classificou as sociedades ocidentais contemporâneas quanto sua relação com a ciência em decisionais, aquelas em que os políticos mandam e os outros obedecem; pragmáticas, aquelas em que os políticos se aconselham com especialistas e tomam as decisões; e tecnocráticas, aquelas em que os especialistas tomam as decisões.
Para onde pende o fiel da sociedade médica? Obedecemos a uma ordem tecnocrática? Quem são os técnicos/especialistas? Quem detém o expertise das tomadas de decisões? Por fim, obedecemos ou somos obedecidos?
Respostas para um médico extemporâneo….

A Complexidade do Conceito de Doença


Por que o conceito de doença é importante para um clínico? Normalmente, os médicos não estão preocupados se o conceito de doença que utilizam é ontológico ou fisiológico, normativo ou descritivo. O que é importante e o que tem sido amplamente discutido é o bombardeio de questões provenientes de pacientes, da mídia, de setores da medicina alternativa e até de outros médicos sobre as bases do raciocínio clínico – cujo ponto de partida é o conceito de saúde e de doença. A crítica principal normalmente gira em torno da medicalização da Medicina e a sua contrapartida teórica: a patologização do curável, nos quais o conceito contemporâneo de doença é altamente implicado.
Sobre isso, segue um excerto do trabalho de Bjorn Hofmann (para o texto completo clique aqui):
“I have argued here that the debate on the concept of disease is complex, and that this complexity can be recognised in the theoretical frameworks of the debate. The profound philosophical issues underlying the debate illustrate the complexity of the concept. That is, the complexity of the concept is displayed by the complexity of the categories of the debate. There is something outstanding to the concept of disease generating logical, ontological, epistemological and normative challenges. The concept appears to be irreducible to a particular perspective or a monistic conception. Even if we could answer the question of the ontological status of instances of disease, its classificatory and normative issues would not be resolved. Correspondingly, if we cleared the evaluative status of disease, the ontological, semantical and epistemological issues would still be open. These issues seem not to be inter-reducible. However, is this only a theoretical complexity? People are actually treated in the health care system without there being any reflections of this kind. Are the challenges only of an abstract kind? The complexity in the theoretical frameworks appears to be more than a mere academic issue, and it is reflected in medical practice. Whether pregnancy, excellence, infertility, whiplash, or a general feeling of incompetence are cases of disease are practical issues, and even the status of homosexuality as a disease has been a topic in clinical practice until recently. Furthermore, the classification of disease entities is a great challenge to modern medicine. A strict and consistent concept of disease, be it theoretical or practical, should result in a strict and consistent taxonomy, which obviously is not the case. Disease entities are classified according to symptoms, syndromes, physical signs, paraclinical signs, abnormalities of morphology, physiological aberrations, genetic abnormalities, ultrastructural abnormalities, etiological agents and according to eponymal origin. Hence, the theoretical complexity discussed in this study corresponds to a practical complexity, and as far as the conceptual debate on disease is concerned, the concept should give practical guidance and pave the way to a tidier practice. In this respect it has certainly failed. The reason for this is reflected in the complexity of the theoretical frameworks. My aim has not been to argue that the profound issues revealed in this study are final and absolute for the debate on the concept of disease. A conceptual debate of human disease may follow other lines of thought. The presentation has been one attempt to structure the categories of the debate. However, I would argue that any investigation of these categories has to take into account the theoretical complexity. The profound philosophical distinctions of the debate show that the concept of disease involves fundamentally different issues. Disease is basically an issue that is so complex that it appears extremely difficult to encompass it by a single monistic theory.”

O que é a Doença?

Por que o conceito de doença é tão importante? Por que os acadêmicos se esforçam tanto para conseguir uma definição consistente e coerente de doença? Vejamos Georges Canguilhem:

“A doença é um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual, concreto, em relação de atividade polarizada com seu meio. Neste sentido, não é apenas para o homem, mas para qualquer ser vivo, que só existe doença do todo orgânico (…) Na medida em que a análise anatômica e fisiológica dissocia o organismo em órgãos e em funções elementares, ela tende a situar a doença ao nível das condições anatômicas e fisiológicas parciais da estrutura total ou do comportamento de conjunto. Conforme progride a minúcia da análise, a doença será colocada ao nível do órgão (Morgagni), tecido (Bichat) ou célula (Virchow). Mas, assim procedendo, esquecemos que, historicamente, logicamente e histologicamente chegamos até a célula por ordem regressiva, a partir do organismo total e com o pensamento, ou talvez mesmo o olhar voltado para ele. Procurou-se no tecido ou na célula a solução de um problema levantado pelo organismo inteiro e que se apresenta primeiro para o doente, e, em seguida, para o clínico. Procurar a doença ao nível da célula é confundir o plano da vida concreta – em que a polaridade biológica estabelece a diferença entre a saúde e a doença – e o plano da ciência abstrata – em que o problema recebe uma solução.”

Onde procurar a doença então? O que é e onde está a doença?

Ainda Gadamer

microarray, biochip ou chip de DNA


Gadamer divide o conhecimento utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. 
Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral.

Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.
Em determinadas situações e atividades, devemos tomar decisões utilizando o conhecimento científico. É tarefa do poder de julgamento (que aliás, não se ensina, nem se aprende!) reconhecer em uma situação específica a aplicabilidade de uma regra geral. A tarefa existe qualquer que seja o conhecimento a ser aplicado; é um problema irredutível, o que gera tensão (como demonstrado no post anterior). Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, o fazer.

Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras dele: “The more strongly the sphere of application becomes rationalized, the more does proper exercise of judgement along with practical experience in the proper sense of the term fail to take place.”

A racionalização desenfreada tem efeitos graves. A perda do poder de julgamento é uma doença endêmica da medicina contemporânea. O poder de julgamento se constitui na única ferramenta capaz de dotar o médico de crítica de sua própria razão.

Teoria, Tecnologia, Praxis


Em 1993, Hans-Georg Gadamer fez sua incursão ao mundo da medicina. The Enigma of Health (tradução para o inglês de 1996) é uma coletânea de ensaios e palestras que o filósofo reuniu ao pensar sobre a atividade médica.

O primeiro capítulo tem o título deste post. Logo nas primeiras páginas se percebe a agudeza do raciocínio. Ao abordar a questão da teoria e da prática, ele propõe a seguinte fórmula ao leitor: A Ciência é incompleta. A incompletude da ciência experimental decorre de sua pretensa universalidade pois sempre necessita de novas experiências para comprovar (ou refutar) teorias ou modelos explicativos. Mas o que é a prática? Seria a prática uma simples aplicação da ciência? Prática significa não apenas fazer o que deve ser feito; também é uma escolha entre possibilidades. A prática tem, portanto, uma relação com um sujeito atuante. A prática que se baseia no conhecimento científico é obrigada a tratar o conhecimento a um só tempo, como completo e certo, pois necessita tomar decisões.

Mas o conhecimento gerado pela ciência não é deste tipo!

É na tensão surgida do esforço da prática em interrogar a ciência em busca de respostas cotidianas que o médico procura seu eu atuante.

O Atraso da Medicina

A meta suprema do Esclarecimento é o progresso obtido através da aplicação da racionalidade. No mundo esclarecido ou moderno, a livre investigação de pessoas racionais, com método e honestidade, leva invariavelmente à Verdade. A Verdade é fixa, transparente e, uma vez atingida, todos seres pensantes devem concordar com ela.
A Pós-modernidade é um mundo onde a racionalidade é desconstruída revelando sua base na subjetividade. A Verdade agora é construída e não descoberta. Relativismo mais que objetivismo. Preferência mais que verdade.
Por mais que se discuta o termo, será útil considerarmos, na ausência de uma definição melhor, que o mundo atual é pós-moderno. Vários segmentos culturais têm se comportado assim. O pensamento dominante na Arte, na Literatura, na Política, na Mídia e mesmo em textos filosóficos, é pós-moderno. Apenas um campo de atuação da ciência e cultura humanas continua fortemente influenciado pelo pensamento moderno/esclarecido: a Medicina…
Como disse um autor:
Medicine is(…) an island of rationalistic modernity floating in a shifting sea of subjective post-modernity – a castle of objectivity besieged by the forces of relativistic cynicism …

Habermas II


Técnica e Ciência como “Ideologia”– Jürgen Habermas – Edições 70 – 2006 – pág 72-73.
“Desde o final do século XIX, impõe-se cada vez com mais força a outra tendência evolutiva que caracteriza o capitalismo tardio: a cientificação da técnica. No capitalismo sempre se registrou a pressão institucional para intensificar a produtividade do trabalho por meio da introdução de novas técnicas. As inovações dependiam, porém, de inventos esporádicos que, por seu lado, podiam sem dúvida ser induzidos economicamente, mas tinham ainda um caráter natural. Isso modificou-se, na medida em que a evolução técnica é realimentada com o progresso das ciências modernas. Com a investigação industrial de grande estilo, a ciência, a técnica e a revalorização do capital confluem num único sistema. Entretanto, a investigação industrial associa-se a uma investigação nascida dos encargos do Estado, que fomenta em primeiro lugar o progresso científico e técnico no campo militar. Daí as informações refluem para as esferas da produção civil de bens. Deste modo, a ciência e a técnica transformam-se na primeira força produtiva e caem assim as condições de aplicação da teoria marxiana no valor-trabalho.(…). Como variável independente, aparece então um progresso quase autônomo da ciência e da técnica, do qual depende de fato a outra variável mais importante do sistema, a saber, o crescimento econômico”.
Esse texto de Habermas, de 1968, me diz como o capitalismo tardio necessita do progresso técnico-científico para manter o crescimento econômico. Afirmação que é exemplificada à exaustão no livro O Mundo é Plano.No caso da Medicina, posso entender que isso se reflete de muitas e variadas maneiras. Da influência da Big Pharma na atuação dos médicos e geração de informação técnica, até ao comportamento dos médicos diante de novas tecnologias que vão forjando seu raciocínio.

Habermas


E agora, posso avançar um pouco mais: Habermas
“Diferentemente das ciências filosóficas de tipo antigo, as modernas ciências experimentais desenvolvem-se desde a era de Galileu, num marco metodológico de referência que reflete o ponto de vista transcendental da possível disposição técnica. As ciências modernas geram por isso um saber que, pela sua forma (não pela sua intenção subjetiva), é um saber tecnicamente utilizável, embora as oportunidades de aplicação, em geral, só tenham surgido posteriormente. Até ao fim do século XIX, não existiu uma interdependência de ciências e técnica.” (Técnica e Ciência como “Ideologia”– Jürgen Habermas – Edições 70 – 2006 – pág 66-67)
A interdependência entre ciência e técnica é a ciência do fazer. A instrumentação da natureza no intuito da dominação. A medicina se utiliza de uma parte dessa ciência que podemos chamar ciência médica e que vem a nós carregada dessa ideologia.
Vêm daí parte das críticas contemporâneas.

Frankfurt II

Metrópolis, 1927 – Fritz Lang

A Dialética do Esclarecimento. T. Adorno e M. Horkheimer. Jorge Zahar. 1985, pág 13.

Não alimentamos dúvida nenhuma de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecido. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte.

Se o Esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade.

Refletir sobre o elemento destrutivo do progresso não significa primitivizar o presente. Pelo contrário, a reflexão aqui tem como objetivo primordial a libertação do meu pensamento. (Ou pelo menos, entender os efeitos colaterais de minhas formas de pensar.)

Acorrentado que estou a meu tempo, refletir aqui será desagrilhoar-se…